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Reflexões sobre um futuro governo que já nasce enredado em suas contradições

A esquerda e o centro, do PT ao PSDB, não souberam avaliar sua importância, presos a uma posição negativa de defender-se da pecha de corruptos ou o primeiro a esgotar suas energias na liberdade de Lula
Luiz Alberto Gómez de Souza

Tradução:

Se Bolsonaro se mantiver, veremos a implementação de medidas antinacionais, autoritárias e antidemocráticas. Se cair, haverá o esforço do sistema dominante para preservar seus privilégios.

Em texto anterior sobre o México eu assinalava que, tanto ali como aqui, os vencedores brandiam aparentemente as mesmas propostas: contra a corrupção e pela segurança. Elas correspondem a uma demanda real da sociedade e assumi-las tem uma forte resposta eleitoral. López Obrador soube captá-las e isso o levou à vitória. Aqui também a candidatura Bolsonaro partiu delas e isso o fez, em parte, crescer nas semanas que antecederam o primeiro turno. Por outro lado, a esquerda e o centro, do PT ao PSDB, não souberam avaliar sua importância, presos a uma posição negativa de defender-se da pecha de corruptos ou o primeiro a esgotar suas energias na liberdade de Lula. Ora, isso os colocou em desvantagem, frente a uma posição positiva e agressiva. Ficar na defensiva é já começar perdendo. Até agora eles não se põe de acordo em que fazer diante do novo governo. Uma parte do PSDB, com João Dória, tende a aderir; outra poderá criar outro partido, com pretensões social-democratas. PSB e PDT ainda não definiram uma estratégia ou como posicionar-se diante da óbvia exigência de formar uma frente opositora. Boulos, do PSOL, é quem acena sobre a necessária frente. O PT continua centrando suas forças na luta por Lula livre. E assim, nessas indefinições e posições limitadas, poderiam deixar caminho aberto para as propostas do futuro governo.

Se esse fosse coerente, com um programa claro, poderia sair fortalecido nos próximos meses, atravessando tranquilo um 2019. O início de um mandato costuma ter boa aceitação na sociedade. Mas eis que, antes mesmo de chegar ao governo, Bolsonaro já se fragiliza diante de enormes contradições e tensões internas, além disso, corroído nas entranhas por um implacável fogo amigo.

A esquerda e o centro, do PT ao PSDB, não souberam avaliar sua importância, presos a uma posição negativa de defender-se da pecha de corruptos ou o primeiro a esgotar suas energias na liberdade de Lula

Carta Maior
A famiglia do capitão reformado: os filhos de Jair, afoitamente, partiram para ocupar espaços

Neoliberalismo de Guedes e a resistência dos militares

Uma contradição bem visível está entre a proposta neoliberal pura de Paulo Guedes, com uma política acelerada de privatizações e, do outro lado, uma resistência de setores militares no tocante a empresas estatais estratégicas (Petrobras, Eletrobras, BB, Caixa…) e defesa da Amazônia, em nome da preservação da soberania. Pensando no passado, é como se tivéssemos lado a lado, juntos num governo esquizofrênico, Roberto Campos e Ernesto Geisel.

Além disso, para piorar ainda mais as coisas, nos encontramos com uma situação inédita no cenário político brasileiro: não chega apenas um novo mandatário, mas uma família se prepara para aboletar-se no governo, Bolsonaro e seus três filhos. Todos quatro tremendamente despreparados e o trio ávido de poder. Como uma família que receberá uma capitania a reger, ou uma grande fazenda a administrar.

O futuro presidente, graças a um atentado que terminou por favorecer-lhe enormemente, não teve necessidade de participar da campanha eleitoral, o que o teria obrigado a precisar suas intenções e propostas. Estas ficaram em intenções gerais e vagas, compensadas por algumas afirmações contundentes, na linha de uma extrema-direita desenhada lá fora por Steve Bannon, ex-assessor estratégico de Trump e por seu recém-criado The Movement e alinhadas ideologicamente com os vídeos que o pseudo pensador Olavo de Carvalho envia de sua residência em Petersburg, na Virgínia.

A Famiglia do Capitão

Já os filhos, afoitamente, partiram para ocupar espaços. Assim, vejamos de perto a atuação de cada um deles.

Eduardo, o mais jovem (34 anos), capitão da reserva, deputado federal desde 2015 sem destaque, à sombra do pai, que sai desta eleição como o deputado mais votado da história. Isso lhe dá apetite para tomar posições em vários âmbitos, sem maior experiência. Assim, vai tentar ocupar um espaço ao nível internacional, como uma espécie de chanceler antecipado, deixando de lado o ministro escolhido para o cargo pelo pai. Viajou aos Estados Unidos, por fora do circuito tradicional do Itamaraty, encontrando personagens de segundo e terceiro escalão, para prestar vassalagem a um Trump que não o recebeu, mas enfiando um gorro com o nome deste, numa ação absurda para o filho de futuro presidente de uma nação soberana. Foi festejar o aniversário de Bannon, considerado por ele, “ícone no combate ao marxismo cultural”(!). Organizou um encontro de políticos de extrema direita em Foz do Iguaçu, com relativamente baixa representatividade e sem maior impacto. Explicitou a intenção paterna de mudar a embaixada brasileira para Jerusalém, para espanto da futura equipe econômica, que avalia o resultado negativo diante dos clientes do mundo árabe. O próprio Bolsonaro indicou que era uma proposta ainda em estudo. Posicionou-se pela pena de morte, mas logo o pai assinalou que também era um tema em análise. Em declarações informais afirmou num despropósito que, para fechar o STF, bastariam um cabo e um soldado. Retratou-se depois, mas o mal tinha sido feito.

Carlos, o filho do meio (36 anos), vereador desde 2001, foi o mais próximo ao pai durante as eleições. Temperamento irascível, entrou em forte colisão pelo twitter com outros parlamentares do PSL e acabou deixando a equipe de transição. O pai o chama de “meu pitbull”.

O maior problema vem do mais velho, Flávio (37 anos), no quarto mandato na Assembleia Legislativa carioca (ALERJ) e que agora foi eleito senador. O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) acaba de denunciar um amplo sistema de empreguismo na ALERJ, com funcionários de seu gabinete repassando boa parte de seus salários a um assessor, Fabrício Queiroz, da polícia militar, que num ano movimentou mais de um milhão de reais, quantia incompatível com seus bens e entradas. De maneira muito amadorística, nos dias de pagamento, entravam em sua conta, em dinheiro vivo, enormes quantias. Há inclusive um cheque seu para a futura primeira dama. A COAF já tinha essa informação durante o período eleitoral, mas só deixa aparecer agora. Quem estaria interessado nesse vazamento? As organizações Globo e a Folha de São Paulo, no noticiário e por seus articulistas, estão dando um enorme destaque ao fato, que fragiliza Bolsonaro pai, um político que fizera campanha denunciando corrupção.

Assim, temos a futura “família real” exposta à crítica violenta. Numa atitude defensiva, Olavo de Carvalho propõe um forte ataque aos meios de comunicação, retirando patrocínios em retaliação. Isso é desconhecer, lá do seu retiro nos States, o poder da mídia, quarto poder, só piorando a situação do futuro presidente, exposto ainda mais negativamente diante da opinião pública.

Jânio, Collor, Jair e a síndrome dos Vices

Em momentos idênticos, no desprestígio de Jânio e de Collor, eleitos também com sua vassoura moralista e a luta contra os marajás, o caminho ficará aberto aos vices, Jango e Itamar, de opções diferentes. E neste caso? Vemos o vice, general Mourão, tomar cuidadosamente distância.

Como essas contradições irão enfraquecer um governo que chega vítima de tantas confusões? Assim, Bolsonaro se esvai antes mesmo de assumir o governo. Seus problemas não advêm de atos de uma oposição, mas de suas próprias fragilidades. Como agirá quando terá de tomar decisões? Dá a impressão de que até bem pouco atrás não imaginava ganhar e que não teve tempo para treinar de ser presidente.

Esse futuro governo se manterá em 2019, ou poderá ter uma crise terminal durante os próximos meses? Para permanecer, provavelmente terá que entrar em acordo com os setores dominantes e as velhas raposas políticas, que procurarão assessorá-lo e que poderão deixá-lo sob tutela.

Na hipótese de não se sustentar no poder, fica a pergunta: quem viria depois? Mourão não é Jango nem Itamar, opções diferentes dos presidentes. Ou se o vice cair junto, qual seria a alternativa “legal” aberta, para um golpe semi camuflado? Uma certa legalidade formal deveria ser preservada, nascendo porém com uma ilegitimidade de origem. Vimos isso no impeachment de Dilma e na condenação preventiva de Lula.

Nesse último caso, não pareceria surgir no horizonte um golpe militar clássico, mas, uma vez mais, um sinuoso golpe de aparências legais, como tentaram depois da queda de Jânio, enfrentado na ocasião pelo movimento da legalidade de Brizola. Talvez pudessem pensar num governo provisório. Daí a importância da eleição para presidentes da Câmara e do Senado, na linha sucessória.  Pelas primeiras sondagens, Rodrigo Maia e Renan Calheiros tem boas possibilidades de manter-se nos postos, apesar da forte oposição de Bolsonaro a Calheiros. O vice já se mostrou favorável a Rodrigo Maia. Numa forte crise de poder, o sistema talvez apostasse num destes políticos tradicionais, experientes em manobras nas sombras.

E depois, no caso de um possível interinato? Não há no horizonte, do lado do sistema, alguém sendo preparado para o que viria adiante? Ou melhor, haveria talvez um, o juiz Sérgio Moro, indicado para a pasta da justiça. Ele sempre esteve pronto a cumprir papéis que lhe têm sido designados. Teria o apoio do mercado e dos Estados Unidos, onde teve sua obediente formação.

E num caso desses, qual seria a força das oposições? Infelizmente parece, até o momento, à margem.

Frente Ampla

Tenho insistido na necessidade de uma frente ampla nacional, democrática e popular. Entretanto estas eleições deixaram muitas feridas. Uma frente destas seria impossível sem o PT, que saiu das eleições com a maior bancada na Câmara e poder em alguns estados e no nordeste. Mas um dos maiores empecilhos seria o mesmo PT, avesso a alianças em pé de igualdade, com a tendência de se autodeclarar a força opositora hegemônica. A hegemonia não se proclama, se conquista no processo. Ou melhor ainda, uma frente deveria apagar hegemonias e aceitar o pluralismo. A “geringonça” portuguesa nos traz lições interessantes.

Se Bolsonaro se mantiver, veremos a implementação de medidas antinacionais, autoritárias e antidemocráticas. Se cair, haverá o esforço do sistema dominante para preservar seus privilégios.

Tudo indica que uma alternativa ao sistema deveria construir-se, pacientemente, num processo mais ou menos longo, a partir da sociedade civil e de suas forças sociais mais dinâmicas. Volta a exigência de uma Frente Ampla. Isso exigiria saber escutar o país e suas demandas. As forças populares saberão entrar em sintonia profunda com o país real? Para isso teriam de pôr de lado posições tradicionais e isoladas ou superar bandeiras parciais e colocar-se na escuta no amplo espaço de uma sociedade com dinamismos latentes e enormes carências.

O que acontece neste momento com os gilet jaunes traz alguns ensinamentos. É matéria para um próximo texto.

* Formado em Ciências Jurídicas e Sociais, pós-graduado em Ciência Política, doutor em Sociologia. Autor de mais de cem artigos em revistas brasileiras e internacionais e colaborador e organizador de vários livros


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Luiz Alberto Gómez de Souza

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