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“A imprensa brasileira também precisa fazer sua autocrítica”, afirma Eliane Brum

A jornalista propôs uma análise crítica acerca da responsabilidade da imprensa no processo de desinformação e chegada da extrema-direita ao poder
Paula Guimarães
Catarinas

Tradução:

“Eu acho fundamental que a gente construa uma rede de proteção de mulheres latino-americanas. A gente no Brasil tem essa barreira com a língua e precisamos rompê-la, já que o português também faz parte da América Latina. Este esforço de nos compreender mutuamente também é um esforço de resistência e eu vejo como um esforço de solidariedade”, assim a jornalista, escritora e documentarista Eliane Brum iniciou sua fala em português no Seminário Ameaças à liberdade de expressão em contextos de desinformação, em Montevidéu, no Uruguai. O encontro na Universidade da República reuniu em 3 de maio, Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, cerca de 100 jornalistas latino-americanas de aproximadamente dez países.

Brum, que escreve para jornais como El País Brasil e para o britânico The Guardian, evocou a memória da vereadora Marielle Franco e os 414 dias de seu assassinato ainda sem identificação dos mandantes. “Isto é revelador de todos esses últimos anos e talvez de toda a história do Brasil”.

A jornalista propôs uma análise crítica acerca da responsabilidade da imprensa no processo de desinformação e chegada da extrema-direita ao poder. Sua hipótese é de que o ataque do bolsonarismo só teve impacto porque a grande mídia já vivia uma crise e não só de modelo de negócios provocada pela Internet, mas principalmente de credibilidade.

“Não é que a imprensa brasileira fazia um ótimo jornalismo e agora está sendo atacada pelo governo de extrema direita e milícias bolsonaristas na internet. A imprensa vinha de um momento que para parte da população, à direita e à esquerda, ela tinha perdido credibilidade”, analisou.

“Setores da imprensa brasileira terão que dar muitas explicações à História sobre o seu papel no atual cenário do Brasil. Não é apenas o PT que precisa fazer autocrítica, a imprensa brasileira também precisa fazer autocrítica”, pontuou.

A escritora responsabilizou a imprensa pela avalanche de fake news que marcou a eleição de Bolsonaro, devido a uma atuação de fragmentação dos fatos, validação de versões únicas como verdades e invisibilização de demandas sociais. “Parte da imprensa brasileira tinha produzido fake news antes das fake news serem usadas nas milícias de extrema-direita e isso enfraqueceu tremendamente a imprensa num momento crítico, em um momento em que a imprensa é mais necessária do que nunca”.

Desvios ético-profissionais da mídia contribuíram para a adesão ao ódio. “Em 2013 a imprensa tradicional criminalizou os manifestantes taxando-os de vândalos. Na cobertura da operação lava jato a maior parte dos grandes veículos publicou reportagens não a partir de suas investigações, mas a partir de vazamentos de uma das partes interessadas. A TV Globo reproduziu áudios privados e ilegais no Jornal Nacional da então presidente do país Dilma Rousseff, vazados pelo juiz Sérgio Moro hoje ministro da Justiça”.

Se a imprensa tem papel fundamental para a garantia da democracia, sua fragilização tem contribuído para o aumento do déficit democrático nos últimos anos.  Marco deste cenário de perda de credibilidade, as manifestações eclodidas em 2013 foram cobertas à distância, do alto de helicópteros, por jornalistas da grande mídia. “Como jornalista devemos apontar a arbitrariedade do gesto de expulsar a imprensa, mas também precisamos escutar o que esse gesto estava nos dizendo, e as ruas do Brasil estavam dizendo ‘a imprensa não me representa’”.

Em seus trabalhos, Brum é uma crítica dos governos do PT, principalmente dos mandatos de Dilma Rousseff pela construção da hidrelétrica de Belo Monte, mas isso não a impede de constatar que parte da imprensa brasileira “atuou como protagonista de um impeachment sem consistência”.

A jornalista propôs uma análise crítica acerca da responsabilidade da imprensa no processo de desinformação e chegada da extrema-direita ao poder

Foto: Paula Guimarães
Eliane Brum falou durante encontro com mais de 100 jornalistas latino-americanas no Uruguai

A negação da maior manifestação de mulheres do país

A ausência de cobertura nacional do maior protesto de mulheres que já se viu no país, o #EleNão em 29 de setembro de 2018, é um dos exemplos de como a mídia abriu caminho às fake news. Mentiras sobre nudez e destruição de símbolos religiosos foram espalhadas pelo whatsapp. “Isso só foi possível porque a maior manifestação de mulheres da história do Brasil foi quase ignorada pelas TVs e não foi manchete de nenhum dos grandes jornais. As fake news viraram verdade também por falta de referência”.

Brum explicou que o conceito de autoverdade, cunhado por ela em artigo sobre as eleições, é fundamental para entender a adesão ao bolsonarismo. Isso porque a pós-verdade, que passou a definir a disputa de sentidos no mundo global, já não é capaz de explicar a complexidade do cenário político brasileiro.

“No fenômeno da pós-verdade as mentiras que falsificam a realidade passam elas mesmas a produzir realidades, como a eleição de Trump ou aprovação do Brexit. A autoverdade se articula com esse fenômeno, mas segue uma outra lógica, a questão não está na substituição de verdades ancoradas nos fatos por mentiras produzidas para falsificar a realidade. O valor da autoverdade está muito menos no que é dito, mas no ato de dizer. Dizer tudo é o único fato que importa”, detalhou.

Para contextualizar a alta aceitação de Bolsonaro que passou a ser referência de uma direita que se comunica com os jovens, Brum citou a pesquisa da cientista política Esther Solano em escolas da periferia de São Paulo sobre o crescimento das novas direitas. “Se nos anos 60 ser rebelde era ser de esquerda, agora nas palavras de Esther Solano para muitos desses jovens é votar nessa nova direita que se apresenta de uma forma cool disfarçando seu discurso de ódio em forma de memes e vídeos divertidos”.

Em suas escutas nas periferias de São Paulo e região do Xingu, a jornalista também ouviu variações de frases ditas por estudantes à Solano, como “Bolsonaro é honesto, porque diz o que pensa”. Politicamente incorreto passou a ser elogiado como sinônimo de honesto e verdadeiro. “Quando eu questionava o conteúdo do que Bolsonaro pensa, ‘a verdade de Bolsonaro’, em geral aparecia um sorriso divertido, meio carinhoso e meio cúmplice ‘ele é meio exagerado, porque é muito sincero’. Assim Bolsonaro não seria homofóbico, misógino ou mesmo racista para aqueles que aderem a ele, mas um homem de bem exercendo a liberdade de expressão”.

A liberdade de expressão no país que elegeu Bolsonaro tomou nuances ainda mais complexas. “Para essas pessoas isso é liberdade de expressão e a imprensa ameaça sua liberdade de expressão ao falar do politicamente correto, ao apontar a relação de direitos”.

Como os bolsonaristas se desconectaram do conteúdo real de suas falas, a lógica na qual opera o jornalismo não tem os atingido. Quando os veículos de comunicação passaram a abordar as contradições de Bolsonaro, sua baixa eficiência nos quase 30 anos de vida pública, as reportagens e artigos tiveram pouco efeito sobre o eleitorado. Até mesmo as agências de checagens de notícias, importantes instrumentos para combater a pós-verdade, não afetaram a autoverdade porque a verdade se tornou escolha pessoal

Cruzada neopentencostal contra a verdade
O crescimento das igrejas evangélicas fundamentalistas neopentecostais é uma particularidade brasileira que impacta de forma decisiva a autoverdade. “Com uma visão do mundo a partir de uma narrativa tosca da bíblia, a retórica do bem contra o mal atravessa o fenômeno da bolsonarização do país. Embora os pastores exaltem a perseguição do povo de deus, a prática mostra o contrário já que são eles que perseguem os LGBTQIs, as mulheres e em alguns casos de racismo, são eles que perseguem negros e indígenas. Mas a prática são os fatos e os fatos não importam. O que importam são a retórica e a forma”.

De acordo com a palestrante, novelas e filmes “supostamente” bíblicos produzidos pela TV Record colaboram para formatar um determinado olhar sobre a dinâmica da vida e cercear outras possibilidades de ver o mundo. “Não há mais interpretação, a decodificação passa a ser por reflexo. Esse é o mecanismo que tem se alastrado no Brasil e que é imensamente beneficiado pela tragédia educacional brasileira. Não é por acaso que a escola pública já tão desvalorizada esteja sofrendo o brutal ataque pelo movimento político e ideológico chamado escola sem partido”.

Conforme Brum, vivemos não somente a politização da justiça, “mas algo possivelmente ainda mais destruidor, a religiosização da política, que tem como primeiro efeito a política da antipolítica”. “O ungido pelas pessoas de bem é capaz de linchar quem estiver pelo caminho. Se a luta é do bem contra o mal, tudo não só é permitido, como também é abençoado”.

Toda a cruzada contra a verdade factual não é por acaso: devolver valor aos fatos é um risco que as personagens das novas direitas não querem correr. Para a jornalista, somente o pensamento múltiplo e debate das ideias podem devolver a importância aos fatos e ao conteúdo, assim como recolocar a questão da verdade. “O desafio imposto pela autoverdade e pós-verdade é como devolver a verdade à verdade. Neste contexto o desafio da imprensa é recolocar a importância dos fatos e recuperar a credibilidade perdida. Um desafio enorme para uma imprensa que tantas vezes traiu o público e corrompeu os fatos. Uma necessidade urgente e um desafio possível se a imprensa se dedicar a fazer jornalismo”.

Ela destacou, no entanto, o resgate ainda que tímido da potência do jornalismo para reverter cenários de obscurantismo. “Diante do horror do governo bolsonaro, uma pequena parte da imprensa brasileira tem feito jornalismo como há muito não se via”.

Escritora e ativista dos direitos dos povos da floresta, Eliane Brum pediu especial atenção dos países latino-americanos à Amazônia sob o governo Bolsonaro e denunciou o efeito de políticas de degradação na vida das mulheres. “O principal objetivo do governo é abrir terras protegidas dos povos das florestas para o gado, soja, mineração e para grandes obras. Estamos vivendo o maior desafio da história humana que é a crise climática […] e são as mulheres as mais afetadas. Hoje na Amazônia os movimentos são liderados por mulheres e essas mulheres estão sendo ameaçadas e assassinadas. Esse não é um problema do Brasil, mas do planeta”.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Paula Guimarães

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