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“Muita gente votou querendo governar a sexualidade dos outros”, diz psicanalista

Paula Peron, professora da PUC-SP, analisa como a sexualidade tem sido central no debate político brasileiro
Helena Bertho
Revista AzMina
São Paulo

Tradução:

Desde as eleições de 2018, tem sido recorrente a presença da sexualidade como um dos temas centrais no debate político. De notícias falsas sobre mamadeiras em formato de pênis, a tweets do presidente Jair Bolsonaro sobre golden shower, passando por comentários da ministra Damares “denunciando” a orientação sexual de Elza, personagem do desenho animado Frozen, da Disney. Isso pode parecer curioso para alguns, mas para a psicanálise faz todo o sentido.

“O que ficou claro nas últimas eleições é como o recorte da sexualidade foi muito explícito e central. Eu acho que muita gente votou querendo legislar, querendo governar o campo da sexualidade das outras pessoas”, afirma a psicanalista Paula Regina Peron, professora da faculdade de psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Em entrevista à Revista AzMina, ela analisa porque a sexualidade tem ocupado um espaço tão grande no debate político brasileiro atual.

“Quanto mais o sujeito está inseguro da sua posição, mais o outro múltiplo ameaça, mais é provocador”, afirma. “A questão dos grupos gays e grupos queers dá muita visibilidade para essa diferença. A representação social desses grupos mostra que ali a sexualidade está criativa e e múltipla. Esse grupo me ameaça porque está indicando que há muitas outras formas de partilhar dos prazeres.”

Paula Peron, professora da PUC-SP, analisa como a sexualidade tem sido central no debate político brasileiro

Pixabay
“As famílias e as amizades foram rompidas por algo que já estava presente”, diz a psicanalisa Paula Peron

Leia a entrevista completa:

AzMina: Você acha que o debate político tem sido feito ao redor da sexualidade? Por quê?

Paula: Eu não acho que dá pra reduzir a decisão das eleições à questão da sexualidade. Mas do ponto de vista da psicanálise, a questão da sexualidade foi central na decisão das eleições passadas. E sobre o debate hoje, depende um pouco sobre como a gente pensa o campo da política. Eu tenho lido e me reconheço mais nos autores que dizem que a política é o campo do poder e dos afetos.

Pensar a política como racionalidade não dá conta para a gente entender muitas das questões que a política coloca. Associar isso [sexualidade] ao poder quer dizer que na política a gente está sempre fazendo alguma incidência de poder sobre os campos da sexualidade. Então eu não acho que seja um fenômeno restrito das últimas eleições, acho que isso opera sempre. O que ficou claro nas últimas eleições é como o recorte da sexualidade foi muito explícito e central. Eu acho que muita gente votou querendo legislar, querendo governar o campo da sexualidade das outras pessoas.

Pode explicar o que exatamente você quer dizer quando fala em sexualidade?

Não tem como ser psicanalista e não colocar na leitura do humano a sexualidade e a agressividade. São premissas fundamentais desse campo. Como a gente justifica essa premissa? Dizendo que os sujeitos humanos estão sempre em busca do prazer, esse é um substrato de funcionamento psíquico. Falar de sexualidade significa falar do prazer. E significa falar como cada um dos sujeitos vai buscar caminhos de busca de prazer no cenário civilizatório.

Freud diz que o corpo humano é regido pela busca pelo prazer, mas não segundo um roteiro prévio definido pela espécie. Um bicho tem um objeto de prazer definido, o ser humano não tem um objeto de prazer definido. Freud coloca que o limite civilizatório é uma questão conflitiva para o sujeito. Pertencer a civilização é fazer compromisso nesses dois fatores, a busca do prazer e a destrutividade. Quando falo de sexualidade, falo dessa busca pelo prazer.

A psicanálise consegue explicar por que a sexualidade ocupa um espaço tão grande em um debate que, em tese, é para ser racional?

Porque é por meio da política que a gente organiza pactos sociais para controle dos corpos e da sexualidade. A política é um campo disciplinar. É a partir dela que a gente desenha acordos comuns para legislar sobre esses campos (dos corpos e da sexualidade). Mas é óbvio que esses acordos comuns não incluem todos, porque eles representam poder. Os pactos são representativos do poder de alguns, não de todos.

No debate político, a preocupação com a sexualidade dos outros e não só dos próprios indivíduos tem sido relevante. Por que você acha que isso acontece?

Para Freud e para os grandes psicanalistas posteriores, a gente desenha os próprios limites como “eu” sempre no campo dos outros. Sempre no contraste com os outros. Isso é parte da constituição de quem somos. Conforme a criança vai se constituindo, ela vai fazendo essa limitação entre o que é ela e o que é outro. Isso implica um embate entre ela e o outro. O embate com o outro está no cerne da origem do que sou eu.

E o outro além de ser o aquele com quem faço embate para estabelecer os limites do meu próprio eu, ele é também  aquele que representa uma outra forma de prazer. Então eu estou sempre fazendo uma vigilância do que o outro está obtendo em termos de prazer, ou se está obtendo mais que eu, se ele está tendo alguma vantagem.

E a questão dos grupos gays e grupos queers dão muita visibilidades para essa diferença. A representação social desses grupos mostra que ali a sexualidade está criativa e está múltipla. Se tem uma coisa que tradicionalmente a cultura gay traz é mostrar a invenção de modalidades de relação, de modos de vida, de valores de vida. Então ela vira algo para esses que estão fazendo a vigilância das próprias definições. Se eu estou fazendo a vigilância da minha parcela de prazer social, esse grupo me ameaça porque está indicando que há muitas outras formas de partilhar dos prazeres.

Então ele não só é um outro da diferença, mas ele é um outro da diferença que acena para toda a diversidade do plano da sexualidade da qual eu abri mão para adquirir uma posição. E quanto mais o sujeito está inseguro da sua posição ou é mais rígido nas fronteiras dessa posição, mais esse outro múltiplo ameaça, mais é provocador.

Então eu preciso tirar esse outro múltiplo do campo dos possíveis, e o que vou fazer? Eu vou dizer que não é uma vida possível, que é abjeta, que é ameaçadora, porque ela perturba a ordem familiar. Claro que perturba a ordem familiar, se a ordem familiar for pensada num sentido restrito. E é bom que ela perturbe.

Você consegue enxergar alguma explicação para o aumento da agressividade e do ódio na discussão política?

A gente não deve tratar os horrores da nossa época como exclusividade histórica. Você teria que desconhecer a nossa história para dizer que nossa época é mais violenta. É claro que algumas formas de ódio ganharam mais espaço.

Sim, eu acho que a questão da inflação do ódio tem muita relação com a necessidade de manter limites rígidos identitários. É uma reação muito espontânea eu odiar o diferente. Agora o que autoriza um adulto a fazer uso disso? É a necessidade de circunscrever o campo do eu. Uma das problematizações que a gente pode fazer frente a presença do ódio na política atual é que o confronto com o diferente convoca o ódio. Isso do lado do sujeito.

Do campo social, eu tenho grupos e forças políticas autorizando a manifestação desse ódio e isso é feito em prol da divisão do poder. Eu autorizo que os sujeitos manifestem o ódio, para que eles pertençam ao meu campo político de poder que está definido ao ataque ao outro diferente. Então não basta falar das benesses do seu grupo, você tem que falar o quanto o outro é ruim, o quanto ele deve ser eliminado, o quanto é detestável, porque faz ameaça ao meu grupo.

Por meio da psicanálise, é possível pensar um caminho para um diálogo político?

As famílias e as amizades foram rompidas por algo que já estava presente. A tensão nesses grupos não é nova. Essa tensão é um dos cernes do conflito do pertencimento. Como é que eu faço para conviver com o outro de quem eu preciso, mas que ao mesmo tempo sempre me ameaça com a diferença? Essa questão é subjacente desses grupos, tanto que os psicanalistas estão carecas de ouvir esses ódios. A família não é um lugar do amor. É um espaço que você se esforça para estabelecer os laços amorosos, que estão atravessados pelo laço da sexualidade.

Já a questão do diálogo, essa é uma porta constante do laço civilizatório, mas ela nunca está garantida. A gente já teve outros grandes momentos históricos de rompimento dos laços sociais construtivos, ou de igualdade e inclusivos. Como retomar o diálogo? O diálogo é uma construção permanente. Não é uma conquista estável. A gente vive agora um momento de rompimento de alguns desses laços. E aí é interessante para gente se tocar de que essas são ameaças constantes e você tem que sempre cuidar delas.

Você consegue pensar uma forma de retomar esse laço de diálogo?

Garantir que os sujeitos circulem entre diferenças. Quanto mais diferenças os sujeitos se aproximarem ao longo do caminho da vida, menos ele precisa atacar, menos a diferença é vista como ameaçadora. Ele vai construindo outras qualidades de vinculação com a diferença. Isso é um ideal, é uma tentativa. Mas a gente nunca vai chegar lá.

O [psicanalista] Christian Dunker, no livro sobre a lógica do condomínio, fala bastante da situação brasileira. Em algum momento das políticas brasileiras, a gente decidiu fazer a privatização dos espaços públicos. Porque o espaço público é a maior arena das diferenças. Anda na rua que você vai ter contato com formas de vida diferentes. A gente fez opção pela privatização que foi criando uma circulação social restrita, onde eu tendo a ver menos o diferente e mais os iguais.

E isso se traduz nos detalhes, na forma de vestir, falar e pensar. Isso foi problematizado por ele como um movimento social amplo. Essa lógica dificulta o trato e a elaboração e o confronto com a diferença. Se trata também de como a gente divide os espaços sociais, de quem a gente inclui e exclui dos espaços sociais. As escolas brasileiras tendem a ser segmentadas. Então na própria infância, a gente já vai colaborando para que a criança não se confronte muito com a diferença.

Você acredita que os políticos fazem uso dessa mobilização dos afetos para conquistar poder?

Acho sim, com a complicação de que muitos desses sujeitos que fazem mobilização desse campo afetivo para conseguir adeptos, eles mesmos são adeptos. A paixão deles está em questão, então eles convocam a paixão dos outros com base nas próprias paixões. Acho que muitos dos que mais convencem são aqueles que sim, são adeptos do que pregam. E eles estão cercados de manipuladores mais racionais, que estão fazendo mais deliberadamente a manipulação dos campos afetivos, para conseguir adeptos.

Agora retomo: um discurso como o de [Donald] Trump [presidente dos EUA] ou de Bolsonaro, é óbvio que tem alguém trabalhando para acentuar as paixões estridentes que esses sujeitos representam. Aí tem projeto político, dinheiro, jogo de poder, que entram em jogo outras máquinas e não só as afetivas. Acho que tem um agenciamento deliberado sim, junto com um cenário de presença de verdadeiros apaixonados. Que convocam, sensibilizam e têm uma conversa direta.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Helena Bertho

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