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Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Grupos oprimidos nas eleições municipais: representação ou representatividade?

É preciso ficar de olhos bem abertos na hora de escolher a quem dar o seu voto nas próximas eleições, porque representação não é o mesmo que representatividade
Verbena Córdula
Diálogos do Sul Global
Salvador (BA)

Tradução:

Diferenciar representação e representatividade é imprescindível ao debate sobre diversidade e inclusão em várias esferas, incluindo-se as instituições políticas. Embora esses termos sejam frequentemente usados como sinônimos, possuem significados distintos, os quais têm implicações profundas no modo como entendemos e promovemos a equidade. E, em períodos eleitorais, como este que estamos vivenciando no Brasil, isso é de extrema importância, para que se possa eleger pessoas que minimamente sejam conscientes e estejam dispostas a levantar as bandeiras dos grupos oprimidos, fazendo o possível para que suas necessidades e reivindicações sejam atendidas.

Ser mulher, ser negro ou negra, ou fazer parte de outras comunidades oprimidas não significa, necessariamente, ter consciência de sua condição, e, portanto, do papel que deve desempenhar enquanto ser social, muito menos enquanto representante nas esferas político-representativas quando ali consegue-se chegar. A história mundial e a nacional estão cheias de exemplos. Por isso, é preciso ficar de olhos bem abertos na hora de escolher a quem dar o seu voto nas próximas eleições, porque representação não é o mesmo que representatividade.

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Quando falamos em representação, estamos nos referindo à presença de indivíduos de diferentes grupos em posições de poder e influência. Simplificando a questão, é o mesmo que ter pessoas de diferentes origens, etnias, gêneros, orientações sexuais, e outras características pessoais visíveis dentro de um sistema ou estrutura, como, por exemplo, negros em um Parlamento. Portanto, representação é a inclusão de uma variedade de indivíduos para refletir a diversidade da sociedade.

Por sua vez, a representatividade vai além da mera presença física, mas diz respeito à profundidade e à eficácia com que essa voz e essa experiência são integradas nas decisões políticas. Enquanto a representação é sobre quem está lá, a representatividade diz respeito ao impacto real que aquela presença terá naquele espaço. Tem a ver com a capacidade desse/dessa representante agir efetivamente em nome dos grupos que representa, buscando garantir que as necessidades, as preocupações e as perspectivas desses grupos sejam consideradas. Ou seja, a simples presença de uma pessoa pertencente a grupo oprimido em um cargo não garante que essa pessoa queira ou seja capaz de abordar questões específicas que afetam sua comunidade. 

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Portanto, representar um grupo é uma condição necessária, mas não suficiente para garantir que os interesses e perspectivas desse grupo estejam sendo efetivamente considerados. A representatividade exige um engajamento mais profundo, que parte de uma compreensão das necessidades e aspirações dos grupos representados.

Por exemplo, a representação de diferentes grupos na mídia é importante, mas a representatividade não deve ser medida pela presença desses grupos, mas pela forma como essas representações influenciam narrativas e estereótipos. Para exemplificar mais objetivamente, podemos dizer que colocar negros no elenco de uma novela não garante que a obra não traga conteúdo racista. E não raro vemos produtos de comunicação, entre eles novelas, publicidades e outros, que incluem pessoas negras, cujos conteúdos estão repletos de mensagens racistas.

Thatcher e Kamala: representação

No âmbito político não é diferente. A nível mundial, Margareth Thatcher, conhecida como a “Dama de ferro”, é um exemplo emblemático de que nem sempre uma representação significa representatividade. À frente do Reino Unido, como Primeira-Ministra, ela promoveu medidas políticas e econômicas que deram ênfase a privatização de empresas estatais e a redução do poder e influência dos sindicatos; medidas liberais que empobreceram as classes mais vulnerabilizadas, que perderam rendas, que foram vítimas de aumentos seletivos de aluguéis e de taxas de refinanciamentos e empréstimos sociais, entre outras; que afetaram duramente os setores mais vulneráveis, sobretudo mulheres. Conforme Lenon Campos Maschette, em seu estudo intitulado “Thatcherismo e cidadania: razões para o surgimento do conceito active citzenship no final dos anos 80”, entre 1979 e 1989, a renda dos 20% mais pobres caía, enquanto aumentava a dos 20% mais ricos.

No período em que Thatcher esteve no poder, milhões de mulheres foram duramente afetadas negativamente devido às políticas adotadas por ela. Vê-se, portanto, que uma mulher pode ser tão ou mais cruel do que um homem, pois o gênero não define quem somos no que diz respeito à nossa maneira de encarar o mundo e os problemas nele existentes. Nosso gênero não define como iremos legislar ou governar quando assumimos esses postos.

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Outro exemplo, desta vez muito atual, é Kamala Harris, vice-presidenta dos Estados Unidos e candidata à Presidência daquele país pelo Partido Democrata. Sua biografia é marcada por várias controvérsias durante seu tempo como Promotora e Procuradora-Geral da Califórnia, sobretudo em relação às políticas e decisões que ela adotou no que se refere a questões como justiça criminal, pena de morte e reforma da justiça. 

Durante seu tempo como Procuradora-Geral, Kamala Harris foi criticada por sua defesa contundente da pena de morte, mesmo em casos onde houve alegações de erros judiciais e injustiças. Em vários casos ela se opôs a revisões que poderiam ter levado à liberdade pessoas condenados injustamente. 

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Esse posicionamento foi criticado por defensoras e defensores dos direitos humanos e reformadoras e reformadores do sistema judicial. Essas pessoas argumentavam que Harris priorizava a condenação em vez da justiça correta. É importante lembrar que, tal como no Brasil, o sistema penitenciário estadunidense, o maior do mundo, com mais de 2 milhões de pessoas, está composto por uma população majoritariamente negra. E isso não impediu que uma procuradora negra defendesse com entusiasmo a pena capital, que também atinge majoritariamente homens negros e mulheres negras. 

Mas a coisa não ficou somente por aí. Harris também resistiu a políticas que visavam reduzir o encarceramento em massa. Em vários momentos, a atual candidata democrata à Presidência dos Estados Unidos se opôs a iniciativas que buscavam reabilitar infratores e reduzir as penas de prisão. Sua postura foi vista por muitas pessoas interessadas em justiça criminal como uma barreira para reformas mais progressistas no sistema de justiça penal. Durante seu tempo como Procuradora-Geral, Harris recebeu críticas por sua postura em relação a processos judiciais envolvendo políticas de prisão e multas. Alegava-se de que sua administração apoiava práticas que oneravam desproporcionalmente pessoas de baixa renda e minorias raciais. Isso gerou preocupações sobre o impacto social e econômico das suas políticas sobre essas comunidades. Ela também é criticada por não ter feito o suficiente para responsabilizar policiais em casos de brutalidade.

No entanto, por ser mulher, e negra, Kamala Harris tem sido ovacionada, apoiada e celebrada por muitas mulheres, e também pela comunidade negra, dentro e fora dos Estados Unidos, sem que essas posturas desumanas estejam sendo consideradas. É um erro muito grave, pois a eleição de alguém por sua cor de pele ou por seu gênero não significa que esse alguém vá representar dignamente, com a energia que as causas dessas comunidades exigem.

Representatividade é luta

É interessante assinalar que as pessoas devem ter o direito às escolhas políticas. Ser de direita ou de esquerda não depende de gênero, de raça ou condição socioeconômica, mas intimamente depende da maneira como a pessoa enxerga a sociedade em que vive, enxerga o sistema que rege esta sociedade. Algumas pessoas defendem ideias (de esquerda ou de direita, não importa), tendo plena consciência de seus significados, e outras tantas que nem sabem os motivos pelos quais defendem (mas este é tema para outro texto).

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Voltando à questão de representação e representatividade, é interessante nos debruçarmos para observar as candidaturas apresentadas às Prefeituras e Câmaras Municipais nas próximas eleições, muitas das quais “pegam carona” em causas muito sérias e profundas, que dizem respeito a muitas vidas humanas que integram as populações oprimidas, mas, que, na realidade, se tratam apenas de pessoas cujo discurso em defesa dessas populações é um mero instrumento para angariar votos. Basta vermos os históricos dessas pessoas, como vimos o de Kamala Harris, para nos darmos conta de que se trata de retórica para receber o apoio de grupos oprimidos.

Portanto, pesquisar o histórico desses/dessas candidatos/candidatas é a única maneira de mitigar os riscos de nos deixar seduzir por falsos/falsas defensores/defensoras das nossas causas. É claro que essa pesquisa não assegura nada, uma vez que o ser humano pode mudar de atitude a qualquer momento. No entanto, de posse do histórico, teremos uma ideia acerca das condutas dessas pessoas, o que nos indicará se vale a pena ou não arriscar e confiar que elas de fato irão defender as causas sobre as quais pautam seus discursos.

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É importante ressaltar o quanto é necessário que tenhamos diversidade de representações nos espaços políticos. Precisamos de mais mulheres, de mais pessoas negras, entre outros/outras representantes de grupos oprimidos, mas devemos adotar um “cuidado cirúrgico” na hora da escolha, para que, após eleitas, essas pessoas assumam, de fato, nossa representatividade, lutando pelas nossas causas, buscando fazer valer as nossas vozes e, principalmente, os nossos direitos. Ou seja, que em seus mandatos, representação e representatividade caminhem juntas.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Verbena Córdula Graduada em História, Doutora em História e Comunicação no Mundo Contemporânea pela Universidad Complutense de Madrid e Professora Titular da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), Ilhéus, BA.

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