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Batalha de Campo Grande, por Pedro Américo (óleo sobre tela, 1871)

1869: a batalha de Acosta Ñu e o massacre de crianças paraguaias pelo exército brasileiro

"Soldadinhos", como foram chamadas as crianças paraguaias, não tinham sequer força física para empunhar armas, sobretudo com fome e muitas vezes doentes
Carlos Russo Jr
Diálogos do Sul Global
Florianópolis (SC)

Tradução:

Entre 1865 e 1870, o próspero, industrializado e independente Paraguai enfrentou os exércitos do Brasil (em sua primeira grande campanha), da Argentina e do Uruguai, posteriormente. Calcula-se que, em cinco anos, tenham morrido entre ao redor de trezentos mil paraguaios, o que correspondia, na época, à metade da população do país.

No início de 1869, após quatro anos de lutas, já se esperava que a guerra tivesse chegado ao fim com as vitórias obtidas pela Tríplice Aliança. Entretanto, Solano Lopez, fugitivo, refugiara-se na Cordilheira dos Andes. Com o exército paraguaio praticamente exterminado, figuras importantes dentro das forças aliadas chegaram a sinalizar que a guerra havia terminado e que seria o momento de deixar o país.

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A principal dessas figuras era o general Luís Alves de Lima e Silva, futuro Duque de Caxias e patrono do Exército Republicano, que comandava as tropas imperiais brasileiras no Paraguai. “Quanto tempo, quantos homens, quantas vidas e de quantos recursos necessitaremos para terminar a guerra, quer dizer, para transformar em fumaça e pó toda a população paraguaia, para matar até os fetos no ventre das mulheres? ”, argumentou Caxias com o imperador Dom Pedro II, antes de afastar-se definitivamente das operações.

A ordem imperial, entretanto, era de que a guerra só chegaria ao fim com prisão ou a morte do presidente do Paraguai, o que só aconteceria em 1º de março de 1870, prolongando miseravelmente o extermínio. “Não tinha necessidade de fazer toda essa caçada, em que a população civil foi a principal prejudicada” (Caxias).

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Duque de Caxias foi substituído pelo Conde d’Eu, genro do imperador. E foi sob o comando do Conde d’Eu, marido da Princesa Isabel, com as forças paraguaias praticamente destruídas e contando com um número muito pequeno de soldados adultos, que ocorreu o auge de barbárie de toda a guerra, na Batalha de Campo Grande, também conhecida como a “Batalla de los Niños” ou “Acosta Ñu”, bem no centro geográfico do Paraguai.

A batalha de Campo Grande

Dos cerca de seis mil paraguaios que lutaram sob o comando do general Bernardino Caballero, a maioria era crianças de no máximo quinze anos. E elas lutaram contra vinte mil homens da Tríplice Aliança durante oito horas! As tropas aliadas alcançaram a retaguarda das forças paraguaias em San Bernardino em 16 de agosto. A batalha começou às oito e meia da manhã numa vasta planície de cerca de doze quilômetros quadrados, que era ideal para a cavalaria brasileira. Esta, porém, estava na retaguarda e não conseguia avançar pelo caminho estreito, o que impediu sua ação em um primeiro momento.

Devido a isto, o ataque infanticida brasileiro teve de iniciar com a infantaria, na qual um batalhão era comandado pelo coronel Manoel Deodoro da Fonseca, futuro Proclamador da República. A batalha durou oito horas, com os paraguaios oferecendo feroz resistência. Quando ela se aproximava do final, o Conde d’Eu ordenou que ateassem fogo ao capinzal para matar soldados paraguaios, caídos ou feridos no campo de batalha. “Não fazemos prisioneiros”.

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Sobre esse assassinato em massa, o Conde de Taunay relata: “Aqueles mal-aventurados, caídos no cumprimento do áspero dever, vendo o incêndio vir ao encontro dos seus pobres corpos exangues ou com os membros quebrados, cercá-los de todos os lados, empolgá-los, abafá-los em rolos de espesso fogo, sufocá-los, já martirizados por medonha sede ou então queimá-los aos poucos em vida! ”

Mas o que de ainda mais chocante aconteceu na Batalha de Campo Grande para que ela se tornasse, nas palavras de Chiavenato*, o “símbolo mais terrível da crueldade dessa guerra”? Acontece que a batalha foi protagonizada, do lado paraguaio por crianças e adolescentes obrigados a empunhar uma arma. “O ano de 1869 marca definitivamente o conceito de guerra total”, diz o historiador paraguaio Fabián Chamorro, antecipando-se às monstruosidades que ainda seriam vividas nas Primeira e Segunda Guerra Mundial.

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Enquanto lutava pela própria sobrevivência, Solano López recrutara soldados cada vez mais jovens. “Primeiro eles tinham 16 anos, depois 14, 13 anos”, relata Barbara Potthast, professora de História Ibérica e Latino-americana na Universidade de Colônia, na Alemanha. A historiadora encontrou até registros de alistamento de meninos de 11 anos – que não chegavam a ir para frente de batalha, mas se dedicavam a outras tarefas, como transportar materiais. O mesmo acontecia com as mulheres, encarregadas da logística. “Não era um exército profissional como conhecemos hoje”, pontua Potthast. “Como muitos dizem, era o ‘povo pegando em armas’.”

Segundo a historiadora, eles foram alcançados pelos aliados – em sua maioria soldados brasileiros – e “não tiveram outra opção a não ser lutar”. A batalha de Acosta Ñu foi, nas palavras de Chamorro, “um verdadeiro massacre”. “De um lado estavam os brasileiros, com vinte mil homens”, escreveu Chiavenato. “De outro, os paraguaios, com três mil e quinhentos soldados, entre 9 e 15 anos, além de crianças de 6, 7 e 8 anos que também acompanhavam o grupo.” As crianças e jovens lutaram ao lado de alguns poucos veteranos de guerra. De qualquer forma, existia uma absoluta assimetria grande entre os dois exércitos, que não somente era numérica e etária, mas também tecnológica. “As armas usadas pelos paraguaios tinham um alcance máximo de 50 metros”, diz Chamorro, enquanto “os rifles Spencer, usados, sobretudo pela cavalaria imperial do Brasil, tinham um alcance de mais de 500 metros. ” “Ou seja, para que o paraguaio pudesse confrontar um brasileiro, tinha que encarar dez descargas de bala. Era impossível”, completa.

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A isso se soma o fato de que os mais novos não tinham nem força física para empunhar as armas, muito menos nas condições em que estavam: com fome e muitas vezes doentes, acrescenta Potthast. A batalha teve poucas baixas do lado brasileiro, menos que cem soldados e praticamente nenhum sobrevivente do lado paraguaio. “As crianças de 6 a 8 anos, no calor da batalha, aterrorizadas, se agarravam às pernas dos soldados brasileiros, chorando, pedindo que não os matassem. E eram degoladas no ato”, escreveu Chiavenato em sua obra, conforme a tradução do Portal Guaraní.

Batalha de Campo Grande, por Pedro Américo (óleo sobre tela, 1871)

A degola praticada pelos soldados de D’Eu ganhou um nome: gravata vermelha! Ela voltaria a ser largamente utilizada alguns anos após, na Guerra de Canudos. O general brasileiro Dionísio Cerqueira, entretanto, que participou da batalha, viu o massacre de outra perspectiva. “Que luta terrível entre a piedade cristã e o dever militar! Nossos soldados diziam que não lhes dava gosto lutar contra tantas crianças. ”

Dia da Criança no Paraguai é em 16 de agosto

“O campo ficou repleto de mortos e feridos do lado inimigo, entre os quais nos causava muita pena, pelo número elevado, os soldadinhos, cobertos de sangue, com as perninhas quebradas, alguns nem sequer haviam atingido a puberdade”, completou o general.

Potthast, por sua vez, encontrou relatos que afirmavam que, pelo contrário, os pequenos não choravam, mesmo quando eram feridos. Nas palavras da historiadora alemã, o único ponto em comum entre os observadores e historiadores de todos os lados era o “valor e a coragem da luta dos paraguaios, inclusive a dos meninos soldados”. “Essa guerra é o acontecimento mais importante da história do Paraguai”, disse a historiadora. “É pedra fundamental do nacionalismo que se desenvolveu no século XX. ”

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A ideia difundida foi de que os paraguaios “perderam a guerra, mas lutaram com heroísmo, e é desse heroísmo que tiram sua força”, destaca Potthast.

Ref.: Julio José Chiavenato, “Genocídio Americano: a Guerra do Paraguai”, Ed. Brasiliense, 1980.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Carlos Russo Jr Carlos Russo Jr., coordenador e editor do Espaço Literário Marcel Proust, é ensaísta e escritor. Pertence à geração de 1968, quando cursou pela primeira vez a Universidade de São Paulo. Mestre em Humanidades, com Monografia sobre “Helenismo e Religiosidade Grega”, foi discípulo de Jean-Pierre Vernant.

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