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Há entre 12 e 13 milhões de sudaneses deslocados internamente e outros quase quatro milhões que se refugiaram em países vizinhos (Foto: Forças Armadas do Sudão)

2 anos de guerra no Sudão: entre a pior crise humanitária do mundo e o desespero por refúgio

Os confrontos entre o exército do Sudão e os paramilitares das FAR já mataram pelos menos 100 mil pessoas e deslocaram outros 17 milhões, dentro e fora do país
Guadi Calvo
Rebelión
Buenos Aires

Tradução:

Ana Corbisier

A guerra civil no Sudão, que completará dois anos em 15 de abril, além de ter devastado integralmente o país, demolindo praticamente toda sua infraestrutura, reduzindo a escombros suas cidades e a maioria de seus hospitais, e impedindo que as áreas de produção agrícola pudessem continuar sendo exploradas, provocou a maior crise humanitária da atualidade.

Com um número desconhecido de mortos, que não podem ser menos de 100 mil, e entre 12 e 13 milhões de deslocados internamente e outros quase quatro milhões que se refugiaram em países vizinhos, o país inteiro está sujeito às ações de dois grupos rivais: as Forças Armadas Sudanesas (FAS) e a organização paramilitar conhecida como Forças de Apoio Rápido (FAR). A magnitude desta guerra e suas consequências mais imediatas estão afetando os países vizinhos, onde não param de chegar diariamente centenas de refugiados.

Ao Chade já chegou mais de um milhão — a nação que recebeu mais asilados e cujos acampamentos de acolhida estão transbordando e exaustos —, seguido pelo Sudão do Sul, com aproximadamente 500 mil, onde a situação também é extremamente difícil. Já a fronteira com o Egito, que há meses se encontra militarizada, é a mais resistente a receber refugiados, sendo quase impossível ingressar em seu território. Ao mesmo tempo, as fronteiras com a Líbia e a Eritreia, devido à situação interna destes países, não são abertas aos refugiados, assim como a República Centro-africana, onde se vive uma situação de guerra civil adormecida, sempre pronta a recomeçar.

Etiópia em situação crítica

A Etiópia é a nação que menos refugiados recebeu, com cerca de 300 mil, possivelmente por sua própria situação interna. É preciso lembrar que esta nação, até novembro de 2022, viveu outra profunda guerra civil, iniciada em novembro de 2020, entre o governo do país e a secessionista região de Tigray. Os exatos 24 meses de combates, além de terem deixado um milhão de mortos, centenas de milhares de desaparecidos e muitas contas para pagar, provocou um estado de instabilidade nas regiões mais afetadas pela guerra, Tigré e Amara, que está muito longe de acalmar.

É justamente a região etíope de Amara, onde operam grupos separatistas que com muita frequência se enfrentam com o exército federal de Addis Abeba, onde se situa pela vizinhança o grosso dos refugiados sudaneses. Calcula-se que desde o começo da guerra chegaram ali cerca de 200 mil sudaneses, que se somam aos 90 mil que já viviam na Etiópia antes de abril de 2023.

Políticas etíopes aos refugiados

Embora, depois do início da guerra, a Etiópia tenha sido permeável ao ingresso de mais sudaneses, à medida que o conflito se estende, tanto as autoridades federais, encabeçadas pelo Primeiro-Ministro, Abiy Ahmed, como as do governo regional, estão endurecendo suas políticas em relação aos refugiados. Mesmo antes da guerra e até o último mês de outubro, a falta de visto não tinha sido um empecilho para que os sudaneses pudessem transitar e se instalar sem maiores inconvenientes tanto na área rural como nos centros urbanos da Etiópia.

Porém, os sudaneses se somaram aos cerca de um milhão de refugiados provenientes de Somália, Eritreia e Sudão do Sul, que foram chegando à Etiópia também escapando de guerras e repressões. Então, em outubro de 2024, a situação mudou drasticamente, quando Addis Abeba decretou para todo cidadão sudanês a necessidade de obter um visto, com exceção daqueles que optassem por permanecer nos acampamentos destinados aos imigrantes, cada vez mais carentes e sem segurança. Quem pretende se instalar fora deles deve pagar mensalmente o equivalente a 100 dólares e, se não o fizer, uma multa de dez dólares diários.

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A falta de documentação, que atinge cerca de 15 mil cidadãos sudaneses espalhados pela Etiópia, os impede de acessar serviços essenciais como atenção médica, trabalho e educação, arriscando-os também a cair nas mãos de máfias locais que podem utilizá-los como mão de obra escrava. São também obrigados a se alistar em alguma das muitas milícias regionais como as FANO, e no caso das mulheres, subtidas a cadeias de tráfico para exploração sexual.

Os refugiados sudaneses, para ingressar na Etiópia, devem fazê-lo pelas cidades fronteiriças de Metemma e Assosa, onde são registrados e destinados a algum dos acampamentos administrados pelas Nações Unidas e sob a autoridade local. E se pretendem viver fora dos acampamentos, devem tramitar a autorização na oficina governamental do Serviço de Refugiados e Repatriados, o que é cada vez mais difícil de conseguir.

Os solicitantes devem contar com um aval local, além de demonstrar que têm meios para sua manutenção. Há muitos casos em que, dada a insustentável vida nos acampamentos extremamente carentes, muitos se viram obrigados a escapar para a floresta, onde ficaram presos entre as autoridades etíopes, as milícias locais e a guerra em seu país. Na selva, precisam enfrentar as adversidades de uma vida na intempérie, com o constante perigo de serem atacados por animais silvestres, desde hienas a víboras e escorpiões, enquanto sua única meta é poder se alimentar. Sob essas condições, o índice de suicídios aumenta constantemente. A população estimada que se encontra neste limbo se aproxima de sete mil pessoas.

Razões para continuar escapando

Enquanto milhões de sudaneses fogem desesperados — deixando para trás absolutamente tudo, inclusive familiares que por algum motivo não podem se mobilizar, buscando refúgio fora do país, amontoando-se em acampamentos ou perdidos no campo, buscando um lugar mais seguro do que aquele que acabam de deixar — a guerra continua, inesgotável.

A conhecida organização civil Rede de Advogados de Emergência denunciou que os paramilitares das FAR assassinaram centenas de habitantes das aldeias al-Kadaris e al-Khelwat, às margens do Nilo Branco, 100 km ao sul de Cartum. Outras fontes indicam que o número seria mais do que o dobro do denunciado, enquanto uma cifra significativa de pessoas continua desaparecida.

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O fato ocorreu depois de uma operação dos paramilitares, que se estendeu por três dias nas aldeias mencionadas, onde os criminosos violaram dezenas de mulheres, torturaram a população em geral e incendiaram casas e depósitos de alimentos, além de apelar ao recrutamento obrigatório de civis, inclusive de crianças. Acredita-se que os desaparecidos podem ter morrido afogados no rio quando as FAR abriram fogo para impedir que os aldeões o cruzassem.

Ao sul de Cartum, até a fronteira com o Sudão do Sul, uma distância de 400 km, o exército controla Rabak, a capital do estado de Nilo Branco, além de outras duas cidades importantes e uma base militar chave. As FAR controlam o norte do estado, inclusive as duas aldeias atacadas em 17 de fevereiro, onde vários dias depois os mortos continuavam abandonados nas ruas, enquanto outros, assassinados no interior de suas casas, também continuam no local, já que a presença dos paramilitares torna impossível seu resgate.

 

No resto do país, os combates continuam se intensificando. O exército avançou nas últimas semanas aos últimos setores de Cartum, que continuavam em mãos dos paramilitares, procedendo agora à limpeza destes últimos focos de violência. Enquanto isso, as FAR, particularmente, se concentram em reeditar o genocídio de 2003, em uma tentativa de concretizar em Darfur a limpeza étnica das minorias não árabes na região que não puderem assassinar anteriormente, procedendo a execuções sumárias, enterros clandestinos, deslocamentos forçados e uma exacerbada violência sexual.

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Enquanto isso, a última grande cidade da vasta região de Darfur, el-Fasher, a capital da província de Darfur do Norte, ainda em poder do exército, continua sitiada pelos paramilitares, razão pela qual espera-se que, se for tentado um assalto definitivo de tomada do controle por parte das FAR, poderia desencadear a maior matança desta guerra.

A Rede de Advogados de Emergência diz ter documentados sobre os abusos cometidos pelos dois grupos — exército e FAR — desde o início da guerra. A Rede denuncia que civis do distrito de Nilo Oriental, suspeitos de ter colaborado com os paramilitares, foram objeto de execuções sumárias ou de desaparecimentos forçados por parte dos grupos de autodefesa que apoiam o exército, em um país preso entre a guerra e o nada.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

Guadi Calvo

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