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ToggleDos dias 16 a 20 de julho, foi realizada em Goiânia (GO) a 60º edição do Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), o Conune. Nesse período, mais de 20 mil estudantes de todo o Brasil reuniram-se na capital de Goiás para discutir os rumos da maior entidade de representação estudantil da América Latina, bem como eleger a sua próxima diretoria.
Do início ao fim, o congresso foi marcado pela disputa entre os dois principais campos da entidade. De um lado, a ala majoritária, composta pelas juventudes do PT, PCdoB e setores do PSOL como a Juventude Sem Medo, demarcaram sua presença sob as bandeiras governistas como a taxação dos super ricos e a soberania nacional, além da retirada da educação do Arcabouço Fiscal. Contrariamente, a chamada Oposição de Esquerda, composta pelas juventudes do PCBR, UP, PSTU e MES, marcou sua intervenção por meio das críticas à falta de democracia na entidade, a necessidade de independência frente ao governo federal e o fim do Novo Arcabouço Fiscal.
O calendário do congresso foi composto por uma série de mesas de discussão sobre diversos âmbitos da educação separados em três eixos principais: o papel das big techs enquanto eixo mais consensual entre os diferentes campos presentes, o desenvolvimento nacional e a extrema-direita como obstáculo a esse projeto, e, por fim, a centralidade da redução da escala 6×1 e do Novo Arcabouço Fiscal diante da atual conjuntura brasileira.
O evento contou também com um ato político realizado pelos estudantes nas ruas de Goiânia em defesa da soberania nacional e pela solidariedade à Palestina, demarcando a centralidade da questão para o Movimento Estudantil em solidariedade internacional ativa, relembrando o histórico do ME e da UNE de tratar pautas para além da própria universidade enquanto braço auxiliar das lutas de toda a classe trabalhadora. Foi pautada ainda a posição estratégica dos estudantes em relação ao rompimento imediato dos acordos acadêmicos entre as universidades brasileiras e israelenses, que contribuem para o genocídio do povo palestino através da construção de ciência e tecnologia militar para Israel.
Sem dúvidas, entre as “1001” disputas que compuseram o evento, as mais basilares, e não poderia ser diferente, diziam respeito ao papel do Movimento Estudantil, bem como ao que sustenta todo o projeto da educação pública no país: o seu financiamento. Essas duas questões sintetizam as disputas construídas pelas alas da entidade, bem como por cada juventude que ali esteve presente, permeando nesse sentido todo o Conune. Nesse contexto, o próprio papel da UNE se torna aspecto-chave para a compreensão sobre os debates que dividem o Movimento Estudantil brasileiro e, diante disso, quais devem ser suas tarefas para o próximo período.
O histórico da UNE e a entidade atualmente
Quem acompanha a história das grandes mobilizações nacionais já deve ter se deparado com o papel desempenhado pela UNE. Criada em 1937, a entidade foi protagonista em importantes episódios da vida política e social brasileira, como nas campanhas “O Petróleo é Nosso!” e “Diretas Já!”. Desde então, a organização se consolidou como um ator relevante não apenas na defesa de pautas ligadas à educação, mas também em mobilizações de caráter mais amplo, refletindo uma concepção de movimento estudantil que ultrapassa os limites das reivindicações específicas do setor.
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Essa trajetória levanta questões importantes sobre o papel desempenhado – ou que já foi desempenhado – pelo Movimento Estudantil brasileiro. De um lado, há quem defenda que sua atuação deva se restringir à melhoria das condições educacionais. Por outro, o histórico da UNE sugere uma visão mais abrangente, que enxerga a luta por educação como parte de um projeto muito mais amplo de transformação social. Dentro dessa perspectiva, defender a educação pública implica também questionar os rumos do país e atuar em defesa de um projeto nacional que contemple o todo, considerando que o que se desenrola no âmbito da educação não passa de desdobramentos locais de um mesmo processo.
Nos últimos anos, no entanto, o Movimento Estudantil passou por um processo de enfraquecimento em comparação ao papel central que ocupou no século 20. Essa mudança é reconhecida por diferentes setores e pode ser atribuída a um conjunto de fatores que contribuíram para o seu isolamento e perda de capacidade de mobilização. Desde a redemocratização, observou-se um declínio gradual na força da UNE e dos movimentos sociais de maneira geral. Entre os fatores apontados estão a implementação de reformas de orientação neoliberal, a mudança no perfil dos estudantes, o distanciamento das universidades públicas em relação à sociedade, a valorização do ensino técnico em detrimento de uma formação crítica e, por fim, a chegada dos governos progressistas, que alteraram o papel e a relação entre movimentos sociais e o Estado.
Esse contexto ajuda a explicar o cenário atual: uma UNE fragilizada, com pouca conexão com a base estudantil e dificuldades para responder às demandas que surgem de maneira desarticulada em diferentes partes do país. Em meio a isso, surgem críticas sobre a relação da entidade com políticas governamentais que, segundo alguns analistas, entram em contradição com a defesa da educação pública. Programas como PROUNI e FIES, por exemplo, ainda que tenham possibilitado o acesso de estudantes de baixa renda ao ensino superior, também são apontados como mecanismos que aprofundam o endividamento estudantil, chegando a índices milionários, e fortalecem o setor privado em detrimento do público. A defesa da expansão do ensino à distância (EAD), adotada por setores da UNE, também tem gerado controvérsia dentro desse debate.
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Tais elementos reacendem uma discussão fundamental sobre o papel do Movimento Estudantil na atualidade. Embora seja evidente que o movimento se transformou ao longo do tempo, suas bandeiras parecem, em muitos momentos, ter se tornado mais genéricas. Fala-se em defender a educação, mas sem explicitar qual modelo de educação se deseja. Defende-se a ampliação do ensino superior, ainda que por meio da expansão privada, com todas as implicações que isso acarreta. Esse quadro sugere certa dificuldade em formular diagnósticos mais profundos, o que tem afetado a capacidade de ação e mobilização do movimento.

Rediscutir o papel do Movimento Estudantil, portanto, aparece como uma tarefa central. Mais do que um resgate de um passado simbólico, trata-se de compreender os desafios do presente e construir, a partir dessa reflexão, uma entidade capaz de se reconectar com os estudantes e com os grandes temas nacionais – compreendendo que o projeto educacional brasileiro está inserido em um projeto maior de país.
Financiamento e Arcabouço Fiscal
Falar do financiamento dentro desse processo é, então, justamente colocar as regras que regem o jogo, afinal, “quem paga a banda, escolhe a música”. O modelo de educação superior e seu currículo, os programas de permanência estudantil e contra a evasão escolar, além do próprio funcionamento das instituições – todos debates que perpassaram o congresso dos estudantes – dizem respeito, de maneira central, ao financiamento da educação no país.
Como dito anteriormente, quando se é pautado um outro projeto de educação – para não falar em outro projeto de país – ou mesmo somente a defesa abstrata da educação pública, o financiamento é aspecto básico desse processo. Não são poucos os artigos que sugerem o avanço de um projeto mercadológico na estrutura educacional brasileira que, por um lado, aumenta exponencialmente o modelo de universidades privadas voltadas ao ensino técnico, e por outro, faz avançar o processo de sucateamento das instituições de ensino superior públicas, responsáveis pela maior parte da produção de ciência e tecnologia nacional. Esses dois processos revelam a interferência do financiamento dentro do projeto de educação construído no Brasil e, nesse sentido, sua posição central para os debates.
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É nesse sentido que, mesmo quando não era palco, o Novo Arcabouço Fiscal, projeto desenvolvido pelo ministro da Fazenda Fernando Haddad, também foi centro dos debates do evento. Do ponto de vista dos limites institucionais, esse é o principal empecilho, apontado tanto por estudantes quanto por especialistas como matematicamente incompatível com os pisos constitucionais de investimento não só em educação, mas também em saúde. Para muitos, o Arcabouço representa uma continuidade da política de austeridade implementada com o Teto de Gastos, aprovado durante o mandato de Michel Temer.
Essa limitação dos gastos públicos ocorre uma vez que a lei estabelece que o crescimento dos gastos pode corresponder apenas a 70% do crescimento da receita do governo, caso consiga atingir as metas de superávit primário. A meta, para 2026, é de R$ 34,3 bilhões (0,25% do PIB). Ou seja, se o governo conseguir fazer “sobrar dinheiro”, ou seja, cortar gastos, lhe será permitido aumentar seu investimento, no ano seguinte, em 70% daquilo que aumentou na arrecadação. Se tivesse um aumento de 10%, aumentaria 7% nos gastos. Se não conseguir a meta, só pode aumentar em 50% seus gastos, o que seria 5%. No entanto, além desse teto, há um teto máximo de aumento, de 2,5%. Nesse sentido, mesmo que se tenha um aumento nas receitas, as despesas não podem acompanhar o mesmo ritmo. A título de comparação, o aumento de gastos no primeiro ano de Bolsonaro foi de 2,9%, o teto imposto pela política (2,5%) demarca-se historicamente como a menor taxa de gasto público da Nova República.

Estas regras do Novo Arcabouço Fiscal impõem um risco direto aos pisos mínimos constitucionais para saúde e educação. A Constituição Federal diz que 18% da receita proveniente de impostos deve obrigatoriamente ser direcionada aos gastos com educação e 15% da receita corrente líquida para a saúde. Só que os tetos criados são contraditórios com os pisos constitucionais. Se tivermos uma arrecadação alta, duas opções se colocam: ou o piso não vai ser cumprido, já que os gastos obrigatórios ultrapassariam a barreira de 2,5%, ou outras áreas sofrerão redução nos gastos discricionários para que os pisos sejam cumpridos.
Dentro dos debates da UNE, a questão se desdobra entre duas opções apresentadas pelas alas em disputa: retirar a educação do Arcabouço Fiscal ou buscar o fim da política como um todo. A questão retorna ao tópico anterior sob a totalidade do projeto nacional. O arcabouço, em seu médio e longo prazo, produz a redução da capacidade do Estado. Por meio disso, incentiva-se em diversos níveis a produção de Parcerias Público Privadas (PPPs) e a privatização de serviços públicos, que por si geram imensos prejuízos à produção de empregos e à qualidade dos serviços prestados, uma vez que o objetivo da iniciativa privada não é outro que não produzir lucro.
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Outro ponto de preocupação são as sanções previstas em caso de descumprimento das metas fiscais por dois anos consecutivos: entre as medidas previstas estão a proibição de novos concursos públicos e o impedimento de reajustes reais no salário mínimo. Ainda que esses efeitos não afetem diretamente os repasses à educação, impactam significativamente o entorno da política educacional — como a geração de empregos, contratação de professores e o poder de compra da população.
O debate sobre financiamento, portanto, não se limita à técnica orçamentária. Ele expressa escolhas políticas que, em última instância, moldam o projeto de educação e, por extensão, de país.
Os rumos da UNE
O 60º Conune expôs não apenas a pluralidade de vozes dentro do Movimento Estudantil, rompendo a ideia de uma massa homogênea, mas também as contradições que hoje desafiam sua relevância e capacidade de mobilização. Ao passo que a UNE busca reafirmar seu histórico de protagonismo em lutas nacionais, as disputas internas e a dificuldade de dialogar com a base estudantil revelam uma entidade em busca de reencontro com seu papel.
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No centro desse impasse está o debate sobre o financiamento da educação, que, embora transversal, permanece como um ponto nodal de tensão entre a defesa de políticas governamentais e a crítica à lógica fiscal que limita investimentos públicos que impactam a educação. No centro disso encontra-se o Novo Arcabouço Fiscal, enquanto principal empecilho para o desenvolvimento da educação pública, bem como de toda a capacidade do Estado no geral.
A UNE, como principal mecanismo centralizador e organizador da categoria Estudantil, encontra-se diante de uma encruzilhada histórica. Ou reafirma sua autonomia e capacidade de pressionar por um projeto de educação pública amplo, crítico e socialmente comprometido, ou continuará sendo vista como uma engrenagem a reboque de agendas institucionais que, em muitos casos, colidem com os interesses da maioria dos estudantes. O desafio está posto — e dele depende não só o futuro da entidade, mas também o papel que a juventude organizada terá na reconstrução de um projeto nacional pautado na transformação social.





