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Os ocidentais saíram das trincheiras direto para o protagonismo, querendo tomar para si a glória da derrota ao nazismo, em um verdadeiro roubo da memória (Imagem: Reprodução / Universidade Federal de Kazan, Rússia)

80 anos do Dia da Vitória: a tarefa de defender a memória soviética frente à fantasia ocidental

Reconhecer o papel central da URSS na vitória contra o nazismo incomoda a narrativa liberal ocidental, que insiste no revisionismo histórico — por meio da política, do cinema e do jornalismo — para glorificar seu poder e legitimar sua dominação

Verbena Córdula
Diálogos do Sul Global
Ilhéus

Tradução:

Dizem que foram os estadunidenses que venceram Adolf Hitler. Dizem, também, que Winston Churchill salvou o mundo. Dizem que o Dia D foi o ponto de virada. Dizem tantas coisas — e repetem tanto —, que acabamos quase acreditando. Mas a Segunda Guerra Mundial não foi decidida na praia da Normandia, como contam a historiografia, o cinema e o jornalismo do Ocidente. Essa guerra foi decidida nos campos da Batalha de Stalingrado, com muito sangue derramado, de cidadãos e cidadãs da então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Assim foi o Dia da Vitória. 

O final dessa guerra, que começou em 1939, quando Hitler invadiu a Polônia, tem sido mostrada, anos após anos, década após décadas, como sendo mais um dos atos heroicos dos Estados Unidos da América (EUA), os “salvadores do mundo”. Ocorre, no entanto, que os estadunidenses só entraram no conflito depois do ataque a Pearl Harbor, em dezembro de 1941 — e mesmo assim, sua ação na Europa foi “cautelosa”. O então primeiro-ministro da Grã-Bretanha, Winston Churchill, assim como o ocupante da Casa Branca daquele momento, Franklin Roosevelt, adiaram, por anos, o tão prometido “Segundo Front” na Europa. Enquanto isso, Josef Stalin clamava por ajuda, e seus soldados caíam aos milhares tentando conter o exército nazista.

A URSS resistiu, sozinha, por quase três anos antes que os “Aliados ocidentais” decidissem entrar no conflito. Portanto, foi nas trincheiras congeladas do Front Oriental que o Exército Vermelho — composto por operários, camponeses e mães com fuzis nos ombros — aniquilou cerca de 80% das forças alemãs. O nazismo morreu ali, entre destroços, e também cadáveres soviéticos. O resto foi conto, foi filme, foi fotografia, foi reportagem, com “recorte” ocidental.

A historiografia hegemônica — capitalista, ocidental e, sobretudo, de memória seletiva — insiste na narrativa que diz, com todas as letras, que a tal “libertação da Europa” pelas tropas anglo-estadunidenses começou apenas em 1944, com o desembarque na Normandia. Ou seja, depois que o Exército Vermelho já havia retomado várias cidades importantes — tais como Kiev (capital ucraniana) e Minsk (capital bielorrussa), esmagando a resistência alemã na Batalha de Kursk — e já marchava rumo ao centro do poder nazista — a cidade de Berlim. Naquele momento, a Alemanha já estava em colapso. E os Aliados (capitaneados pelos Estados Unidos e pela Grã-Bretanha) entraram tardiamente, quando o inimigo já estava derrotado, quando a vitória já tinha sido escrita com sangue soviético. Mas, ainda assim, os ocidentais saíram das trincheiras direto para o protagonismo, querendo tomar para si a glória, em um verdadeiro roubo da memória.

Devidos créditos os heróis soviéticos

A narrativa ocidental — seja nos livros escolares, seja nas produções cinematográficas ou através de suas mídias hegemônicas  — transformou o Front oriental e Stalingrado em nota de rodapé. Churchill virou herói da liberdade, mesmo defendendo colônias, mesmo sendo abertamente racista. Roosevelt foi transformado em símbolo da paz, ainda que aprovando campos de concentração para nipo-estadunidenses (japoneses que nasceram/viviam nos Estados Unidos foram presos, torturados, apontados como traidores) e demorando deliberadamente a abrir o segundo Front. Enquanto isso, os heróis soviéticos sumiram da memória coletiva: Zhukov, Rokossovsky e Chuikov, por exemplo — sobrenomes que soam estrangeiros demais para os livros do Ocidente.

Foi Georgy Zhukov o responsável por coordenar a defesa de Moscou em 1941, a contraofensiva que empurrou os alemães para longe da capital soviética e, mais tarde, desempenhou papel central nas batalhas de Stalingrado, Kursk e Berlim. Konstantin Rokossovsky elaborou e executou o plano de cerco em Kursk e liderou parte fundamental da Operação Bagration (nome atribuído à ofensiva do Exército Vermelho que destruiu os alemães em junho de 1944), inclusive convencendo Stalin de que a sua ideia era a melhor. Por último — e não menos importante —, Vasily Chuikov, general das tropas soviéticas que defenderam Stalingrado, transformou a luta urbana em uma guerra de atrito mortal para os nazistas. Foi sob o comando dele que os soviéticos desenvolveram táticas de combate corpo a corpo, sobrepondo a vantagem tecnológica da Wehrmacht (as Forças Armadadas Nazistas).

O cinema e o jornalismo ocidental construíram uma epopeia anglo-estadunidense onde os aliados ocidentais são os “heróis libertadores” da humanidade, e os soviéticos são, no máximo, uma nota de rodapé desconfortável (Imagem: Reprodução / Universidade Federal de Kazan, Rússia)

Foi em Stalingrado, entre 1942 e 1943, que o Terceiro Reich começou a morrer. Os alemães enviaram 300 mil homens. Saíram pouco mais de 90 mil — rendidos, famintos, humilhados. A maior derrota da Wehrmacht. E então veio o avanço soviético com a libertação da Polônia, a libertação de Auschwitz e, por fim, a chegada a Berlim. O Exército Vermelho venceu 600 divisões alemãs — enquanto os Aliados ocidentais enfrentaram 176. Os números falam.

Mas, por que essa história não é normalmente contada dando os créditos ao povo soviético? Muito simples: porque reconhecer o protagonismo soviético é um incômodo para a narrativa liberal do Ocidente. Porque, se assim o fizessem, admitiriam que os socialistas soviéticos — com todos os seus erros, horrores e contradições — salvou o mundo do fascismo. E porque o Ocidente nunca perdoou a URSS por ter sido vitoriosa. Por estes motivos, o revisionismo histórico precisava (e ainda precisa) prevalecer. E, por estas mesmas questões, também veio a Guerra Fria e todas as demais investidas hostis dos Estados Unidos contra a União Soviética — e mais recentemente, contra a Federação Russa. Enfim, por estes motivos, o Ocidente construiu uma historiografia na qual a bandeira dos EUA sempre tremula solitária sobre o mundo “livre”.

Do real ao roteiro

O cinema ajudou (e continua ajudando) muito nessa construção heroica da imagem ocidental na Segunda Guerra Mundial, especialmente a estadunidense. Filmes como “O Resgate do Soldado Ryan” (1998), de Steven Spielberg, colocam os EUA como os grandes protagonistas morais e militares daquele conflito, sem sequer mencionar o papel soviético. “Bastardos Inglórios” (2009), de  Quentin Tarantino, reconstrói a guerra como farsa cômica, mas sem sinal da URSS. No mesmo estilo, “Dunkirk” (2017), de Christopher Nolan, usa uma retirada britânica como se fosse o centro do conflito. Somente para citar três exemplos. O cinema ocidental reescreveu a guerra para caber em um roteiro de três atos: heroísmo estadunidense, sacrifício britânico, vilania nazista. Nada de Stalingrado. Nada de Kursk. Nada de Berlim tomada pelo leste.

No primeiro filme mencionado, a guerra parece ser vencida nas praias da França por “meia dúzia” de homens virtuosos — estadunidenses, claro. A complexidade do conflito é reduzida a um drama moral protagonizado por estadunidenses. Spielberg capricha na questão visual, sobretudo na famosa cena do desembarque na Normandia. Mas, a perspicácia exemplar do cineasta fica mesmo por conta da construção de um mito heroico centrado no soldado estadunidense comum: corajoso, ético, sacrificado, o que dá forma ao enredo, que gira em torno da missão de resgate de um único homem — enquanto, na vida real, milhões morriam nos campos de batalha, muitos dos quais jovens  soviéticos. A Batalha de Stalingrado, o Cerco de Leningrado, a Libertação de Auschwitz pelo Exército Vermelho — tudo isso é ausente ou irrelevante. Assim, através de “O Resgate do Soldado Rayan”, Spielberg omite, exclui, invisibiliza a participação soviética, e constrói “outra história”, na qual o heroísmo estadunidense assume o protagonismo.

Na visão de Tarantino, não foi o Exército Vermelho que chegou a Berlim e hasteou a bandeira sobre o Reichstag (Parlamento Alemão), mas um grupo de guerrilheiros estadunidenses guiados por Brad Pitt. Trata-se de um jogo cênico — mas cínico — que substitui a história por uma fantasia violenta. Em “Bastardos Inglórios”, Tarantino e sua proposta revisionista — e deliberadamente absurda — não deixam nada a desejar. Quem mata Hitler? Não são os soviéticos, como na realidade. É Brad Pitt, que encarna a figura do tenente Aldo Haine, o herói grotesco, desumanizado — típico modelo do cinema de Tarantino — e profundamente enraizado na mitologia do soldado estadunidense libertador e justiceiro.   

Para completar o trio dos exemplos de discursos cinematográficos exaltadores do “heroísmo ocidental”, Christopher Nolan realiza uma obra-prima. Em “Dunkirk”, o resto do mundo não existe. Não há menção à resistência soviética, à invasão da URSS, nem ao papel decisivo do Front Oriental. Quando assistimos ao filme, ficamos com a impressão de que a guerra foi um episódio isolado entre Alemanha e Inglaterra, com a participação ocasional de aviadores heroicos. Através dessa produção cinematográfica, Nolan transforma um recuo militar desesperado em glória nacionalista — quase mitológica —, marcada pela resiliência dos soldados britânicos e solidariedade do povo comum que vai resgatá-los com barcos civis. É incrível a capacidade desse cineasta de fazer da Segunda Guerra Mundial uma experiência exclusivamente anglo-estadunidense. O filme opera como uma sofisticada peça de propaganda patriótica britânica — e, por extensão, ocidental. O resultado é uma história emocionalmente eficaz. Mas historicamente distorcida.

Memória seletiva e ideologicamente alinhada

O jornalismo também se insere nessa tarefa de distorcer a história da Segunda Guerra Mundial, através de veículos como CNN, ABC, BBC e, no Brasil, a Rede Globo, por exemplo. Essas empresas hegemônicas de comunicação consolidaram uma narrativa que retira do povo soviético o direito à sua própria vitória. Em lugar disso, construíram uma epopeia anglo-estadunidense, onde os aliados ocidentais são os “heróis libertadores” da humanidade, e os soviéticos são, no máximo, também uma nota de rodapé desconfortável.

Nas reportagens especiais de aniversário do Dia D (dia do desembarque Aliado na Normandia), por exemplo, as cenas são quase sempre as mesmas: bandeiras dos EUA, veteranos na Normandia, discursos de presidentes ocidentais sobre liberdade… Nenhum rosto russo nos documentários que inundam os canais de televisão. É o que se poderia chamar de um apagamento editorial deliberado. A CNN e a BBC, por exemplo, jamais colocam em destaque o papel do Exército Vermelho como libertador de Auschwitz, como se isso colocasse em risco a ordem moral da narrativa ocidental. 

A mídia brasileira também não escapa. A Rede Globo, quando trata sobre a Segunda Guerra Mundial, faz eco à visão estadunidense, reproduzindo roteiros importados com legendas de conveniência. O resultado dessa operação midiática é profundo, porque de certa forma educa — e também molda — afetos. Mas, sobretudo, essas abordagens decidem quem é herói e quem deve ser esquecido. E, ao fazer isso, servem a interesses que continuam no presente. A história que a mídia conta não é apenas sobre o que aconteceu, mas sobre quem merece estar no poder.

A batalha de Berlim e a rendição nazista: entrevista com um combatente

Na narrativa da Rede Globo, o Dia D é frequentemente apresentado como o ponto de virada decisivo do conflito — o momento em que os Aliados “finalmente começaram a derrotar Hitler”. Ressalta a coragem dos soldados estadunidenses e britânicos que desembarcaram nas praias da Normandia, a complexidade da operação militar e a imagem já cristalizada dos “mocinhos” vencendo o mal. No entanto, sob o brilho do jornalismo televisivo, o que se revela é uma simplificação ideológica e, principalmente, um apagamento histórico. Essa abordagem reforça uma memória seletiva — e ideologicamente alinhada com os interesses ocidentais. Em vez de complexificar o conflito, mostrando suas contradições, as alianças tensas e os múltiplos protagonistas, a Globo o reduz a um duelo entre democracias ocidentais e o mal absoluto do nazismo — ignorando, convenientemente, que a URSS, apesar de todos os seus paradoxos políticos, foi essencial para a vitória.

No entanto, há outras narrativas. Felizmente, existem alguns historiadores que mostram a verdadeira cara dessa história, como Howard Zinn. Mesmo sendo estadunidense, foi uma das vozes mais lúcidas e incômodas contra a narrativa triunfalista e patriótica ocidental. No livro “A História do Povo dos Estados Unidos” (A People’s History of the United States), Zinn denuncia, com muita veemência, como a história contada nos EUA foi moldada para glorificar o poder, silenciar os oprimidos e justificar as guerras.

Base moral para as guerras posteriores

No que se refere à Segunda Guerra Mundial, Zinn questiona o mito da “boa guerra”, ressaltando que o conflito foi utilizado não apenas para derrotar o fascismo europeu, mas também como uma forma de expandir os interesses econômicos e militares dos EUA. O historiador destaca que, mesmo enquanto os estadunidenses combatiam o nazismo no exterior, continuavam praticando racismo, segregação e repressão dentro de suas próprias fronteiras. “O espírito da militância negra, que teve seus lampejos na década de 1930, teve sua intensidade reduzida durante a Segunda Guerra Mundial, quando a nação denunciou o racismo por um lado, manteve a segregação racial nas forças armadas e continuou a pagar mal aos negros por outro”, afirma (Zinn, 2011, p.  337 da versão em espanhol).

Zinn também enfatizava que a entrada dos EUA na guerra não foi motivada por altruísmo ou solidariedade internacional, mas por interesses estratégicos. O historiador lembra que grandes corporações estadunidenses lucraram com o esforço de guerra, e que a economia daquele país foi alavancada à custa de destruição e mortes em massa em solo estrangeiro. De acordo com Zinn: “Com o poder imperial britânico desmoronando durante a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos estavam prontos para entrar em cena. Antes do fim da guerra, o governo já estava planejando o esboço da nova ordem econômica internacional, baseada em uma parceria entre o governo e grandes corporações.” (Zinn, 2011, p. 311 da versão em espanhol).

Outra questão importantíssima ressaltada por Zinn é o fato de que, ao negar a vitória e a força soviéticas, os Estados Unidos estariam combatendo a esquerda, o socialismo e as críticas ao capitalismo. De acordo com o historiador, era preciso convencer o mundo de que o modelo capitalista se configurava como o único sistema eficiente, e que, portanto, qualquer outro modelo, sobretudo o socialista, não poderia ter sucesso. Conforme Zinn: “A esquerda tornou-se muito influente nos tempos difíceis da década de 1930 e durante a guerra contra o fascismo. O Partido Comunista não tinha muitos membros […], mas era uma força poderosa entre os sindicatos, que tinham milhões de membros, entre os artistas e entre inúmeros americanos. O fracasso do sistema capitalista pode ter levado a ver o comunismo e o socialismo de forma favorável” (Zinn, 2011, p. 323 da versão em espanhol).

Nessa mesma obra, Zinn alerta, entre outras questões, que a memória construída da Segunda Guerra Mundial serve como uma ferramenta ideológica poderosa, pois, ao colocar os Estados Unidos como “libertadores”, apagava-se não apenas o papel fundamental da União Soviética na derrota do nazismo, mas também se construía uma base moral para as guerras posteriores, como Vietnã, Iraque, Afeganistão. Afinal, se os EUA foram os heróis contra Hitler, teriam o dever de repetir o gesto sempre que julgassem necessário.

Para Zinn, a verdadeira história da guerra deve ser contada a partir de baixo: dos soldados comuns, dos civis bombardeados, das mulheres russas que defenderam seus territórios, dos que morreram sem medalhas, rompendo, portanto, com o monopólio imperial da memória. O historiador nos faz um alerta poderoso, salientando que é preciso desconfiar da narrativa única. Nos diz ainda, nas entrelinhas, que devemos olhar para os silêncios da história oficial e nos perguntar: quem contou isso? Quem se beneficiou dessa versão? E quem foi apagado para que ela se sustentasse? No caso da Segunda Guerra Mundial, está evidente.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

Verbena Córdula Graduada em História, Doutora em História e Comunicação no Mundo Contemporânea pela Universidad Complutense de Madrid e Professora Titular da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), Ilhéus, BA.

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