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"Os Persas", de Ésquilo, é a história dos vencedores, mas sem desdém aos vencidos

“Irresistível é o exército da Pérsia, e valoroso o coração de seus soldados”. Que aprendamos a reconstruir um futuro melhor para nosso povo e para o planeta!
Carlos Russo Jr
Diálogos do Sul Global
Curitiba (PR)

Tradução:

Vivemos em um mundo em que os todos os valores herdados da história da civilização são colocados em xeque. No Brasil, um dos países mais desiguais e violentos do mundo, a população, para o legislativo e governos estaduais, majoritariamente elegeu representantes, que pregam abertamente a misoginia, a homofobia e que são racialmente preconceituosos.

Caminhamos em direção a uma bifurcação na estrada real da vida, tal qual ocorre nas ambíguas escolhas dos heróis das tragédias gregas: podemos seguir pelo lado da barbárie, que é o natural, sendo inerente à dinâmica do capitalismo (aliás, recordemos Lacan que afirma ser o capitalismo uma espécie arquetípica do subconsciente humano), ou caminharmos para outro lado, tão complexo quanto novo e inseguro, uma trilha de resistência que conduza ao Renascer da humanidade e de seus valores civilizatórios.

A eleição do presidente Lula, graças principalmente ao nordeste brasileiro, nos impulsiona para uma reconstrução que enfrentará resistências tremendas, boicotes, fraudes, golpes e até mesmo atos de terrorismo.

No sentido de nos fortalecermos para o enfrentamento dos duros dias que virão, julgamos conveniente revisitarmos uma das maiores criações artísticas de todos os tempos, as Tragédias Gregas. E hoje o faremos com “Os Persas”, da autoria de Ésquilo, no século V a.C..

A “katarsis”, limpeza espiritual, preparo do cidadão

Quando deixamos o teatro após uma apresentação de “Édipo”, “Antígona” ou de “Medeia”, sentimos ainda latejar em nós as questões essenciais da existência. O grau do trágico nos é dado pela relação do espetáculo artístico com nosso próprio mundo, com a realidade de espectador. Chegamos mesmo a questionarmos os valores sob os quais as gerações de hoje se formatam e interrogamo-nos sobre o sentido da própria vida. E, ao nos comover, percebemos em nosso íntimo o trágico, o drama, e então desenvolvemos nossa própria “katarsis” e sentimo-nos mais próximos do “homo aner”, do homem consciente.

A Tragédia Grega questiona uma realidade que era nova para aqueles povos. O momento histórico coincide com a formação de cidadãos-livres e o sentido da cidade em que se vive como uma Pátria, de onde se cria a responsabilidade coletiva vivenciada na democracia. Por isso, a Tragédia é questionadora da realidade vivida e de seus valores, ao invés de, simplesmente ser um “espelho” do real que assume os palcos.

Ela foi mais do que tudo uma instituição social, ao lado dos órgãos públicos políticos e de justiça, sendo a própria cidade que se faz teatro no momento das celebrações dionisíacas. E o teatro foi tão importante que a presença do cidadão é subsidiada pelo poder público, sendo que o próprio Arconte se responsabiliza por toda a sua realização.

É a ação recíproca de todos esses elementos, nos mais diversos níveis, que constitui a ordem cívica.

O momento histórico de Xerxes

Quando falamos do momento específico do surgimento de Ésquilo, este é antes de tudo um instante histórico heroico para Atenas: graças à disciplina, ao combate voluntário na defesa do que o cidadão reconhecia como seu, os exércitos persas haviam sido batidos por tropas gregas muito inferiores em número, mas não em audácia e coragem cívica. A democracia que surgira vitoriosa, afastando os eupátridas (a aristocracia) e os tiranos internos, agora liderava a libertação de toda a Grécia do domínio do Grande Rei Persa, primeiro Dario, e depois, de seu filho Xerxes, ambos derrotados pelos gregos.

Todo um novo mundo poderia ser edificado por valores que iam sendo descobertos ou redescobertos, sob a unidade e comando das “divindades cidadãs”.

Aí temos, em breves linhas, o panorama das tragédias de Ésquilo.

“Irresistível é o exército da Pérsia, e valoroso o coração de seus soldados”. Que aprendamos a reconstruir um futuro melhor para nosso povo e para o planeta!

BC Alexander Sarcophagus.
Antigos soldados persas e gregos, como retratado em uma reconstrução colorida do século IV


Finalmente, Lesky observa que o homem de Ésquilo cumpre como que um imperativo do destino que, no entanto, não o exime do fato da própria responsabilidade pelos atos praticados, por isso ele representaria em suas tragédias “O mundo como ele deveria ser”.

“Os Persas”

A tragédia foi representada em 472 a.C.. A apresentação ocorreu no auge da democracia grega, insuflada pela aniquilação da frota dos persas em Salamina e pela derrota dos invasores persas em Psitália, que obrigou o recuo vergonhoso do exército de Xerxes, estimado em mais de um milhão de homens. Seu regente foi o principal líder político de Atenas, Péricles em pessoa!

“Os Persas” representa uma verdadeira epopeia, mas, atenção: Tudo é visto do lado do perdedor, dos agressores persas! Ela constitui um longo e pungente lamento fúnebre, o cântico de dor da humilhação do mais poderoso império do mundo antigo, derrotado pela pequena e orgulhosa Grécia.

Ao contrário de todas as outras tragédias que chegaram até nós, “Os Persas” não evoca o passado mítico ou heroico: é um tema da atualidade grega, mas suficientemente distante em termos espaciais, de maneira que possa conter os elementos básicos do drama e possa levar a plateia à “katarse”, à limpeza. Como bem disse Urbano Rodrigues: “não sei de quem fique insensível a este longo, trágico lamento, que visa despertar no espectador o terror e a piedade e consegue, acima de tudo, exaltar, em negativo, pela narrativa das desgraças da orgulhosa Pérsia… a coragem e o civismo da jovem nação grega”.

O cenário é uma Praça de Susa, capital da Pérsia, em frente ao palácio real. O prólogo é efetuado pelo corifeu e pelos coreutas, velhos persas que se denominam “Os Fiéis”, dado que Xerxes, antes de partir na expedição de guerra à Grécia, dera a eles a responsabilidade pela guarda do palácio e dos seus tesouros. “O Fiéis”, então, numeram todas as forças leais ao imperador, a começar pelos próprios persas e pelos medos, a cavalaria, a infantaria e a grande esquadra naval, a fina nata dos guerreiros asiáticos; relatam também o avanço das tropas de ataque por terra, ultrapassando o estreito de Helesponto, graças à ligação por cordas entre os barcos; narram também e o ataque marítimo.

No entanto, notas de inquietação enovelam-se na narrativa:

“Irresistível é o exército da Pérsia, e valoroso o coração de seus soldados”. “Mas que mortal pode escapar às astutas armadilhas de um deus enganador? … A ate, a cegueira, com suas carícias atrai o homem a suas redes e nenhum mortal pode evitá-las…” “A saudade dos varões enche de lágrimas os leitos, e todas as mulheres persas, na sua aflição …ficam sós, atreladas ao jugo. ”

O corifeu sugere ao coro que examine para que lado pende a vitória: “Seria a corda do arco que triunfa? (o arco simboliza os persas) ou a lança com ponta de ferro? (os gregos)”.

A rainha Atossa, mãe de Xerxes e primeira mulher do harém de Dario, o Grande, aproxima-se. Atossa: “Também eu sinto o coração dilacerado pela apreensão e, confesso, amigos, tenho medo…riquezas sem defensores não impõem à multidão nem respeito nem veneração, e sem riquezas não há brilho proporcional à força…”

Aos atenienses, no regime democrático que haviam edificado, sob um tipo de vida disciplinado e “espartano”, a necessidade do poder imperial possuir riquezas para ser reverenciado, soava como um eco de passado abolido e expõe um pensamento que é a antítese de seu pensar. Do mesmo modo, a confissão que a rainha faz de que caso seu filho Xerxes retornasse vitorioso, ele seria um herói; mas caso fosse vencido a ninguém teria que prestar contas! Tão diferente da realidade em que os cidadãos livres cobravam os resultados de qualquer atitude tomada por seus estrategos!

Mas a rainha prossegue e pede que o Coro a ajude a interpretar um sonho e uma estranha visão, em que uma águia é atacada por um gavião e, ao invés de defender-se, deixa-se depenar. O Coro recomenda-lhe que ore aos deuses e realize libações ao finado Dario, com o que a rainha concorda. Antes pede que lhe digam em que lugar da terra situa-se Atenas, a cidade que seu filho queria tomar. O Coro indica-lhe a direção e que a queda de Atenas significaria a submissão de toda Grécia. A rainha quer detalhes e o coro explica-lhe que os combatentes atenienses usam a espada para combater a pé firme e o escudo que trazem no braço, que lutam como homens livres, não sendo súditos e nem escravos de homem algum, totalmente ao revés que o imenso exército persa. E “lutam tão bem que já destruíram o belo e grande exército de Dario”, referindo-se à primeira guerra persa.

Neste ponto chega um Mensageiro e traz a notícia de que o exército bárbaro “foi inteiramente aniquilado”. “As margens do Salamina e todas as terras vizinhas estão repletas de cadáveres… o exército inteiro pereceu pelo choque dos seus navios.”

O Coro declara ser Atenas, um nome detestado; que deste nome não se esquecerá, pois lá, milhares de mulheres persas perderam seus filhos e esposos. A rainha intervém e solicita que o Mensageiro lhe conte toda a catástrofe, que os mortais têm que suportar as provações que os deuses lhes enviam para recuperar a serenidade. E o Mensageiro principia pelo fato de que “ Xerxes vive e vê a luz”.

A seguir reporta a série de desastres, tropas inteiras exterminadas junto com seus chefes graças à desmedida de seu comandante, o Rei, que subjugara o poder guerreiro dos gregos. De como, graças à estratégia, os gregos que possuíam trezentos navios de pequeno porte, venceram e destruíram a armada persa de mais de mil barcos, ao som de um único brado de guerra: “Vamos filhos dos gregos, libertai a vossa pátria, vossos filhos e mulheres, os santuários dos deuses de vossos pais e o túmulo de vossos avós; lutai hoje por todos os vossos bens! ”

A este relato da derrota marítima, haviam se seguido outras desgraças, pois “todos os persas na flor da vida, os melhores na coragem, os mais ilustres e que se encontravam na primeira fila pereceram vergonhosamente” na ilha de Ptisália, defronte a Salamina, onde cercados pelos gregos tiveram seus corpos despedaçados. “Xerxes, que observava a batalha chorou e rasgou suas roupas e precipitou-se em fuga desesperada”. A seguir detalha a fome e a sede que torturou os sobreviventes, aumentando a sua desdita.

O coro relata os sofrimentos que esperam as mulheres persas em seus leitos solitários; os velhos a quem espera uma velhice desamparada e sem descendência; os povos submetidos ao império persa que deixarão de pagar seus impostos a um reino enfraquecido e, finalmente, “o povo que passará a falar mais livremente, pois é isto o que acontece quando se desprende do jugo da força”.

A rainha Atossa retorna à cena preparada para realizar as libações por Dario, o rei morto. Dirigindo-se ao coro diz: “Amigos, quem já travou conhecimento com a desgraça sabe que, no momento em que uma vaga de flagelos se abate sobre os homens, tudo os apavora, enquanto se o destino os favorece, eles se convencem de que o sopro da prosperidade jamais deixará de fluir a seu favor”.

Ao invés de simples libação, o que Ésquilo nos apresenta é uma evocação aos mortos. O Coro: “Sede clemente, oh Terra, e Hades, príncipe dos mortos, deixai sair de seus domínios este “daimon” glorioso, esse deus dos Persas… que esta terra nunca viu igual”.

Surge, então, a Sombra de Dario: “Bem sabeis que não é fácil sair dos infernos, tanto mais que aos deuses subterrâneos mais é dado agarrar que soltar. Dizei-me depressa que nova desgraça se abateu sobre os Persas”. Atossa conta à Sombra de Dario as desventuras de Xerxes, que pusera a perder todo o seu exército, retornando quase só para Susa.

A Sombra responde: “Quando alguém corre de próprio gosto para sua perda, os deuses lhe prestam sua ajuda… Foi nosso filho que em sua cegueira e na sua juvenil audácia consumou a catástrofe… Sendo mortal pensava, imprudentemente, poder triunfar sobre um deus, Poseidon. Uma doença do espírito vitimou meu filho”.

O Coro necessita de conselhos e alentos: “Como é que nós, o povo persa, poderemos depois disso tornar a viver dias felizes? ”

Dario responde: “Não levando mais a guerra ao país dos gregos, pois a própria terra combate por eles”. Além disso, a Sombra diz ao coro que as tropas bárbaras desrespeitaram os santuários gregos, incendiaram seus templos quando avançaram por terra e agora estão pagando por isso. “Montes de cadáveres falarão na sua linguagem muda aos olhos dos homens e dir-lhes-ão que um mortal não deve alimentar pensamentos acima de sua condição; a violência, crescendo em terra arável, produz uma espiga de desgraça que só fornece colheita de lágrimas”. Recomenda a Atossa que vá acolher o filho que retorna e lembra para os velhos que, “entre os mortos, a riqueza não serve para nada”. E desaparece.

Enquanto o Coro rememora os feitos de Dario, Xerxes como seu contraponto retorna derrotado, dizendo: “que desgraçado sou por ter caído sob um fado tão terrível e imprevisível!”

O Coro não lhe oferece a clemência que o soberano provavelmente esperaria: “Essa terra geme pela juventude morta por Xerxes, abastecedor do Hades, pois ele encheu o seu reino de persas… a flor deste país, arqueiros triunfantes. Choremos por nossos valiosos defensores”.

A luta fora vencida pelos cidadãos em armas.

Nesta tragédia, que se referencia em um fato histórico e contemporâneo ao autor, em nenhum momento qualquer general ou herói grego é citado. Quem venceu a luta foi a comunidade grega unida ao redor de Atenas e o poder dos deuses que nela convivem e lhe dão proteção! Por outro lado, nenhuma palavra de desdém é pronunciada em relação aos vencidos. A aparição da Sombra de Dario traz luz sobre a desmedida que tomou o espírito jovem e despreparado de Xerxes, conduzindo- o à cegueira que o fez cruzar o estreito de Bósforo, razão de sua soberba e arrogância.

“Aprender a conhecer através da dor”, no pensar de Lesky, “é o caminho que Xerxes palmilha no “Os Persas””.

Que aprendamos a reconstruir um futuro melhor para nosso povo e para o planeta!

Referências:

Leski, A. A tragédia grega. Ed. Prespectiva.

Urbano Rodrigues, M.. Introdução aos “Os persas”.

Os Persa/Electra/Hecuba. Ed. Zahar.

As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Carlos Russo Jr Carlos Russo Jr., coordenador e editor do Espaço Literário Marcel Proust, é ensaísta e escritor. Pertence à geração de 1968, quando cursou pela primeira vez a Universidade de São Paulo. Mestre em Humanidades, com Monografia sobre “Helenismo e Religiosidade Grega”, foi discípulo de Jean-Pierre Vernant.

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