Hoje todos sabem que no Uruguai há um governo corrupto, de uma coalizão de direita liderada por Luis Lacalle, uma verdadeira associação para delinquir, imbricada com o narcotráfico, o futebol profissional e o conluio das máximas autoridades do país para mentir e mentir.
O caso do passaporte outorgado rapidamente ao narcotraficante Sebastián Marset, que estava preso nos Emirados Árabes Unidos, explodiu com a renúncia de dois ministros, o chanceler Francisco Bustillo e o do Interior, Luis Alberto Heber e outros funcionários de menor hierarquia. Mas desencadeou uma crise política que obrigou Lacalle a prestar contas à sociedade e à coalizão governante que lidera.
Não há dúvida possível: é impossível aceitar que o presidente Luis Lacalle não sabia ou, diretamente, não dava as ordens, ainda que a centroesquerdista Frente Ampla não queira acionar mecanismos de processo político quando faltam menos de 12 meses para a próxima eleição presidencial.
“O presidente está convencido de que com isso virou a página, mas para nós a página mal começou”, disse o presidente da coalizão progressista Fernando Pereira, que acredita que ficaram muitas perguntas sem resposta, porque o presidente “não quis” ou “não pôde» esclarecer.
Para a Frente Ampla, o mandatário está envolvido porque esteve na reunião de 25 de novembro de 2022, na Torre Executiva, mais especificamente no 11º andar, onde segundo a ex viceministra de Relações Exteriores, Carolina Ache, pediram-lhe que «perdesse» o telefone para que não transcendessem os chats nos quais ela e o ex-viceministro do Interior, Guillermo Maciel, falavam da periculosidade de Marset.
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Foto: Marcos Corrêa/PR
Encontro de Luis Alberto Lacalle Pou, Presidente do Uruguai, com Jair Bolsonaro, então mandatário do Brasil em 3 de fevereiro de 2021
Neste governo os uruguaios viveram de susto em susto, em uma série interminável de escândalos políticos que parecem não ter fim. Não é só o escândalo do passaporte “express” outorgado ao maior narcotraficante da história do Uruguai, nem a venda de passaportes a cidadãos russos que o chefe da guarda presidencial Alejandro Astesiano fazia na própria Torre Executiva presidencial.
A isso se soma o acompanhamento e espionagem ordenado contra senadores da oposição de centro-esquerda e o apoio direto a investigações paralelas de um senador do Partido Nacional, o do presidente, formalizado por múltiplos delitos sexuais como Gustavo Penadés. Tudo isso são etapas de um governo marcado por uma interminável cadeia de escândalos de um Executivo que vive sob suspeita.
Mas não foi a oposição que fez explodir o caldeirão, e sim revelações vindas de altas esferas do próprio governo. A única que merece uma análise detalhada no sistema político, porque já não há nenhuma dúvida de que este governo da coalizão multicor de direitas incorreu em delitos flagrantes por intermédio de toda a nomenclatura intimamente ligada ao presidente e, claro, é absolutamente impossível aceitar que este não sabia ou, diretamente, não dava as ordens.
Não se trata de funcionários individualmente corruptos, mas de uma trama de confabulações para delinquir e funcionários do mais alto escalão reunidos para organizar uma mentira, uma estafa à democracia e às instituições que incluiu a destruição de documentos públicos, a pressão para que outros funcionários cometessem delitos, perdessem celulares e escondessem provas, diz a revista Caras y Caretas.
Sebastián Marset não é apenas um narcotraficante, mas um dos mais importantes da América do Sul – com imputações de delitos de sangue e de narcotráfico – e para obter o passaporte que lhe permitiu sair em liberdade em Dubai e, posteriormente, fugir, não só contratou o advogado Álvaro Balbi, como também forneceu os (supostos) 10 milhões de dólares para que o trâmite acontecesse.
No sábado 4 de novembro, o presidente Luis Lacalle falou 11 minutos sobre o escândalo que causou a renúncia de dois ministros, um subsecretário e seu assessor Roberto Lafluf. Nestes 11 minutos tornou o assunto ainda menos claro, com afirmações enganosas e grosseiras omissões.
Lamentável é que Francisco Bustillo, Luis Alberto Heber, Guillermo Maciel e Roberto Lafluf renunciaram: não foram demitidos, e o mandatário expressou sua “íntima convicção” de que os três primeiros não fizeram nada ilegal. Não se entende porque aceitou as renúncias, se os considera inocentes.
Lacalle afirmou que havia que dar um passaporte a Marset “sim ou sim”. Não é verdade: o Estado tinha motivos e margem de ação legal para obter mais informação sem se apressar, ou pelo menos proporcionar ao narcotraficante só uma autorização para ir para o Uruguai e seguir aqui com o trâmite.
O presidente disse que encarregou Lafluf de convocar uma reunião no 11º andar da Torre Executiva para que Ache e Maciel “entrassem em acordo” sobre o que fazer com o registro de suas comunicações sobre Marset, porque havia “uma discussão” acerca da pertinência de entregar “conversas privadas”. Na realidade, o que havia era uma sentença judicial que obrigava a entregar estes registros, como resultado de um pedido de acesso à informação pública apresentado por deputados da Frente Ampla.
Também disse que nesta reunião Ache, Lafluf e Maciel “entraram em acordo”, mas omitiu que, segundo a declaração de Ache na Procuradoria, o acordo foi deletar os chats e conseguir depois um certificado em cartório de que não estavam em seus telefones. Não disse uma palavra sobre o áudio trazido por Ache em que Bustillo lhe sugere “perder” seu celular, nem sobre sua declaração de que Lafluf comunicou-lhe que destruíra o documento apresentado por ela para que se entregasse à Justiça. Só disse que este documento “não fazia parte do expediente”.
Lacalle Pou enfatizou que “as responsabilidades políticas são do presidente, dos ministros e dos subsecretários”. Isso sim é verdade, mas só os ministros e os subsecretários renunciaram e são investigados pelo sistema judiciário.
Segunda-feira 6, foi inaugurar um centro hospitalar no populoso bairro do Cerro montevideano, onde foi recebido com cartazes que diziam:“Com um hospitalzinho não se esconde a corrupção, a máfia nem a fome das crianças”, “governo corrupto” e “renúncias, não destituição”. A mídia hegemônica mostrou só quem foi contratado para aplaudir o mandatário.
Laços entre o poder, o futebol e a droga
Segundo “Crónicas del Este”, quando Marset foi preso em Dubai, depois de ser descoberto com passaporte paraguaio falso, Cartes teria solicitado a seu cunhado uruguaio Martín Bordaberry (casado com Sara Cartes e filho do ditador Juan María) uma ajuda para o narcotráfico.
Martín por sua vez pediu a seu irmão Pedro Bordaberry, um influente político (ex senador pelo Partido Colorado uruguaio) e dirigente de futebol (assessor do Clube Montevideo City), que atendesse a solicitação do ex mandatário paraguaio. E é Pedro que telefona para a viceministra Carolina Ache para pedir-lhe que receba o advogado de Marset, Alejandro Balbi, outro conhecido dirigente de futebol, presidente do Club Nacional uruguaio e membro da Associação Uruguaia de Futebol (AUF).
Casualmente, Pedro Bordaberry é o mesmo escolhido por Alejandro Domínguez em 2018 para presidir a Comissão Interventora da Associação Uruguaia de Futebol (AUF), intervenção seriamente questionada pelas medidas que adotou. Alejandro Balbi também faz parte da Comissão de Governança e Transparência da mesma Conmebol.
Infantino y Domínguez reunidos con el Pdte. de la República del Paraguay, Sr. Horacio Cartes, en Mburuvicha Róga. pic.twitter.com/JUwPIHhmvl
— CONMEBOL.com (@CONMEBOL) March 28, 2016
Não é estranho que Alejandro Domínguez cerque-se de pessoas com assuntos pendentes na justiça, como os casos de Marco Polo del Nero, Edwin Oviedo, Agustín Lozano. No entanto, nesta ocasião trata-se de pessoas vinculadas ou salpicadas em causas de narcotráfico, o que requer já uma investigação profunda por parte dos organismos antinarcóticos incluídos a DEA e o FBI a fim de desnudar os nexos do futebol com as gangues narco, afirma o site paraguaio ExpressNews.
Os uruguaios hoje estão conscientes de que seu governo é corrupto, que a credibilidade no presidente e seus funcionários foi quebrada. Talvez ainda não assumam que neste país futeboleiro, também as instituições esportivas – nacionais, regionais – são usadas nas tramas criminosas, com uma imprensa que tenta reeditar com Marset a experiência colombiana de Pablo Escobar.
Aram Aharonian | Jornalista e comunicólogo uruguaio. Mestre em Integração. Criador e fundador da Telesur. Preside a Fundação para a Integração Latinoamericana (FILA) e dirige o Centro Latinoamericano de Análise Estratégica (CLAE)
Tradução: Ana Corbisier
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