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Foto: Felton Davis / Flickr

Iêmen, povo indomável (I): luta por soberania e resistência às potências globais

Em meio ao genocídio em Gaza, iemenitas surpreenderam ao tomar decisões com impactos não apenas locais, mas no Oriente Médio e no mundo
Sergio Rodríguez Gelfenstein
Rebelión
Buenos Aires

Tradução:

Ana Corbisier

Em 2015, o Iêmen, um país desconhecido por muitos no Ocidente, iniciou uma guerra em defesa de sua soberania que estava sendo ameaçada por uma aliança intervencionista liderada pela Arábia Saudita. O povo Iemenita teve que pagar com a vida de quase 400 mil de seus filhos para manter sua independência. Muitas pessoas se perguntaram como foi possível que um país considerado o mais pobre da Ásia ocidental tenha sido capaz de resistir e vencer uma coalizão formada por alguns dos países mais ricos do planeta.

Ainda que o conflito tenha se prolongado por quase uma década, parece ter chegado a uma situação que pode levar a um possível fim. Embora se mantenha uma situação tensa e diferentes tipos de ações bélicas, houve uma redução das ações militares nos últimos meses.  Já não é uma guerra total, mas tampouco chegou a paz. Com a mediação da China, Arábia Saudita e Irã se reconciliaram, aplainando o caminho para a superação de vários conflitos na Ásia Ocidental e no norte da África. Aparentemente, o do Iêmen é um deles.

Agora, depois da invasão israelense a Gaza, o Iêmen, com o movimento libanês Hezbollah e outras forças revolucionárias árabes e muçulmanas assumiram um papel ativo em solidariedade à Palestina. Uma vez mais, o Iêmen surpreendeu a todos ao tomar decisões que não só têm impacto local, mas também regional e global. De novo, o mundo se perguntou como foi possível que isso acontecesse. Em duas entregas, vou dar a conhecer alguns elementos que permitam aos leitores conhecer o Iêmen, saber da histórica luta e do heroísmo de seu povo a fim de ajudar a entender o alcance e a dimensão da decisão Iemenita de apoiar com todos os recursos a seu alcance a justa luta do povo palestino.

A república do Iêmen está situada em um lugar estratégico do planeta, em uma região de confluência de rotas comerciais que conectam a Ásia, a zona oriental da África e o Mediterrâneo. Seu território, situado nas costas do mar Arábico e às portas do mar Vermelho, domina o estreito de Bab el Mandeb, colocando-o em um lugar privilegiado do globo terrestre, sobretudo a partir do século XX quando, por um lado foram descobertas na região grandes jazidas de energia (petróleo e gás) e de outro, o enorme crescimento econômico e desenvolvimento da Ásia Oriental que transformaram o Iêmen em passagem obrigatória da maior parte do comércio mundial.

As antigas cidades do território se unificaram na antiguidade no bíblico reino de Saba. Desde aquele momento começou a luta dos habitantes da atual superfície Iemenita por sua libertação e independência, tendo que enfrentar o império romano no século I de nossa era. A poderosa Roma foi derrotada em sua tentativa de dominação.

Diferentemente do resto da península arábica, o atual Iêmen possuia uma vegetação prodigiosa que proporcionava grandes riquezas a sua população devido às grandes possibilidades de consumo e comércio que oferecia. Assim, atribui-se ao matemático grego Ptolomeo a denominação de Iêmen como “Arábia feliz”.

No decorrer da história, os Iemenitas tiveram que lutar com himyaritas que, de sua religião judia perseguiram a população cristã majoritária, até a intervenção dos etíopes no século VI. O islamismo chegou à região durante o século VII começando a configurar uma cultura que se sustentava na imbricação de variados saberes que trouxeram grandes contribuições à humanidade.

Não obstante, durante muitos séculos, o Iêmen se manteve à margem do desenvolvimento cultural e econômico estabelecido pelo islã. Foi no século XV que o território do atual Iêmen começou a ganhar valor estratégico. Em seu afã de expansão comercial, os europeus iniciaram a dominação de territórios por todo o planeta. Os primeiros europeus a chegar à região foram os portugueses que dominaram o país a fim de controlar a via marítima que lhes permitia o comércio de especiarias da Ásia para a Europa pelo mar Vermelho.

No século XVI se iniciou a conquista otomana com a ocupação de alguns lugares na costa do mar Vermelho, enquanto o interior do país e a costa sul permaneceram independentes, governados por um imã. Pouco depois os ingleses fizeram seu aparecimento na zona, instalando um posto da Companhia das Índias no porto de Moka no mar Vermelho.

No século XIX os britânicos expandiram sua presença ao ocupar todo o extremo sul ocidental instalando-se em 1839 em Adem, o melhor porto da região ao mesmo tempo que, em 1872, os turcos conseguiram consolidar o domínio no interior do país, para o que instalaram uma monarquia hereditária em nome de um imã local. Esta divisão fez com que o Iêmen se dividisse em dois países.

Por volta de 1870, com a inauguração do Canal de Suez e a consolidação do domínio turco sobre o norte do Iêmen, Adem adquiriu nova importância para a estratégia global britânica: era a chave do mar Vermelho e, portanto, do novo canal.

No princípio do século XX, Turquia e o Reino Unido demarcaram uma fronteira entre seus territórios, que passaram a chamar-se Iêmen do Norte e Iêmen do Sul, respectivamente. Em 1934 a Inglaterra assumiu o controle de todo o sul do país, até a fronteira com Omã.

Durante a Primeira Guerra Mundial, o Imã aliou-se ao Império Otomano e se manteve fiel a ele até o fim da guerra, quando a derrota dos turcos permitiu ao Iêmen recuperar sua independência em novembro de 1918. Não obstante, a Grã Bretanha, após reconhecer a independência do Iêmen, em 1928, transformou Adem em um protetorado e em 1937 em colônia. Uma vez mais os Iemenitas tiveram que recorrer à luta armada pela independência. Em 1940 surgiu o movimento nacionalista “Iêmen Livre”, para lutar contra o controle do país pelos imanes que tinham se aliado à Grã Bretanha.

A luta tomou caminhos diferentes no norte e no sul. Em 1962 no norte criou-se a República Árabe do Iêmen enquanto no sul, a Frente de Libertação Nacional, criada em 1963, tomou Adem em 1967 e proclamou a independência, iniciando uma revolução socialista.

O Iêmen do Sul passou a chamar-se República Democrática Popular do Iêmen, fechou todas as bases britânicas em 1969, assumiu o controle dos bancos, do comércio exterior e da indústria naval, ao mesmo tempo em que empreendia uma reforma agrária. Na política exterior, manteve uma estreita aliança com a União Soviética. Também promoveu uma aberta luta antissionista e de apoio ao povo palestino.

Em outubro de 1978, em um congresso que contou com considerável apoio da população, a Frente de Libertação Nacional fundou o Partido Socialista do Iêmen. Em dezembro realizou-se a primeira eleição popular desde a independência, para designar os 111 integrantes do Conselho Revolucionário do Povo.

Desde os primeiros anos de sua existência, a República Democrática Popular do Iêmen teve que enfrentar a permanente hostilidade da Arábia Saudita que aspirava a controlar partes do território, precisamente aquelas onde tinham sido descobertas jazidas de petróleo. As tensões se agravaram ante a crescente presença militar estadunidense na Arábia Saudita.

Enquanto isso, no norte, a Frente Nacional Democrática (FND), que agrupava todas as forças progressistas do país travava a luta armada contra Alí Abdullah Saleh, que chegara ao governo em 1978. Quando a FND estava a ponto de tomar o poder, a Arábia Saudita intrigou para que o conflito se desviasse para uma guerra contra a República Popular Democrática do Iêmen. A mediação de alguns países árabes propiciou um cessar-fogo e um acordo graças ao qual foram retomadas as negociações para a reunificação, suspensas desde 1972.

Finalmente, em 22 de maio de 1990, ambas repúblicas uniram-se, formando a República do Iêmen, decidindo que a capital política fosse Sana’a (ex capital da República Árabe do Iêmen) e designando Adem como a capital econômica (ex capital da República Democrática Popular do Iêmen). Em sessão conjunta das Assembleias Legislativas de ambos Estados, realizada em Adem, foi eleito um Conselho Presidencial dirigido pelo general Alí Abdullah Saleh. A unificação do Iêmen não foi bem vista pela Arábia Saudita que iniciou uma política de apoio à secessão. Em maio de 1994, os secessionistas proclamaram uma república do Iêmen no sul do país, mas foram derrotados por forças leais ao governo.

Entre junho e agosto de 2004 surgiu um movimento que expressava as crenças de um ramo específico do islã de orientação chiita: os zaiditas, cujo líder era o clérigo Hussein al-Houthi. Em honra a ele, depois de sua morte em combate em setembro daquele ano, o movimento assumiu a denominação de huti, huthi ou Ansarolá (partidários de Deus). Ainda que esta corrente seja expressão de uma minoria no Iêmen, sua história não é recente, remonta a meados do século VIII. O zaidismo se identifica por uma maior preparação de seus membros e está associado à luta pela justiça e à defesa da ética muçulmana. Esta ideologia, somada à posição de marginalidade a que se viram submetidos após perder o poder em 1962, formaria o substrato em que se desenvolveria o pensamento huti no futuro.

A luta dos hutis contra o governo pró ocidental e pró saudita de Alí Abdullah Saleh foi longa e sangrenta. Tiveram que pegar em armas em cinco ocasiões entre 2006 e 2008 em defesa de seu território no norte do país até começarem a ampliar sua base de apoio e o espaço geográfico sob seu controle. Em 2009, Saleh, tentando deter os hutis, recorreu ao apoio da Arábia Saudita.

Para os hutis, que um país como a Arábia Saudita da corrente wahabi, extremamente conservadora, estivesse presente e se imiscuisse nos assuntos do país foi visto como uma ameaça à soberania da nação em geral e à sua como minoria,  particularmente a partir desse momento, sua luta, que tinha um caráter estritamente interno, transformou-se em enfrentamento contra a intervenção estrangeira.

Embora em um primeiro momento os combatentes hutis tenham sofrido duras derrotas, incluindo (como se disse antes) a queda de seu máximo líder, foram se fortalecendo ao longo do tempo e a partir de 2011, sob a nova liderança do irmão mais moço de al-Houthi, Abdul Malik, começaram a infligir importantes reveses ao inimigo. A retórica anti-imperialista e antissionista se fortificou ao identificar a Arábia Saudita como sócio executor dos planos dos Estados Unidos e de Israel na zona.

A mal chamada “primavera árabe” teve especial influência no crescimento do apoio ao pensamento huti em sua luta contra o governo repressivo de Saleh. No Iêmen, o movimento telúrico que agitou parte importante do mundo árabe, teve uma resposta muito mais organizada do que nos países vizinhos. Ante a força das manifestações, Saleh fugiu do país e se refugiou na Arábia Saudita sendo substituído por seu vicepresidente, Abdo Rabu Mansur Hadi, que tentou por ordem no país, chegando a um acordo com facções opositoras a Saleh “para mudar tudo sem mudar nada”, deixando de fora o movimento huti.

No final de 2014, os hutis decidiram iniciar a ofensiva sobre a capital. Neste contexto, Saleh – de surpresa, em uma tentativa de recuperar o poder – fez uma aliança com os hutis para enfrentar Hadi. Os hutis, que não tinham apoiado os acordos de paz assinados por Hadi, aliaram-se com quem fora seu maior inimigo para tomar a capital. A Guarda Republicana, força leal a Saleh, facilitou a entrada dos hutis em Sana’a. Hadi fugiu para Riad, a capital saudita, de onde “dirige” os territórios ainda não controlados por Ansarolá, atuando na realidade como um títere da monarquia wahabi.

Já no poder, os hutis formaram um Comitê Revolucionário para dirigir o país. Mas viram-se obrigados a combater simultaneamente as forças terroristas da Al Qaeda e a Arábia Saudita que os protege.

Saleh considerou que os hutis não tinham cumprido os acordos que, segundo ele, significavam que devia assumir o poder novamente e, com apoio saudita, voltou-se contra eles. Ao consumar-se a traição, os hutis atacaram a casa de Saleh, executando-o na ação.

De Riad, Hadi pediu a intervenção saudita no Iêmen. Ante tal solicitação, a monarquia saudita organizou uma coalizão de países sunitas para lançar em 2015 a operação “Tormenta Decisiva”, estruturada a partir de ataques aéreos sobre os principais enclaves controlados pelos hutis que terminaria com milhares de mortos

Esta ação, prevista como uma ofensiva definitiva para controlar o país, pretendia lançar uma segunda operação denominada “Restaurar a Esperança” concentrada na aproximação diplomática. Na realidade, a atividade bélica não cessou em nenhum momento, ao contrário, as ações terrestres, aéreas e marítimas da aliança viram-se reforçadas por um bloqueio naval que impediu a entrada de ajuda internacional, mergulhando o país na pior crise humanitária da história até que se desencadearam as atuais ações sionistas em Gaza, ambas com apoio explícito dos Estados Unidos.

Os hutis, fazendo uso de uma ampla margem de manobra sustentada em um maior e melhor conhecimento do terreno e utilizando táticas de guerra de guerrilhas inspiradas – segundo eles – na luta de libertação do Vietnã e “nos movimentos de resistência na América Latina”, demonstraram grande capacidade para golpear um exército invasor sem disposição nem moral de combate e carente de disciplina e motivação para a batalha. Além disso, a ampla procedência dos soldados da coalizão, que incluiu a participação de um numeroso contingente de mercenários contratados por empresas privadas, reduziu a capacidade combativa da aliança que tinha na vanguarda a Arábia Saudita.

Riad recebeu contundentes golpes inclusive em seu próprio território, quando as operações combativas de Ansarolá se transferiram à profundeza da geografia saudita por meio de um avançado sistema de ataque a partir de drones e mísseis de longo alcance que alcançaram quartéis das forças armadas, refinarias de petróleo e obras de infraestrutura crítica muito distantes da fronteira comum.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Sergio Rodríguez Gelfenstein Consultor e analista internacional venezuelano, formado em Relações Internacionais pela Universidade Central da Venezuela, Magna Cum Laude, e mestre em Relações Internacionais pela mesma universidade. Candidato a Doutor em Estudos Políticos pela Universidad de los Andes (Venezuela)

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