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ToggleMARTÍNEZ DE LA TORRE, Ricardo (peruano; Lima, 1904 – s/l, 1968)
1 – Vida e práxis política
Nascido em 1904, Ricardo Martínez de la Torre teve como pais Ricardo Martínez (um engenheiro espanhol) e Juana de la Torre. Sua família materna, com uma longa linhagem de membros das elites de Lima, descende de Juan de la Torre, companheiro de Francisco Pizarro.
Desde jovem, Martínez de la Torre demonstrou um precoce talento literário. Estudou inicialmente no jesuítico Colegio de la Inmaculada, e fez o ensino médio no Colegio Nacional de Nuestra Señora de Guadalupe, onde conheceu algumas das figuras literárias do momento, como Gamarra Hernández. Aos onze anos, em 1915, ele escreveu a novela Tragedia: o la noche misteriosa – e enviou alguns poemas para um jovem jornalista e crítico literário em ascensão colaborador do jornal La Prensa, José Carlos Mariátegui. A partir de então, os dois construirão uma amizade que levará Mariátegui a frequentar a casa dos Martínez – chegando inclusive a viver uma platônica paixão pela pintora Juanita Martínez de la Torre, irmã mais velha de Ricardo. Apesar da distância que os separa durante a estadia europeia de Mariátegui (entre 1919 e 1923), a relação de carinho e proximidade se manteve, como mostram os vários cartões-postais endereçados ao jovem Martínez, desde a Itália.
Na universidade, estudou contabilidade e, logo de formado, obteve emprego como caixeiro, na corretora de seguros La Popular, na capital do país. Próximo ao movimento estudantil, Martínez testemunhou as grandes manifestações de 1918-1919 e a primeira greve geral da história peruana. Como outros membros da juventude pequeno-burguesa, frequentou círculos operários e estudantis que estavam na vanguarda das lutas e do movimento social liderado pelos primeiros sindicatos e pela Federação dos Estudantes. Dessa conjunção nasceria a Universidad Popular Manuel González Prada, na qual Mariátegui pronunciou os primeiros discursos marxistas para o público limenho, nos anos de 1923 e 1924. Desde então, Martínez de la Torre frequentou a casa de Mariátegui e suas tertúlias, que agregavam artistas, operários e intelectuais, lendo textos marxistas e se formando politicamente. Como muitos jovens politizados da época (Eudocio Ravines, Jorge del Prado, Manuel Seoane, Carlos Manuel Cox), Martínez acompanhou os esforços editoriais e organizativos de Mariátegui na primeira metade da década de 1920, assim como a criação da Aliança Popular Revolucionaria Americana (APRA), liderada por Víctor Raúl Haya de la Torre – líder estudantil de Lima, então desterrado no México. Esses jovens intelectuais e militantes formaram a “Geração do Centenário” (referência à Independência), da qual surgiram os primeiros quadros do partido comunista e do partido aprista.
Em 1927, Martínez de la Torre foi chamado por Mariátegui para ajudá-lo na revista Amauta, lançada no ano anterior, na qual assumiu o cargo de gerente – uma função em que desempenhou importante trabalho para a estabilização financeira do projeto. Martínez assumiu então a codireção do periódico e organizou, a partir de 1928, a Sociedad Editora Amauta, que abarcava atividades editoriais e jornalísticas; além da revista, o grupo liderado por Mariátegui lançou o jornal Labor. Paralelamente à sua atividade na direção, Martínez colaborou firmemente com a publicação por meio de artigos, como “El movimiento obrero en 1919” (1928), e “La teoria del crecimiento de la miseria aplicada a nuestra realidad” (1929), entre outros; com mais de uma dezena de artigos, o autor seria um dos colaboradores mais prolíficos da revista. Membro importante do grupo mais próximo de Mariátegui, ele participou diretamente das polêmicas que provocaram a cisão da APRA em 1928, e das reuniões que decidiram pela criação do Partido Socialista del Perú (PSP), entre setembro e outubro do mesmo ano – que seria depois denominado Partido Comunista del Peru (PCP).
A ação militante tomou desde então uma porção grande da atividade de Martínez de la Torre. Implicado tanto no Partido (como secretário de Propaganda), quanto na recém-nascida Confederación General de los Trabajadores del Perú (CGTP), à época ele se corresponderia com mineiros das grandes minas de cobre e prata da Sierra Central – para apoiá-los em seus esforços de organização sindical e política. Ademais, Martínez preparou com Mariátegui os documentos para serem enviados para as duas grandes conferências convocadas pela Internacional Sindical Vermelha, em Montevidéu, em maio de 1929, e pela Internacional Comunista (IC), em Buenos Aires, em junho de 1929. Esses documentos foram longamente discutidos na conferência de Buenos Aires, com debates girando em torno do nome do Partido (que de início, devido à correlação de forças no Peru, deveria ser “Socialista”, não “Comunista”); e das características do imperialismo. A posição do partido foi defendida por seus dois representantes, o médico Hugo Pesce e o sindicalista Julio Portocarrero, com base no documento, em grande medida redigido por Mariátegui, que ambos apresentaram – intitulado “El problema de las razas en América Latina”.
A morte de Mariátegui, em abril de 1930, aconteceu em um momento de efervescência da atividade do Partido, com a queda do governo de Augusto Leguía e uma dura luta política contra a APRA. Martínez, em contato direto com a Secretaria Sul-Americana da IC, membro do Comitê Executivo do PCP, tesoureiro do Partido e secretário da Liga Anti-Imperialista no Peru, assumiu também a direção da revista Amauta, publicando ainda três números dela – antes de que a atividade editorial fosse definitivamente interrompida. Ele teve, portanto, uma função importante na direção política do movimento, em particular nos esforços de massificação entre os proletários mineiros da região serrana e nos debates sobre a estruturação nacional da CGTP.
Contudo, logo a saúde de Martínez de la Torre limitaria suas tantas atividades: com uma crise no final de 1930 e outra em 1931. Convidado pela Universidad Nacional Mayor de San Marcos para lecionar Economia marxista, não pôde desempenhar o trabalho, sendo preso em junho de 1931, acusado de fazer propaganda política. Para protestar contra a sua prisão, Martínez começou uma greve de fome que o enfraqueceu muito, terminando por abandonar o protesto, ao não receber suficiente apoio do Partido. Em conflito com o secretário-geral Eudocio Ravines, Martínez decidiu sair do PCP – em julho deste mesmo ano.
Nestes anos 1930, a jornada militante de Martínez de la Torre entrou em uma fase de intensa atividade propagandística e jornalística. Com amigos militantes, ele fundou a revista Frente e a editora Signos, meios independentes do PCP, em que escreveu textos de análise de conjuntura e de intervenção teórica no debate estratégico marxista peruano. Engajado nas polêmicas contra os apristas, Martínez publicou muitos artigos e textos de denúncia ou de controvérsia teórica e política durante essa década.
Ativo na militância comunista, Martínez foi preso em 1935; os exemplares recém-impressos de seu grande trabalho – que reunia diversos estudos sobre as lutas do movimento operário peruano, além de textos e documentos dos atores das lutas – foram apreendidos e destruídos, salvando-se porém 20 cópias.
Já no final da década de 1930, Martínez assumiu um papel importante na campanha do candidato democrata Manuel Prado para a presidência, animando comitês de mobilização nos bairros populares de Lima.
No início dos anos 1940, o marxista se candidatou a deputado na pequena cidade de Chiclayo, onde continuou sua atuação teórica e ideológica em prol do comunismo – ainda que permanecesse fora do PCP. Após a II Guerra Mundial, com a publicação de sua obra mais importante, Apuntes para una interpretación marxista de história social del Perú (1947-1949), sua atuação política se atenuou – e são parcos os registros sobre sua vida desde então.
Ricardo Martínez de la Torre faleceu em 1968, aos 64 anos.
2 – Contribuições ao marxismo
Poucos são os dados disponíveis sobre a vida e obra de Ricardo Martínez de la Torre. Apesar de relativamente ausente dos relatos sobre o marxismo latino-americano – tendo sido invisibilizado pela historiografia dominante durante décadas –, o legado de Martínez de la Torre marca um momento fundamental da história do movimento revolucionário no Peru. Figura dos anos inaugurais do comunismo peruano, é destacada sua atuação nos anos 1920 e 1930, como intelectual e militante, ao lado de José Carlos Mariátegui; e, depois, como historiador que documentou as lutas de classes no Peru.
Mais do que qualquer outro aspecto de sua obra, é como historiador das lutas sociais das primeiras décadas do século XX que Martínez de la Torre se destacou. Apesar de nunca ter pertencido à academia, sua produção profundamente original introduz na historiografia nacional métodos e objetos inéditos até então. Mesclando documentos de organizações militantes, testemunhos e contexto socioeconômico, seus textos procuram desenhar uma história feita a partir da experiência dos atores da luta: os trabalhadores. Esses textos trazem dados imprescindíveis para a história dos sindicatos peruanos, dos movimentos de greve em 1918-1919, do movimento pela Reforma Universitária, das greves mineiras do final da década de 1920, da questão da moradia em Lima, da miséria das classes subalternas e da cultura popular. O caráter de compilação de dados e documentos da época, aliado a sua proposta interpretativa inovadora, dá aos escritos históricos de Martínez de la Torre uma vigência como fonte fundamental para a história do movimento operário peruano.
Enquanto intelectual comunista, além dos aportes históricos e historiográficos, os textos de Ricardo Martínez de la Torre se dividem em escritos polêmicos e considerações sobre economia e cultura. Muito influenciado pelo pensamento amplo e rigoroso de José Carlos Mariátegui, o autor privilegia escritos relativamente curtos destinados a serem publicados em jornais, revistas, folhetos ou como intervenções políticas. Na esteira de Mariátegui, ele procura trazer conhecimento ao incipiente movimento operário peruano, participando com afinco do esforço coletivo realizado pelo grupo que trabalhava em torno da revista Amauta – publicação cujo objetivo era fomentar a formação política da classe trabalhadora e dos intelectuais, mas também servir de ferramenta para o conhecimento sobre o Peru, compensando a falta de dados e de interpretações disponíveis.
Martínez se inscreve então tanto na ação militante quanto na produção de conhecimento – na junção da teoria e da prática – ao relatar, por exemplo, o movimento de 1919. Seus textos econômicos procuram demonstrar cientificamente o caráter dependente da economia peruana, e revelar o seu papel na acumulação de capital pelos países imperialistas. Esses artigos mais longos e detalhados são contribuições seminais para os campos da história e da economia e trazem informações que se tornaram referências em estudos acadêmicos. Declaradamente revolucionário, Martínez nega toda possibilidade de saída da situação de dependência, à qual o Peru está sujeitado pelo imperialismo, que não seja por meio de uma revolução popular, dirigida contra o imperialismo, a grande burguesia e os latifundiários.
Ao longo dos anos 1930, a oposição entre os marxistas e os apristas não arrefeceu. Uma parte considerável dos textos de Martínez de la Torre são dedicados à luta contra os apristas, chamados de “social-fascistas” e acusados de conduzir uma política pequeno-burguesa oportunista. Respondendo às acusações de europeísmo que sofreu o marxismo, Martínez contestou o fundamento policlassista da retórica aprista, muito personalizada na figura de Haya de la Torre, que pretendia defender interesses nacionais sem denunciar a contradição entre a burguesia e a classe trabalhadora. Segundo Martínez, essa linha política é demagógica por não entender o papel da burguesia de um país dependente, nem levar em conta o papel da totalidade capitalista na qual o Peru estava inserido. Para o marxista, o aprismo representava uma trava, um vestígio do passado peruano que impedia a formação de uma verdadeira consciência de classe nas massas trabalhadoras. Essa rivalidade se tornou ainda mais acirrada no contexto da campanha de Manuel Prado (em 1939), quando Martínez associa o aprismo ao fascismo devido a sua composição pequeno-burguesa: uma expressão local do fascismo anticomunista na escala global.
Ao longo da década, Martínez desenvolve extensa produção polêmica, onde ressalta o papel do PCP na organização da classe e critica os esforços da APRA, que ele reduz às tentativas de tomada do poder, como é o caso da insurreição de 1932, reprimida com muito sangue e prisões. O papel dos marxistas ao lado dos trabalhadores, no Partido e nos sindicatos de luta, aparece como o carro-chefe das propostas táticas e estratégicas de Martínez de la Torre, em convergência com as posições da IC.
Cabe ressaltar, em decorrência dos posicionamentos apontados, o papel destacado de Martínez de la Torre na defesa do legado de Mariátegui: tanto frente às críticas apristas contra seu suposto “europeismo”, quanto frente às acusações de populismo veiculadas pela direção do PCP entre 1933 e 1938.
Martínez trabalhou também o campo da estética, desenvolvendo uma abordagem materialista da arte e do papel do artista na sociedade capitalista. Oposto à concepção de uma arte “pura”, ele insiste em seu caráter de “produto social” e, como tal, exposto à dominação burguesa – como todas as outras relações sociais no capitalismo. Para Martínez, “servir à revolução é servir à arte e aos artistas”, pois no socialismo a obra pode ultrapassar a individualidade para então dar voz a uma expressão artística coletiva, na qual o artista é o “intérprete do genérico através do particular”. O artista é portanto um “ser social”, e não um indivíduo excepcional que oferece seu gênio à sociedade. Em outras palavras, Martínez atribui ao artista uma função de tradução e comunicação – através de sua expressão própria – da realidade da sua classe. Assim, toda obra tem um conteúdo ideológico e o artista revolucionário é aquele que se identifica com as dores e as reivindicações dos oprimidos. Nesta perspectiva, ele vê toda posição de exaltação à “personalidade” do artista como uma defesa do individualismo burguês, que para expressar sua arte fecha-se à sociedade; identifica na postura individualista um viés reacionário e anti-histórico. Finalmente, ele ressalta a conexão entre a arte e a sociedade na simultaneidade da crise do capitalismo e da crise da arte, a qual ele percebe na multiplicação das escolas artísticas e na sua efemeridade; entende que o entusiasmo por novidades no campo artístico expressa a crise orgânica do capitalismo.
Como outros jovens militantes e intelectuais de sua geração, Martínez de la Torre foi bastante marcado pela figura de Mariátegui. A estreita colaboração que os dois desenvolveram faz de Martínez um dos mais próximos colaboradores do diretor de Amauta – cujo legado é reivindicado ao longo de diversos de seus textos. Apesar disto, aspectos importantes da obra mariateguiana deixarão de constar de sua obra progressivamente, como é o caso do indigenismo, que Martínez reivindica nos anos 1920, mas que desaparece no início dos anos 1930; ou das referências ao sindicalista revolucionário francês Georges Sorel, cuja teoria dos “mitos” foi bastante recorrente em textos publicados na revista Amauta, mas que cessa após 1932.
Disputada entre apristas e comunistas nos anos 1930, Martínez defendeu a figura de Mariátegui como a de um marxista decidido e contrário ao aprismo. Para o autor, Mariátegui representou a retitude militante comunista – embora não isento de erros – e uma inabalável perspectiva teórica que buscou ajustar dialeticamente a práxis revolucionária ao conhecimento.
Não obstante, pode-se observar um certo deslocamento entre o pensamento de Martínez do final dos anos 1920, bastante alinhado à análise de Mariátegui, e sua concepção mais economicista das duas décadas seguintes. Se seus textos de 1929 abriam a possibilidade de uma revolução socialista e indigenista liderada pelos trabalhadores, em cujo processo não haveria de se passar por uma “etapa capitalista” ou “democrática burguesa”, seus escritos de 1942 e 1943 afirmam o caráter necessário de alianças com “setores progressivos” da chamada “burguesia nacional” para “liquidar” os supostos vestígios de “feudalismo” da economia peruana em uma inicial “fase capitalista” da revolução.
Já na análise do imperialismo, Martínez se distancia da abordagem de Mariátegui (quem defendia uma posição de autonomia de classe) para adotar uma chave de interpretação linear, segundo a qual o imperialismo imprime uma “deformação” ao curso “normal” da economia nacional. Ser anti-imperialista, para Martínez, implicaria assim prestar apoio político às forças burguesas que ele acreditava serem “nacionalistas” – as quais supostamente participariam da luta pela soberania econômica da nação. Além disso, em oposição ao texto “Punto de vista antiimperialista” (1929) de Mariátegui, Martínez, em 1943, retoma o debate sobre a questão nacional do Peru, baseando-se em definição de Josef Stálin (El marxismo y el problema nacional y colonial, 1941). Pontos como a defesa do direito de se constituir um Estado nacional indígena separado, assim como a exaltação do modelo soviético de federação multinacional se opõem à proposta mariateguiana de um Estado socialista multiétnico – fundamentado em uma redefinição socioeconômica da peruanidade. Ademais, Martínez abandona a ideia de reivindicação da tradição coletivista das comunidades campesinas originárias (ayllus), para restringir a participação indígena na Revolução Peruana somente aos “trabalhadores rurais” – não mais aos “comuneiros”.
Apesar dessas divergências, vale por fim mencionar as palavras do próprio Mariátegui, em introdução ao importante artigo de Martínez, “Movimiento obrero en 1919” (1928), em que o Amauta afirma que “os conquistadores, os vice-reis, os caudilhos, os generais, os literatos, as revoluções deste país, encontram facilmente biógrafos abundantes, ainda que nem sempre estimáveis”, mas a “crônica da luta operária” – grande contribuição de Martínez – “está para ser escrita”. Ricardo Martínez de la Torre ocupou este lugar: de ator e historiador das lutas proletárias e campesinas do Peru na primeira metade do século XX.
3 – Comentário sobre a obra
Ricardo Martínez de la Torre escreveu poemas e textos literários desde criança – como é o caso da mencionada novela Tragedia (s/l: s/e, 1915). Mais tarde, estreiam outras produções literárias: Lámpara de oro (Lima: s/e, 1925), composto por poemas; e El amor limosnero (Lima: s/e, 1925), um romance lírico. Mais tarde, na revista Amauta foram publicados seus últimos textos poéticos, como “Pogrom”, de 1928 (uma evocação da miséria e da esperança proletária); e o “Himno Vitarte”, de 1930 (um hino dedicado aos operários da fábrica têxtil de Vitarte).
A sua vasta produção ideológica, econômica e política é compreendida nos quatro tomos da volumosa antologia Apuntes para una interpretación marxista de História social del Perú (Lima: Empresa Editora Peruana, 1947-1949). A primeira edição desta obra (Lima: Empresa Editora Peruana, 1935) tinha sido apreendida na década anterior pela polícia, restando dela apenas poucos exemplares; assim, após a II Guerra Mundial, a obra foi republicada em uma edição ampliada.
Apuntes é uma compilação que inclui textos de Martínez de la Torre, de José Carlos Mariátegui e diversos documentos do movimento operário e sobre o marxismo peruano da primeira metade do século XX. Símbolo da sua luta no campo intelectual, a edição contém grande parte dos escritos de Martínez, incluindo relatos de lutas, de greves e de enfrentamentos desde os anos 1910 até 1948, assim como elementos e documentos históricos de imensa importância para a história da luta de classes no Peru. O primeiro volume contém relatos da luta pela jornada de trabalho de 8 horas (em particular o movimento de 1919); um panorama histórico do surgimento do Partido Socialista del Perú; e elementos da polêmica que desembocou na cisão entre a APRA e os socialistas. O segundo volume apresenta as teses ideológicas de Mariátegui; correspondências entre Mariátegui e Haya de la Torre; e documentos sobre a fundação do PSP. Já o terceiro volume compila documentos referentes ao surgimentos e primeiros anos da Confederación General de los Trabajadores del Perú (CGTP). Finalmente, o quarto volume traz documentos e artigos que tratam do processo de sindicalização no Peru, assim como de vários episódios de lutas operárias e camponesas.
Dentre os textos de Martínez presentes nos Apuntes, constam artigos sobre os mais variados temas. Os trabalhos comentados abaixo são alguns dos mais significativos em termos teóricos e historiográficos (embora ele tenha também importantes textos acerca de questões conjunturais e táticas).
No primeiro capítulo do volume I, está o texto mais conhecido do autor, “El movimiento obrero en 1919”, publicado na revista Amauta (nº17, 18, 19) e como livro pela Editorial Amauta (Lima, 1928). Nele, Martínez descreve detalhadamente o processo de luta que levou à primeira greve geral da história do Peru, oferecendo a historiadores e militantes um documento de grande valor historiográfico e político.
Ainda neste tomo, em “La teoria del crecimiento de la miseria aplicada a nuestra realidad” – publicado originalmente em Amauta (n. 23, 24, 25, 26, 27) –, o autor traz muitos dados socioeconômicos sobre a realidade peruana, assim como um panorama da penetração imperialista na economia e na política do país. O extenso texto traz ao debate peruano muitos dados oriundos de publicações da Internacional Comunista e propostas teóricas de Marx e de pensadores marxistas (Karl Radek, Karl Kautsky), além de discussões com produções indigenistas (Hildebrando Castro Pozo, Dora Mayer de Zulen). Em Por el ‘servício colectivo’, publicado pelas Ediciones Frente (s/l) em 1932, Martínez desenvolve uma ampla análise de conjuntura na qual caracteriza o lugar dependente do Peru na economia capitalista mundial e seus efeitos na condução da luta de classes pelos órgãos sindicais e partidários revolucionários no âmbito nacional; em particular, desenvolve o exemplo de uma greve dos condutores de bondes, em Lima.
Em seu volume inicial, Apuntes contém ainda uma compilação de escritos de Martínez, publicados anteriormente pela revista Amauta e pelas Ediciones Frente – Páginas anti-apristas (1933) –, em que se encontram artigos dedicados à crítica de figuras do aprismo e a sua doutrina, de caráter “policlassista”, “pequeno-burguês” e “demagógico”.
Há também o texto “Con la CGTP de Mariátegui” (La Tribuna, 25-29/09/1934), em que Martínez reivindica o legado deste grande pensador marxista peruano contra o que identifica como uma deriva “oportunista” e “reformista” no âmbito sindical – em particular a aproximação da CGTP ao aprismo, o que leva a seu afastamento da corrente radical de massas defendida pelo Partido Comunista. Martínez produz uma refutação do “aprismo” em nome do marxismo-leninismo e do legado mariateguiano.
Já em seu longo ensaio “Reflexiones políticas sobre el arte” – aparentemente inédito, escrito entre 1936 e 1937 –, o autor desenvolve uma análise materialista sobre a obra de arte e o papel do artista na revolução e no socialismo.
Por fim, o primeiro volume de Apuntes se encerra com um texto de grande importância historiográfica, escrito no início dos anos 1930: “Así se conquistó la jornada de 8 horas”. Nele, Martínez faz um histórico do movimento sindical peruano desde seus primórdios, na virada do século XX, trazendo numerosos documentos, panfletos, discursos e relatos das lutas até 1919. Este artigo foi publicado novamente em 1978, como complemento da reedição (em formato de livro) do texto El movimiento obrero en 1919 (Lima: Ediciones Cronos, 1978).
Com relação ao segundo volume de Apuntes, ele contém vários escritos do período 1939-1945, quando Martínez é ativo na campanha eleitoral do democrata liberal Manuel Prado – ocasião na qual ele trava dura polêmica contra o aprismo. Em Tareas fundamentales de nuestro movimiento (s/l: Ediciones Frente, 1942), o autor argumenta que a tarefa dos comunistas é lutar pela democracia burguesa e contra o fascismo, junto a setores da pequena-burguesia. Muito marcado pelo contexto de luta antifascista da II Guerra Mundial, o texto defende uma frente ampla de atuação policlassista contra as forças reacionárias do espectro político peruano e mundial.
Há também no tomo o ensaio intitulado “El Perú ¿una nación?” – publicado anos antes (s/l: Ediciones Frente, 1943) –, em que Martínez se afasta das ideias de Mariátegui sobre a questão nacional, e se referenciando em escritos de Stálin, rejeita como “populismo” a proposta de aliança estratégica entre campesinato (de tradição colectivista indígena, fundada nos ayllus) e o proletariado industrial ou rural.
O escrito “La Reforma Universitária en la Argentina” (vol. II) foi antes publicado em Amauta (n. 30, 31, 32) e, logo, pelas Ediciones Frente (1943); tem a particularidade de contar com comentários do comunista argentino Paulino González Alberdi, redigidos durante sua estadia em Lima como assessor do PCP e representante da IC, em 1930.
Por último, menciona-se que no quarto volume de Apuntes consta uma seção intitulada “Por qué renuncié al Partido Comunista”, na qual várias cartas escritas no final de 1931, acompanhadas de notas de rodapé, apresentam os conflitos entre o autor e a direção do Partido.
Os artigos de Ricardo Martínez de la Torre na revista Amauta estão disponíveis no portal Revistas Culturales (https://revistas-culturales.de), da Universität Tübingen (Alemanha). E uma homenagem sua póstuma à Mariátegui, de 1932, está disponível no portal Marxists (www.marxists.org).
4 – Bibliografia de referência
COLL, Edna. Indice informativo de la novela hispanoamericana (v. 5). San Juan: Editorial de la Universidad de Puerto Rico, 1974. Disp.: https://books.google.com.br.
FLORES GALINDO, Alberto, La agonía de Mariátegui: la polémica con la Comintern, Lima: DESCO, 1980.
GUADALUPE, Sebastián, “Ricardo Martínez de la Torre y la historiografía peruana del movimiento obrero”. Revista del Instituto Seminario de Historia Rural Andina, n. 8, 2022. Disp.: https://revistasinvestigacion.unmsm.edu.pe.
JEIFETS, Lazar; JEIFETS, Víctor. América Latina en la Internacional Comunista, 1919-1943 – Diccionario Biográfico. Santiago de Chile: Ariadna Ediciones, 2015.
ROUILLON, Guillermo. La creación heroica de José Carlos Mariátegui (tomo I): la Edad de Piedra. Lima: Arica, 1975.
______. La creación heroica de José Carlos Mariátegui (tomo II): la Edad Revolucionaria. Lima: Alfa, 1984.
Notas
* Jean-Ganesh Faria Leblanc é historiador; formado em Estudos Políticos (Institut d’Études Politiques de Lyon-França), com mestrado em História do Pensamento Político (École Nat. Supérieure de Lyon) e doutorado em Estudos Latino-Americanos (Université de Lyon). É pesquisador do Núcleo Práxis-USP e do laboratório Langues et Civilisations Étrangères (Univ. de Lyon). Autor de, entre outras obras: Le socialisme indo-américain comme création héroïque: la question de la praxis chez José Carlos Mariátegui (Univ. de Lyon, 2024).
* Com colaboração e edição de texto de Yuri Martins-Fontes, Felipe Deveza e Joana Coutinho, este artigo foi originalmente publicado no portal do Núcleo Práxis-USP, sendo um dos verbetes do Dicionário marxismo na América; permite-se sua reprodução, sem fins comerciais, desde que citada a fonte (nucleopraxisusp.org) e que seu conteúdo não seja alterado. Sugestões e críticas são bem-vindas: nucleopraxis.usp.br@gmail.com.