Parte obrigatória da profissão de jornalista é ter que ver e escutar os políticos mais poderosos da história do país, uma tarefa que pode ser bastante tediosa em um cenário político onde quase nunca há surpresas, já que tudo está bem ensaiado e coreografado. Mas há dias em que há algo inédito, como quando, por exemplo, aparecem nos cenários uns canibais. Sim, canibais.
O presidente Biden, como costumam fazer os políticos para “se conectar” com as pessoas, estava falando de um conto de sua vida pessoal durante um evento de sua campanha eleitoral em sua cidade natal de Scranton, Pensilvânia, onde foi ao monumento comemorativo aos homens desse povo que lutaram na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a guerra “boa”.
Encontrou os nomes de seus tios, incluindo seu “tio Bosie”, cujo avião, contou, foi derrubado perto de Nova Guiné e “nunca encontraram o corpo” porque foi “derrubado em uma área onde havia muitos canibais”, dando a entender que o tio do presidente foi, como o disse diplomaticamente, um colega jornalista, “comida” de uns canibais.
Mas a história não acabou aí. Pouco depois foi revelada a informação de que a história fantástica era justamente isso, uma fantasia: arquivos do Pentágono informam que o avião teve problemas mecânicos, caiu no mar, e que o tio [de Biden] não era um piloto, mas um passageiro, em um voo que não era parte de nenhuma missão de combate. Mentia ou [Biden] acreditava nisso? Da mesma forma, ambas as possibilidades são preocupantes.
Nesses mesmos dias, o rei indisputável da fantasia política estadunidense, Trump, teve que aguentar uma semana no incômodo banco dos réus em um tribunal criminal em Manhattan, onde se viu como um menino mal-comportado, castigado por um professor e onde, pela primeira vez em sua vida adulta, teve que aceitar ordens de calar a boca e ficar quieto.
Mas ao sair a cada dia, como um “valentão”, se declara vítima e mártir, e acusa todos que se atrevem a criticá-lo e até julgá-lo, de fazerem parte de um complô da “esquerda radical” encabeçada por Biden, para descarrilar sua candidatura (surpreende cada vez que se é informado que se vive num país socialista com um governo “radical”. Mas pelo menos ele não mencionou os canibais como parte da trama).
Enquanto isso, outras figuras da cúpula política competem para ser as mais cômicas, mas dentro de um filme de terror, entre elas: o senador democrata e ex-juiz político do hemisfério, Robert Menendez. Este está contemplando culpar sua esposa para defender-se em seu julgamento em que é acusado de aceitar barras de ouro, uma Mercedes e um montão de dinheiro de estrangeiros em troca de favores políticos; e aí nesse Capitólio continua sentado um legislador acusado de pagar a menores de idade por sexo. Outros dizem que Deus selecionou Trump (o candidato continua vendendo Bíblias autografadas por ele) entre vários mais que defendem neonazistas, entre outros.
Tudo isto seria meio engraçado se não fosse o fato de que estes estão entre os encarregados de conduzir a política do país mais poderoso do mundo. Todos eles compartilham responsabilidade pela violência no exterior e no interior deste país. Biden e a maioria dos democratas, junto com suas contrapartes republicanas, acabam de aprovar milhões a mais em assistência militar para enviar mais bombas e munições a Israel e para continuar a guerra entre Rússia e Ucrânia, e provocar um pouquinho mais a China.
Ao mesmo tempo, este 20 de abril marcou o 25º aniversário de Columbine, o tiroteio massivo em uma escola preparatória em Colorado, onde morreram 12 estudantes e um professor. Desde então, foram registrados mais de 400 tiroteios em escolas e hoje, as armas de fogo são a causa principal de morte de jovens estadunidenses.
Talvez se for verdade isso dos canibais, às vezes parece que este país está se comendo a si mesmo.
“Nunca foi mais imprevisível nosso futuro, nunca dependemos tanto das forças políticas que não podem ser confiadas a se apegar às regras do senso comum e interesse próprio – forças que são vistas como pura loucura” – Hannah Arendt, 1951.
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Revisão: Carolina Ferreira