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Foto: Alexander Kagan / Unsplash

Da Porte de la Villette à Bastille: uma jornada pela cultura e modernidade de Paris

Eventos culturais como La Nuit des Molières e uma homenagem a Bernard Pivot destacaram a rica vida cultural de Paris e a defesa apaixonada da língua francesa contra a influência anglo-americana
Jorge Rendón Vásquez
Diálogos do Sul Global
Paris

Tradução:

Ana Corbisier

Desde que minha esposa e eu chegamos a Paris, no começo de maio deste ano, ficamos imersos na cultura francesa à qual, é preciso que se diga, nos devemos há muitos anos.

A amiga que nos esperava no aeroporto Charles de Gaulle, uma conhecida médica, programara desta vez, para o trajeto até seu apartamento em seu automóvel, um percurso pelos bairros populares que não constam dos guias turísticos e que, portanto, os turistas não chegam a conhecer; até porque, em sua maioria, só se interessam pelos deslumbrantes lugares desta bela cidade.

Ao chegar a Paris, nossa amiga dobrou para a Porte de la Villette e dali passamos pelas ruas e praças pelas quais em outros tempos avançaram as multidões fazendo a história deste país e uma parte da história da humanidade. E de repente surgiu a rua Ménilmontant e com ela a lembrança da emblemática canção com este título que Charles Trenet compôs por volta do fim da década de trinta do século passado:

Menilmontant, mas sim senhora
Foi ali que deixei meu coração
É ali que venho reencontrar minha alma
Todo meu fogo
Toda minha felicidade.

Nos dirigimos depois à praça da République, que no dia seguinte, Primeiro de Maio, se encheria outra vez de trabalhadores, e descemos para a praça da Bastille; depois entramos pela rua do Faubourg de Saint Antoine, lugares ligados à grande revolução de 1789; e, finalmente, chegamos ao apartamento de nossa amiga, no XII arrondissement.

Já estabelecidos neste apartamento, que nos acolhe há uns dez anos graças à amizade e à solidariedade, nos dispusemos a fazer o que fazem todos aqui, nós com a qualificação de residentes intermitentes que nos conferimos. 

Os espetáculos de Paris: passeios, teatro, cinema, museus, exposições e outros são anunciados na publicação semanal de umas 170 páginas L’officiel des spectacles. Nós o compramos na pequena livraria que sempre nos abastece de jornais, revistas e livros com informação da atualidade. 

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Naqueles primeiros dias de maio houve dois eventos de grande repercussão no campo da literatura e das artes.

O primeiro foi a 35 cerimônia denominada La Nuit des Molières (A Noite dos Molières); e o segundo, uma homenagem a Bernard Pivot

O Molière é um prêmio inspirado nos Oscar de Hollywood, outorgado aos artistas, diretores e outras pessoas de teatro destacados no ano anterior. O teatro das Folies Bergères, onde aconteceu o ato, ficou cheio de artistas e de outras pessoas vinculadas à atividade teatral. A bela Caroline Vigneaux, em outros tempos advogada e agora artista de teatro, foi a encarregada da condução e o fez com uma classe impecável.

Molière, o grande ator e autor de comédias (1622-1673), está em todo lugar na França. Faleceu quando representava sua comédia O doente imaginário. É um símbolo. Foi-lhe erigido um monumento na esquina das ruas Richelieu e Molière de Paris, perto da Comédie Française, criada pouco depois de sua morte; há vários filmes sobre sua vida. 

A imprensa de direita não gostou do que alguns artistas disseram neste ato. Caroline Vigneaux exclamou em certo momento: “Agradeço a todos… salvo à senhora Ministra […] Ou a senhora recupera o pacto dos 204 milhões de euros e não toca na intermitência e a liberaremos quando esteja pronta para a prefeitura de Paris.” Por sua vez, a humorista Sophia Aram, na hora de agradecer o Molière que recebia, aludiu ao silêncio em relação aos 1.200 israelenses massacrados no 7 de outubro. Acrescentou: “pode-se ser solidário com os mortos de Gaza sem sê-lo com as vítimas israelenses? Como exigir um cessar-fogo a Netanyahu sem exigir a libertação dos reféns? Este silêncio continua ferindo quantos se encontram vinculados aos direitos humanos. Eu poderia encontrar algo mais leve, mas não encontrei nada mais sincero.” Ambas as intervenções receberam intensos aplausos.

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Bernard Pivot, um jornalista literário, morto em 6 de maio deste ano, ficou famoso desde janeiro de 1975 com seu programa de TV Apostrophes no qual apresentava livros de literatura que acabavam de ser publicados e entrevistava os escritores mais relevantes de língua francesa e outras. Este programa terminou em 1990, mas depois ele criou outro, denominado Bouillon de culture (Caldo de cultura), com o mesmo conteúdo em outra cadeia de TV, que durou até junho de 2001. Sua paixão era a defesa da língua francesa. E, como parte de sua campanha por esta causa, organizou o Campeonato da França de Ortografia para adultos, sobretudo profissionais e entre eles muitos parlamentares, desde 1985 até 1993. Às várias centenas de inscritos, reunidos em um grande salão, inclusive em certos anos a Assembleia Nacional, ditava um texto que eles deviam escrever à mão. Pelas sutilezas da ortografia francesa era divertido ver como muitos se ruborizavam quando lhes mostrava seus erros.

Na quarta-feira, 8 de maio à noite, no mesmo dia de sua morte, prestaram-lhe uma homenagem em um programa da antena TV 5, com a participação de vários intelectuais relacionados com ele. Foi como um responso, o adeus não dito ao que Pivot defendera tanto, que foi o domínio da língua francesa na França contra a invasão dos termos anglo-americanos, que se apoderam dos avisos e cartazes nas ruas, nos espetáculos e, ainda, nas publicações e até nos livros, termos que chegam com a revolução científica e técnica e a necessidade de atender às centenas de milhões de turistas e outros visitantes de língua inglesa. Não parece, por isso, uma coincidência que o programa de Pivot Apostrophes terminasse em 1991, nem que sua insistência com seu programa Bouillon de Culture não passasse de 2001. Em termos geopolíticos dir-se-ia que foram deslocados pela influência cada vez maior da economia e da cultura norte-americanas. Na prática, o idioma de comunicação internacional na União Europeia, que tem 27 países, é o Inglês, apesar de que a Grã-Bretanha já se retirou dela e só resta a Irlanda (com algo mais de 5 milhões de habitantes) onde se fala esta língua. Correlativamente, as editoras de obras literárias lançam grandes tiragens de livros de língua inglesa, em sua maior parte norte-americanos, traduzidos para o francês, o que era raro há uns cinquenta anos, e nos canais de TV se exibem com regularidade os filmes de Hollywood. Dir-se-ia que uma bruma cultural, emanada da presença econômica e política norte-americana, cobre a Europa ocidental, uma subliminar dependência que transcende a política. E, no entanto, restam sólidos redutos de cultura francesa intactos, honrando uma tradição cujas origens remontam ao século XVII.

Adendo minúsculo: a expressão entre aspas do título deste comentário procede do tango Farol de Virgílio e Homero Expósito, composto em 1943. “Farol, as coisas que agora se veem… Farol, já não são as mesmas que ontem…”


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Jorge Rendón Vásquez Doutor em Direito pela Universidad Nacional Mayor de San Marcos e Docteur en Droit pela Université de Paris I (Sorbonne). É conhecido como autor de livros sobre Direito do Trabalho e Previdência Social. Desde 2003, retomou a antiga vocação literária, tendo publicado os livros “La calle nueva” (2004, 2007), “El cuello de la serpiente y otros relatos” (2005) e “La celebración y otros relatos” (2006).

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