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ToggleO regime de exceção, adotado pelo Governo de Nayib Bukele em El Salvador em março de 2022, resultou em graves violações de direitos humanos contra crianças e adolescentes detidos em comunidades de baixa renda, denunciou a organização Human Rights Watch (HRW) em 16 de julho.
Juanita Goebertus, diretora da Divisão das Américas da HRW, disse que “as crianças e adolescentes de comunidades vulneráveis em El Salvador sofreram graves violações de direitos humanos devido às detenções indiscriminadas implementadas pelo governo”.
O informe de 114 páginas, “‘Seu filho não existe aqui’: Violações de direitos humanos de crianças e adolescentes durante o regime de exceção em El Salvador” documenta casos no contexto do que o presidente Nayib Bukele denomina uma “guerra contra as gangues”.
Expõe situações de detenções arbitrárias, tortura e outras formas de maus tratos contra menores de idade presos no meio desta luta, submetidos a condições deploráveis na prisão, inclusive superlotação, falta de alimentação e atenção médica adequados, assim como contato com advogados e familiares.
Confira o documento: El Salvador: Violações de direitos contra crianças em ‘Estado de emergência’ – Human Rights Watch
Crianças e adolescentes detidas com adultos
Em vários casos, as crianças foram detidas junto com adultos durante os dias iniciais da prisão destes. Muitos foram condenados por delitos definidos de forma ampla e em processos com violações à legislação, segundo a HRW.
Policiais e soldados levaram a cabo inumeráveis batidas, particularmente em comunidades vulneráveis onde a violência das gangues era uma presença constante, detendo mais de 80 mil pessoas, incluindo cerca de 3 mil crianças e adolescentes.
Durante anos, a pobreza generalizada, a exclusão social e a falta de oportunidades educativas e laborais deixaram muitas crianças com poucas opções viáveis, permitindo que as gangues abusem delas e que as forças de segurança as estigmatizem como delinquentes e as assediem.
A HRW assegurou que, entre junho de 2023 e julho de 2024, entrevistou mais de 90 pessoas em El Salvador, e em setembro e dezembro de 2023 visitou comunidades em vários departamentos do país.
Entre os entrevistados encontravam-se vítimas de abusos, familiares, advogados, vários juízes, agentes de polícia, ex-funcionários governamentais, professores, especialistas em segurança, jornalistas e membros da sociedade civil.
“Também revimos expedientes judiciais de casos relevantes, assim como antecedentes médicos, educativos e penais”, indicou o informe.
De acordo com sua pesquisa, as prisões indiscriminadas levaram à detenção, frequentemente durante períodos prolongados prévios ao processo, de numerosas crianças sem nenhuma conexão aparente com as atividades abusivas das gangues.
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Com frequência, essas detenções parecem estar baseadas na aparência física e nas condições socioeconômicas dos menores, mais do que em evidências críveis e sólidas.
Em alguns casos, as autoridades realizaram detenções baseadas em informação questionável, como denúncias anônimas não corroboradas. As forças de segurança habitualmente não apresentaram ordens de registro ou detenção, e raras vezes informaram aos detidos e seus familiares os motivos da detenção.
Em um dos casos documentados, soldados detiveram um estudante secundarista de 16 anos em Sensuntepeque, no departamento central de Cabañas, quando regressava a sua casa depois de jogar uma partida de futebol, em maio de 2022.
Um familiar disse a HRW que os soldados o obrigaram a despir-se, queimaram suas costas com um isqueiro e lhe ordenaram confessar a que gangue pertencia.
Os documentos do expediente judiciário mostram que depois foi acusado de organização criminosa, na base de um único depoimento de uma “testemunha criteriosa” anônima, e condenado a seis anos de prisão. O jovem permanece detido.
Em outro caso, policiais e soldados prenderam uma estudante de 17 anos de um povoado rural no departamento ocidental de Sonsonate, em 1° de julho de 2022, sem lhe mostrar uma ordem de detenção.
Em 9 de janeiro de 2023, um juiz pressionou-a, assim como a outras sete crianças, para que se declarassem culpadas conjuntamente de colaborar com a gangue MS-13 em troca de sentenças reduzidas. Todas se declararam culpadas e foram sentenciadas a um ano de prisão. “Não tínhamos opção”, disse a estudante.
Sistema carcerário de El Salvador sobrecarregado
Mais de mil crianças foram condenadas durante o regime de exceção, com sentenças que vão de dois a 12 anos de prisão, frequentemente por acusações definidas de forma excessivamente ampla, como o delito de “associação criminosa”, e frequentemente com base em testemunhos policiais não corroborados.
O encarceramento massivo sobrecarregou o já frágil sistema judiciário de El Salvador, e as autoridades tomaram poucas medidas para proteger as crianças e adolescentes da violência por parte de outros detidos, inclusive de casos de golpes e agressões sexuais.
O informe da HRW reconhece que a prolongada e alta taxa de homicídios do país, que alcançou um máximo de 106 por cada 100 mil habitantes em 2015, diminuiu drasticamente, chegando a um mínimo histórico de 2,4 homicídios por cada 100 mil habitantes em 2023, segundo cifras oficiais.
No entanto, a falta de transparência sobre as taxas de criminalidade e as denúncias de manipulação das cifras torna difícil avaliar com precisão o alcance exato da redução da violência, afirmou HRW.
Políticas de Bukele são superficiais
“O governo deveria implementar uma política de segurança efetiva e respeitosa dos direitos humanos que desmantele as gangues, previna o recrutamento de crianças e lhes proporcione proteção e oportunidades”, disse Goebertus.
Um mecanismo deveria ser estabelecido para rever os casos de crianças e adolescentes e de outras pessoas vulneráveis, visando libertar aqueles que foram detidos sem provas durante o estado de exceção, segundo a HRW.
A perseguição penal deveria ser priorizada, e com o devido processo, para os altos líderes das gangues, máximos responsáveis por delitos atrozes.
O governo também deveria desenvolver uma estratégia de segurança integral que proteja os menores da violência e do recrutamento das gangues, incluindo programas de reabilitação para os menores recrutados e apoio para a reinserção de crianças em conflito com a lei, concluiu o informe da HRW.
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