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Foto: ONU / Flickr

As crises globais, a construção de um novo multilateralismo e o papel da ONU

Em tese criada para promover a paz e o desenvolvimento global, a ONU se mostra hoje incapaz de responder aos novos conflitos e desafios geopolíticos e econômicos
Guillermo Castro H.
Diálogos do Sul Global

Tradução:

Ana Corbisier

“O mal é acidental: só o bem é eterno.
Contra o dogma do mal eterno
O dogma novo do eterno trabalho pelo bem.
Confiar no que não se conhece não melhora mundos,
E sim trabalhar para isso”.
José Martí, 1883 (1)

No dia 13 de setembro último, o secretário-geral da Organização das Nações Unidas, Antonio Guterres, definiu a Cúpula do Futuro convocada por este organismo para 22 e 23 de setembro próximos como “um passo importante no caminho para a construção de um multilateralismo mais forte e eficaz e uma oportunidade para selar acordos de grande alcance sobre cooperação internacional para um mundo mais seguro, sustentável e justo”. (2)

Não cabe subestimar a importância desta colocação. Em resumo, a organização internacional – interestatal na realidade – do sistema mundial criada em São Francisco em 1945 e precedida em 1944 pela criação do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional como mecanismos de dolarização do mercado mundial, vem dando mostras de ineficácia crescente desde o fim do século XX. Isto, para o secretário Guterres, implica que “Os desafios do século XXI requerem instituições que resolvam os problemas do século XXI.”

Nesse sentido, a Secretaria Geral da ONU espera que a cúpula do futuro contribua para “atualizar e reformar as instituições globais, inclusive o Conselho de Segurança das Nações Unidas e a arquitetura financeira internacional, a fim de refletir e responder às realidades políticas de hoje e de amanhã.” Isto, por sua vez, requer um enfoque renovado na prevenção de conflitos e na mediação, não só por meio da negociação e da diplomacia preventiva, como também criando as condições para a estabilidade mediante o desenvolvimento sustentável e o respeito aos direitos humanos.

De fato, o Secretário Guterres reconhece que a ONU está se vendo ultrapassada pelas transformações em curso do sistema mundial que respondem a forças fora de seu controle. A criação da ONU serviu para garantir uma transição ordenada do mercado mundial de sua estrutura colonial de origem para outra, de caráter internacional, que desse guarida aos novos estados nacionais formados a partir da independência das antigas posses coloniais.

Quantitativamente, isso elevou o número de estados-membros da ONU de sua meia centena original para os 193 que a integram hoje. (3) Qualitativamente, abriu passagem para uma etapa inteiramente nova no desenvolvimento do mercado mundial, ao multiplicar os mercados nacionais abertos ao investimento estrangeiro e aptos a solicitar créditos para seu desenvolvimento econômico e social. (4)

Daí resultou um crescimento sem precedentes na história do mercado mundial, que na década de 1970 começou a ver superadas as condições que sustentavam sua organização internacional. No ano 2000, o crescimento econômico dera lugar a uma extraordinária concentração do capital em empresas transnacionais; a um incremento do poder dos organismos financeiros que geraram novas formas de organização do mercado e do sistema mundiais e à formação de economias emergentes de grande dinamismo, como Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, hoje núcleo do grupo BRICS.

Disso resultou que o sistema ingressasse em um processo de transição para novas formas de organização econômica e política, a que se deu o nome de globalização. Hoje este processo demanda que a ONU convoque uma Cúpula para o Futuro, diante do evidente esgotamento de sua capacidade de “responder à natureza cambiante da guerra e de modernizar os processos de paz, mitigar os riscos de militarização das novas tecnologias, e reformar a arquitetura financeira mundial para torná-la compatível com a economia global atual.” Ou seja, para Guterres, esta situação demanda entender que

os conflitos ferozes causam um sofrimento terrível, que as profundas divisões geopolíticas criam tensões perigosas que se veem agravadas pelas ameaças nucleares; que a desigualdade e a injustiça erodem a confiança e alimentam o populismo e o extremismo; e que a discriminação, a misoginia e o racismo adotam novas formas.

Tudo isso – que se expressa, aliás, na crescente agressividade de movimentos reacionários em todo o planeta –, sugere a necessidade “de uma maior solidariedade mundial hoje e para as gerações futuras; de uma melhor gestão das questões críticas de interesse mundial, e de uma ONU capaz de enfrentar os desafios da nova era.” Assim, espera-se da Cúpula que permita aos Estados-membros da ONU agir “com rapidez, visão, coragem, solidariedade e espírito de compromisso,” para lograr “acordos de grande alcance sobre colaboração internacional para um mundo mais seguro, mais sustentável e mais equitativo”.

Seis dias depois, o Secretário Guterres retomou o tema, para insistir na necessidade de que “os países que se comprometam a reformar as instituições internacionais” para torná-las “mais legítimas, eficazes e adequadas ao mundo de hoje e de amanhã”. Não podemos, acrescentou “criar um futuro adequado para nossos netos com sistemas construídos para nossos avós.” A esse respeito, disse ainda que, assim como os fundadores da ONU, “não podemos saber com precisão o que nos prepara o futuro, mas não precisamos de uma bola de cristal para ver que os desafios do século XXI requerem mecanismos internacionais de solução de problemas mais eficazes, interconectados e inclusivos.” [5]

Estando assim as coisas, a Cúpula do Futuro não deixa de lembrar o Concílio Ecumênico Vaticano II, convocado em 1959 pelo papa João XXIII.[6] Este Concílio se realizou entre 1962 e 1965, no pontificado de Paulo VI, teve como língua oficial o latim, e gerou acordos e desacordos que se prolongam até hoje na vida da Igreja. A comparação, em todo caso, é mais que relativa: a ONU tem uma história de 79 anos, enquanto a da Igreja tem mais de 2000; suas estruturas de governo interior não podem ser mais diferentes, e o caráter e alcance da autoridade do Papa e do Secretário-Geral são muito distintos, também.

Frente à gravidade da crise gerada pela transição do mercado mundial para formas cada vez más transnacionalizadas de organização da economia e do poder no sistema mundial, a clareza e a valentia com que o Secretário Guterres defende a necessidade de pôr o sistema internacional em condições de contribuir para o equilíbrio do mundo merecem sem dúvida reconhecimento e solidariedade. Outras opções, de fato, levariam a generalizar a barbárie que foi sendo imposta a setores cada vez maiores da Humanidade, com uma eficácia maior do que a demonstrada pelos integrantes da ONU para cumprir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável que proclamaram em 2015 para vê-los cumpridos em 2030.

Diante desta circunstância, só cabe reiterar aqueles princípios fundamentais do pensar martiano que nos chamam a ter fé no melhoramento humano, na utilidade da virtude, e na luta pelo equilíbrio do mundo. E frente à incerteza que gera nossa circunstância podemos, devemos, concordar com o que disse Martí a seu grande amigo mexicano Manuel Mercado, às vésperas da transição que levou à desintegração do sistema colonial por meio da Grande Guerra de 1914-1945, como bem pode ocorrer com o sistema internacional que veio a substituí-lo:

Em mim, é talvez a pena maior por sê-lo o conhecimento, posto que há tanto tempo atrás venho alegando, e guardando, e vendo crescer, as provas de minhas previsões, que não querem dizer que o mundo vem abaixo, mas sim que é necessário pôr-se em pé, e ver o que acontece no mundo, para que não aconteça o que se pode evitar…[7]


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Guillermo Castro H.

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