O historiador, editor e jornalista indiano Vijay Prashad escreveu, em colaboração com Noam Chomsky, o livro Sobre Cuba, uma tentativa de lembrar às gerações mais jovens as conquistas do processo revolucionário cubano, iniciado há 70 anos.
O novo livro, lançado no último mês de setembro, começa com uma visita a Silvio Rodríguez para entregar-lhe a obra anterior. “Fui dar-lhe o livro que Chomsky e eu havíamos feito, A retirada, que saiu em espanhol pela Capitán Swing”, comenta Vijay. “Ele me disse que era um grande admirador de Chomsky e me deu um livro volumoso no qual havia reunido materiais e escrito sobre a música cubana. Quando dei esse livro a Noam, ele ficou muito contente.”
Começaram então a falar sobre Cuba, e “a sugestão de fazer o livro surgiu espontaneamente a partir dessa conversa”. Gravaram várias horas de diálogo, a partir das quais elaboraram alguns manuscritos, resultando em Sobre Cuba: 70 anos de Revolução e luta, publicado agora também pela Capitán Swing, com tradução de Lidia Pelayo Alonso, prólogo do presidente da República de Cuba, Miguel Díaz-Canel, e introdução de Manolo de los Santos, diretor executivo do The People’s Forum e pesquisador do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, dirigido pelo próprio Vijay.
Sobre Cuba oferece uma análise ágil, mas profunda, da história política da Cuba revolucionária desde a década de 1950. Em sua forma, o livro é fiel à conversa íntima entre esses dois intelectuais. Nele, explora-se tanto o impacto da Revolução Cubana no cenário internacional quanto o do bloqueio estadunidense contra a ilha.
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Chomsky e Prashad destacam, diante dos desafios econômicos impostos pelo Golias do Norte, a relevância dos esforços de Cuba para avançar nas reformas socialistas e em sua solidariedade internacionalista, narrando uma história de missões médicas e militares no Sul Global.
O livro apresenta um debate equilibrado e comprometido sobre a complexidade de um panorama político e econômico, oferecendo lições significativas para todo projeto socialista. Por causa disso, e em razão de sua publicação em espanhol, conversamos com Vijay.
Confira a entrevista.
Alejandro Pedregal | O subtítulo do livro enfatiza os 70 anos do processo revolucionário, em vez de focar nos 65 transcorridos desde sua vitória. Por que vocês quiseram destacar isso?
Vijay Prashad | O processo revolucionário remonta a muito tempo atrás, mesmo antes do assalto ao Moncada, em 26 de julho de 1953. Com os 70 anos, quisemos ao menos indicar a situação em Cuba desde essa data. As revoluções são um processo, não um acontecimento. O processo não tem um ponto de partida fixo. Podemos indicar o Moncada, como disse, mas também o momento em que o Granma aportou em Cuba, em 2 de dezembro de 1956.
Ao longo do livro, vocês expõem uma série de argumentos contra o bloqueio dos Estados Unidos a Cuba. Quais foram suas consequências mais significativas? O que poderia e deveria ser feito a respeito em um futuro próximo?
O bloqueio, que já dura mais de seis décadas, é ilegal e cruel. Impede uma pequena nação insular de realizar livremente atividades comerciais básicas com outros países. As sanções a terceiros impedem que empresas que não operam nos Estados Unidos enviem e recebam facilmente mercadorias para e de Cuba. As companhias de navegação não atracam em águas cubanas, e produtos básicos são negados ao país. Trata-se de uma situação muito dura, que não deve ser aceita como normal. A cada ano, a maioria do mundo vota pelo fim desse bloqueio, e é preciso que ele termine já.
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Com o falecimento de Fidel Castro e a mudança de época, quais desafios e oportunidades Cuba enfrenta para o futuro?
Fidel Castro era realmente um homem extraordinário. Reuni-me com ele várias vezes e me inspirei em seu otimismo e inteligência. Durante sua liderança, ele preparou o país para esses desafios, especialmente por meio de sua Batalha de Ideias. Os atuais dirigentes de Cuba são herdeiros de seu exemplo. É claro que é difícil seguir os passos de alguém como Fidel. Mas Fidel não é apenas uma pessoa. Ele é todos os cubanos. E também nós.
Enquanto os Estados Unidos continuam com sua ingerência geopolítica na América Latina, como você vê o papel de Cuba na região? Cuba pode manter seus ideais revolucionários diante da crescente pressão para impor modelos neoliberais e auxiliar outros projetos anti-imperialistas (como a Venezuela) a resistirem às políticas de mudança de regime?
A situação em toda a América Latina é complicada. A base social do radicalismo foi enfraquecida pela precariedade no trabalho, pela inflação e pela falta de um projeto político de esquerda vibrante. A ascensão de uma extrema direita de tipo especial, de Milei a Bolsonaro, abalou a possibilidade de um futuro socialista ou mesmo progressista. Cuba vive nesse contexto. Precisa negociar esse equilíbrio de forças. O ataque à Venezuela e a outros países da ALBA-TCP ameaça seriamente a Revolução Cubana. Cuba pode fazer sua parte, mas não pode fazer tudo. É importante fortalecer a solidariedade com Cuba em todo o mundo e construir as bases da soberania na América Latina frente ao imperialismo estadunidense.
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Os principais meios de comunicação costumam apresentar Cuba de forma unidimensional. Como distorcem a realidade política de Cuba?
Os Estados Unidos estão furiosos porque Cuba é “desobediente”, porque seu exemplo seria “contagioso” em todo o mundo. E isso é verdade. Cuba é desobediente. Quer estabelecer sua soberania, e esse exemplo é contagioso. Para impedir isso, os EUA argumentam que Cuba é um país totalitário, o que lhes é conveniente. Assim, não precisam lidar com os fatos. A mídia corporativa repete isso. São taquígrafos do governo dos Estados Unidos. Para eles, os fatos e o contexto não importam. E sem contexto, não há nada. É uma vergonha para o conhecimento humano.
Como você avalia o impacto internacional da Revolução Cubana no contexto atual, especialmente no Sul Global, onde a solidariedade cubana foi historicamente tão ativa?
Já se passaram várias gerações desde 1959 e o impacto daqueles eventos. A imensa conquista da Revolução Cubana não é tão evidente para os mais jovens. Esperamos que um livro como Sobre Cuba ajude as pessoas a compreender tanto o grande avanço que representou para o povo cubano expulsar os Estados Unidos e estabelecer sua soberania, quanto a importância da luta para manter a Revolução. Nosso desejo é que este livro revitalize, de alguma forma, o significado desse espírito de solidariedade.
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A Revolução Cubana sempre foi elogiada por seu internacionalismo, algo que se tornou evidente recentemente durante a crise da covid-19. Como você vê o papel do internacionalismo cubano no fomento da solidariedade mundial?
Os Estados Unidos dizem que Cuba é um Estado patrocinador do terrorismo. Na realidade, é um Estado patrocinador da saúde. Isso é evidente para todos. Cuba foi o único país que interveio militarmente na África para promover a libertação nacional e, depois, não buscou nada em troca. Foi isso que Nelson Mandela declarou, quase textualmente. É assim que o mundo enxerga Cuba. Os Estados Unidos estão fora de sintonia e precisam acabar com o bloqueio.
Vocês descrevem Cuba como um modelo socialista para o resto do mundo, especialmente para o Sul Global. Quais são as principais lições que outras nações podem tirar da experiência cubana com o socialismo? Quais são as perspectivas para seu desenvolvimento? Que ideias pode oferecer atualmente, em particular para resistir à perigosa letalidade de um império em declínio (como estamos vendo na Palestina)?
A melhor forma de entender Cuba é compará-la ao Haiti, que passou por uma história atormentada e uma contrarrevolução em 1957. Se Cuba tivesse seguido o mesmo caminho do Haiti, a situação do povo cubano seria infinitamente pior do que a de sua ilha vizinha. Cuba preserva sua dignidade e luta por sua soberania, enquanto o Haiti luta pela sobrevivência.
Esse é o grande feito. Cuba nos ensina que gastar dinheiro em saúde e educação é melhor do que gastá-lo em guerras. Os Estados Unidos gastam 1,53 trilhões de dólares em sua máquina de guerra. Quem dera esse dinheiro fosse investido em infraestrutura, educação, saúde e assistência social. Mas não é. Uma economia de guerra é muito mais destrutiva do que uma economia de paz.