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ToggleEnvolvido em uma série de escândalos e com a economia em baixa, a crise do governo de Johnson se tornou uma dessas tempestades perfeitas, que de um dia para outro transformam-se em furacões.
Os tempos imperiais estão cada vez mais distantes – o governo de Boris Johnson se desfez em um mar de renúncias, derrotas eleitorais e escândalos e esse último estertor de orgulho nacional que foi o Brexit não fez mais que aprofundar uma crise econômica angustiante.
Reino Unido: Renúncia de Boris Johnson pode não ser o bastante para salvar conservadores
O “verão do descontentamento” (summer of discontent, segundo a imprensa britânica) chegou às ruas com greves no transporte público (trens e metrôs), com milhares de voos cancelados em plena temporada turística e ameaças de rebelião no serviço de saúde e na educação.
Na quarta-feira (6), em seu duelo semanal no parlamento com o líder da oposição, o Prime Minister Question Time (PMQT), Johnson procurou parecer impávido e apenas preocupado com o futuro. “O trabalho de um primeiro ministro é seguir adiante lidando com os problemas que enfrenta o país e cumprindo nosso manifesto eleitoral”, respondeu aos questionamentos do líder da oposição, o trabalhista Keir Starmer.
Como ocorre nas crises terminais, a intervenção mais perigosa para o agora ex-primeiro-ministro veio de suas próprias fileiras e pareceu um apelo à rebelião grupal. Um dos dois ministros que sacudiu ainda mais o turbulento tabuleiro político com sua renúncia nesta terça-feira (5), o agora ex-titular da saúde, Sajid Javid, enumerou todos os erros de Boris Johnson, desde o Partygate até os recentes escândalos sexuais, concluindo que não haveria futuro se Johnson não desse um passo atrás.
“Quando começou o escândalo do Partygate, me asseguraram no mais alto nível que não houvera festas em 10 Downing Street. Quando me entrevistaram a esse respeito repeti a linha oficial. Mas tanto aqui como em outros temas tinham mentido para mim. Chegou o momento de dizer basta (….enough is enough…) Há algo fundamentalmente mal na condução deste país. O problema começa em cima e não vai mudar. Esta liderança está prejudicando a reputação do Partido Conservador”, disse Javid.
Coroa descoroada
A Coroa tampouco anda de parabéns. Com 95 anos, viúva, a Rainha Elisabeth II, iniciou sua retirada da cena pública: seus dias como rainha parecem contados. A herança do título é problemática. O herdeiro direto, o príncipe Charles, que já começou a substituir sua mãe em eventos oficiais, está salpicado por dois escândalos financeiros.
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O príncipe de Gales recebeu uma doação em dinheiro de 2,5 milhões de libras que lhe foram entregues em uma mala e nas distintas sacolas da loja de luxo “Fortnum and Mason”. O doador foi o ex-primeiro ministro do Qatar, o sheik Hamad Bin Jassim. Segundo o príncipe, o dinheiro foi transferido imediatamente ao Fundo Caritativo do Príncipe, o PWCF. O sheik é o dono do Paris Saint German de Lionel Messi, uma das pessoas mais ricas do planeta, apelidado de “homem que comprou Londres”. A pergunta é se também comprou o príncipe.
No outro escândalo real, o “cash for honors”, a polícia está investigando o papel que pode ter desempenhado o príncipe herdeiro na atribuição do título de Sir ao bilionário saudita, Mahfouz Marei Mubarak bin Mahfouz. Acrescenta-se a estas duas pérolas do príncipe herdeiro os patéticos desvarios sexuais de seu irmão, o príncipe Andrew, que teve que chegar a um acordo extrajudicial com Virginia Giuffre para evitar um processo sobre sua relação com ela quando tinha 17 anos, vê-se que a emblemática dignidade monárquica anda bem por baixo.
Página 12
A derrota em maio nas municipais, e em duas eleições de renovação de cadeiras em junho, foram contundentes
A crise da coroa cozinha devagar. A pergunta do milhão hoje era quanto mais poderia aguentar Johnson. O primeiro ministro não parecia capaz de caminhar sem tropeçar. A postura com ares de estadista quanto à Ucrânia na semana passada terminou em farsa assim que voltou a Londres e viu-se envolvido em um escândalo que mais que de saias, foi de calças.
O titular de um cargo chave para a disciplina interna parlamentar, o sub-chief whip (literalmente, subchefe do “chicote” com que se garante a ordem nas fileiras parlamentares, parte dessa cultura S/M da classe alta britânica), John Pincher, viu-se obrigado a renunciar na quinta-feira passada (30) por apalpar dois homens durante um evento partidário.
Johnson primeiro tentou salvar a pele de Pincher, depois deixou-o afogar-se para resguardar sua própria cabeça, mas mergulhou um pouco mais no pântano quando, durante o fim de semana, soube-se que ele sabia que Pincher (literalmente beliscador) era uma mão boba: “Pincher by name, Pincher by nature”, disse Johnson.
O escândalo desembocou em um novo pedido de desculpas de Johnson, que jurara que não sabia nada do assunto e que, de repente, recobrara a memória, algo que já acontecera com todas as festas (mais de 100, segundo certos cálculos) realizadas em 10 Downing Street durante a pandemia.
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Mais alarmante para sua sobrevivência foi a série de renúncias que começaram na terça-feira (5), em protesto por sua condução política. Entre as demissões estão dois de máximo calibre: o ministro de Finanças Rishi Sunak e o da Saúde, Sajid Javid. Segundo as manchetes da imprensa britânica, sempre fascinada com os paralelos entre a política, o assassinato de Júlio César e Shakespeare, Sunak e Javid foram os encarregados de cravar o emblemático punhal: faltaria arrematar a tarefa.
Nos jornais, só o “Daily Express” continuava apoiando Boris nesta quarta-feira: o resto da imprensa escrita (90% tory) simplesmente conjecturava sobre o momento de sua partida. A maioria utilizava a expressão “on the brink” (à beira do precipício). O “Daily Telegraph” escolhia uma metáfora similar, “Johnson hanging on a thread” (Johnson por um fio). O Metro jogava com os tempos verbais para vincular as duas renúncias reais e a futura (Going!, Going!, Gone?)
Os deputados abandonam o Titanic
O primeiro ministro depende do apoio de seus deputados que são os que o elegem para o cargo. No começo de junho, Johnson conseguiu uma vitória de Pirro na votação interna dos parlamentares conservadores que deviam decidir se o destituíam: 41% votou a favor de sua partida.
Teoricamente, não se pode repetir o exercício nos próximos 12 meses, mas as regras internas partidárias são flexíveis e com estes escândalos e as renúncias está claro que Johnson já não tinha o apoio dos 59% que votaram nele há um mês. A sucessão de demissões continuou, de secretários de estado a assistentes principais de deputados com cargo no governo. Se em junho votaram a favor de Johnson para formar parte do executivo, agora eram todos votos contrários.
A contundente derrota em maio nas municipais, espécie de eleições de meio mandato, e em duas eleições de renovação de cadeiras em junho, são claras indicações do preço que os conservadores estão pagando. A ameaça era que muitos deputados perdessem suas próprias cadeiras nas eleições de 2024 se continuassem com Boris Johnson na liderança. Se pelo menos a economia trouxesse boas notícias!
O verão do descontentamento e o Brexit
Boris Johnson chegou ao poder mediante uma aliança pró-brexit com mensagem patriótica e unificadora que lhe deu uma esmagadora maioria parlamentar nas eleições de dezembro de 2019: algumas semanas mais tarde, o Reino Unido deu um adeus definitivo à UE.
Dois anos e meio mais tarde, o Reino Unido caminha para a recessão com o nível de inflação mais alto em 30 anos e um descontentamento dos trabalhadores que tornou o respiro de verão deste país de clima endiabrado um inferno. É certo que no meio houve a pandemia e a guerra russo-ucraniana. É o que acontece em todo o mundo ocidental (não tanto no Oriente: na China as taxas de juros estão baixando), mas no Reino Unido tudo isso se agravou com o Brexit.
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A promessa era que o país recuperaria a liberdade, aprofundaria seu alcance econômico global e sua relação com a própria UE. A realidade é outra. Em abril, um estudo da London School of Economics mostrou que as exportações para o continente tinham diminuído em 30%. Na pequena e média indústria sente-se o impacto pela passagem de um mercado único europeu, com o qual podia-se comercializar livremente a outro, cheio de barreiras e restrições.
Uma nota da BBC baseada em entrevistas com 12 empresários de distintos setores resumiu suas opiniões assim: “Enorme queda das vendas, já não somos competitivos na Europa, é frustrante e dá medo”. Se acrescentarmos a isto a ameaça do então governo de Johnson de desconhecer o acordo a que chegaram como parte do Brexit para a Irlanda do Norte e que o bloco europeu considera uma violação do direito internacional, o futuro não parece promissor.
Com a economia em baixa, a crise do governo de Johnson se tornou uma dessas tempestades perfeitas que de um dia para outro transformam-se em furacões. Nem o teimoso narcisismo do primeiro ministro, nem toda sua confiança de “public school boy” lhe foram muito úteis.
Marcelo Justo | Página 12
Tradução de Ana Corbisier
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