* Atualizado em 29/04/2022 às 13h58
Um conceito básico do pensamento marxista é o relativo ao trabalho como qualidade humana, à força do trabalho, seu produto e valor, e à sua necessária reposição. Karl Marx dedicou a esse tema as páginas iniciais do primeiro tomo do O Capital. Resumidamente, ali nos diz que a capacidade ou força de trabalho é o conjunto das faculdades físicas e intelectuais que a pessoa põe em ação, mediante o trabalho, para criar um produto, o qual tem valor de uso se resolve uma necessidade.
Esta é uma qualidade exclusivamente humana. Mesmo que laboriosas abelhas constroem as células de uma colmeia com uma pulcritude “que envergonharia o melhor mestre de obras”, o trabalho humano as supera largamente em algo que nenhum animal pode fazer: conceber em sua mente o objeto útil e os possíveis modos de produzi-lo antes de empreender sua elaboração.
Em sua respectiva sociedade, prossegue Marx, esse produto além do mais tem valor de troca a respeito dos produtos elaborados por outras pessoas, com as quais é possível intercambiá-los. No entanto, os humanos elaboramos numerosos produtos diversos, e o que possibilita estabelecer um mercado onde trocá-los não são as características próprias de cada um, que diferem, mas sim o que todos eles possuem em comum: são produtos da força de trabalho empregada em produzi-los.
Mais exatamente, o tempo de trabalho socialmente necessário investido em confeccionar um objeto útil é o que determina seu valor e, em consequência, a possibilidade de estabelecer as quantias pelas quais uns e outros produtos podem ser trocados. Não obstante, isso que nos permite taxar o valor do produto, não nos diz qual é o valor da força de trabalho investida na sua elaboração.
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A força de trabalho, continua Marx, só se torna efetiva por meio de sua exteriorização: ela se plasma por meio do trabalho que a pessoa efetua. Esse trabalho possui além disso uma qualidade excepcional, que é seu poder de produzir valor. Por isso, no capitalismo, o burguês dono dos necessários meios de produção, paga ao operário certo tempo de trabalho, e ao concluir a jornada, o produto que o burguês obteve assim vale mais que os meios gastos e a quantia paga ao trabalhador.
Não obstante, ao cabo de várias horas essa capacidade de trabalhar se esgota, pela fadiga física e mental que esse esforço ocasiona ao trabalhador, o que exige repô-la. Só assim podem ser restauradas, a cada dia, as energias e produtividade do trabalhador.
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A existência humana é impossível sem atividades produtivas
A existência humana é impossível sem atividades produtivas e, por isso mesmo, tampouco é possível sem repor a força de trabalho necessária para exercer essas atividades. Repor essa força é um processo que tem lugar em outro âmbito, normalmente o da família, em seu bairro ou comunidade. Portanto, o valor da força de trabalho equivale ao custo da soma dos meios necessários para manter e reproduzir a vida do trabalhador e a de sua família.
Uma vida social e familiar satisfatória é funcional para restaurar diariamente a saúde física, mental e laboral. E as energias físicas, psicológicas e intelectuais que ali se repõem, igualmente são as que se requerem para renovar as aptidões indispensáveis para a sociabilidade, o desenvolvimento cultural e a criatividade, não só para trabalhar. O que implica reconhecer que a recuperação da força de trabalho não pode ser satisfatória em condições familiares, de moradia ou ambientais disfuncionais.
Agora bem, as necessidades e expectativas dos trabalhadores e de suas famílias evoluem no decurso da história. O desenvolvimento cultural da sociedade nacional e seu povo gera demandas espirituais e técnicas progressivamente mais complexas, que incrementam os custos da reposição da força de trabalho enquanto esta, por sua parte, ao adquirir maior desenvolvimento cultural pode melhorar sua produtividade.
Isso demanda precisar três elementos do processo: a natureza do descanso restaurador da força de trabalho; a natureza e o papel da família e de seu entorno; o papel do complexo trabalho das mulheres que “não trabalham”, as quais tornam possível o trabalho dos homens, além de criar as seguintes gerações de trabalhadores.
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Não cabe rebaixar no nível animal o conceito de reposição de força de trabalho: dormir, comer e folgar. Como função humana, essa reposição também abarca trocar de afazeres, atividades físicas e recreativas que contribuam a eliminar o estresse, convivências onde desfrutar de relações e ideias, e desafios cognitivos que estimulem aprendizagens e ajudem a se sentir renovado.
Seu âmbito normal é a família. Em geral, por família entendemos um grupo estável constituído por pessoas de diferentes sexos e idades, enlaçadas por relações de parentesco por consanguinidade ou afinidade, entre os quais há uma convivência habitual e certa privacidade. Aí têm lugar coisas tão importantes como a manutenção pessoal, a reposição da força de trabalho, a socialização primária das crianças e, com isso, a reprodução cultural desse setor social, além das procriação das seguintes gerações de trabalhadores.
Por outro lado, o tratamento do tema com frequência omite o papel que as mulheres desempenham em tornar possível a vida familiar, e em que esta seja âmbito idôneo para repor a força de trabalho. A mulher que “não trabalha” carrega com o grosso da limpeza e manutenção da casa e da roupa, do cuidados das crianças, de cozinhar e conseguir os insumos necessários para tudo isso, enquanto a que “sim trabalha” não por isso deixa de ser responsável por tudo isso.
Embora Marx não se estenda no tema, o trabalho doméstico também consome força de trabalho, satisfaz necessidades e tem valor. Inclusive se uma parte do salário do trabalhador parece solucionar as tarefas domésticas, isso apenas cobre os gastos que a mulher paga aos fornecedores, não o valor do trabalho que ela realiza, nem sua fadiga nem a reposição de suas energias.
Uma situação familiar satisfatória, em um entorno aceitável, são funcionais para restabelecer diariamente a saúde física, mental e a aptidão laboral. E as energias físicas, psicológicas e intelectuais que ali se recuperam são, da mesma forma, as que se requerem para renovar as aptidões humanas para a sociabilidade, para o desenvolvimento cultural, a criatividade e a capacidade de inovar. Não só as exigidas pelo trabalho corrente. Em outras palavras, isso também é parte medular do desenvolvimento social e, no tempo, condição necessária para uma existência humana que progressivamente possa se tornar mais humana.
Nils Castro, Escritor e diplomata panamenho. Colaborador de Diálogos do Sul.
Tradução de Beatriz Cannabrava.
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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