“Estudem, os que pretendem opinar. Não se opina com a fantasia, nem com o desejo, mas sim com a realidade conhecida, com a realidade fervente nas mãos enérgicas e sinceras que entram a buscá-la pelo difícil e escuro do mundo. […] E fundemos, sem a ira do sectário, nem a vaidade do ambicioso”. José Martí, 1894.
Talvez o relato mais importante ao nosso alcance sobre a crise de uma ordem mundial seja o romance O nome da Rosa, do semiólogo e medievalista italiano Umberto Eco, publicada lá por 1980. Hoje, quando vemos a Humanidade à beira da grande desordem mundial que pode anunciar (ou não) a generalização da guerra contra a OTAN livrada pela Rússia no território da Ucrânia, podemos ver também que à Rosa de Eco não falta nenhuma pétala após meio século de ter florescido. Na obra, localizada em 1327, o esgotamento da Idade Média se faz evidente no conflito e nas guerras entre o Papado e o Sacro Império Romano-Germano pela hegemonia no que hoje chamamos de Europa.
No plano da cultura, este conflito se expressava já nos primeiros sinais de ruptura entre a velha cultura medieval e a que anuncia a transição à modernidade, representados pelo monge cego Jorge de Aragón, e o sacerdote franciscano Guillermo de Baskerville, respectivamente. Faltavam ainda duzentos anos para o cisma do Ocidente, e cem mais para o nascimento do mercado mundial. Não em vão, as últimas palavras do franciscano são “Há demasiada confusão aqui, Non in conmotione, non in conmotione Dominus.”
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Ordem mundial refere-se ao equilíbrio internacional de poder, envolvendo as grandes potências, com suas áreas de influência e disputas
Dessa classe de comoção são as mudanças que nos tocou conhecer a princípios do século XXI. A esse respeito, diz o analista argentino Julio Gambina,
A globalização ou mundialização impulsada desde os 80/90 do século passado se sustentava na “cooperação” global para o “livre comércio”, afirmada na base do desenvolvimento das forças produtivas impulsadas pela inovação tecnológica, a informática, a inteligência artificial e a difusão da digitalização. Essa base material supôs um crescimento da produtividade do trabalho que intervém na disputa do ingresso a favor do lucro e contra os ingressos populares, especialmente ante os problemas econômicos de 2020/22, fechamento econômico e pandemia mediante.
A situação se expressa no aumento dos preços, que se manifesta como inflação e que preocupa o poder mundial ante a desestabilização e alento ao conflito social que isso pode gerar. Desse modo, o que aparece na conjuntura dos últimos anos do sistema mundial, é uma dinâmica de “não cooperação” que vem desde antes da pandemia. [4]
Para Gambina, tais mudanças no chamado “tabuleiro das relações internacionais” constituem sinais da “desordem” da ordem vigente desde 1991, “e indícios de buscas de novos rumos na condução do sistema mundial”. A circunstância imediata, no entanto, é de tal complexidade que muitos percebem esta mudança de épocas da perspectiva de fim dos tempos, agravada ademais pela ativa deshistorización de toda cultura levada a cabo pelo neoliberalismo de 1990 para cá.
Porque em efeito, isto é ao mesmo tempo novo e não. As mudanças de época se expressaram sempre em um incremento das tensões sociais, das contradições econômicas e dos conflitos políticos que, levado aos seus graus extremos, têm dado lugar a enfrentamentos militares. O surgimento do mercado mundial, por exemplo, foi um período de guerras de conquista e enfrentamentos que conduziram à criação de monarquias coloniais, primeiro, e de Estados republicanos depois. E que dizer da transição entre aquela primeira organização colonial do sistema mundial e sua subsequente organização internacional, intermediada pela Grande Guerra de 1914-1945?
O importante, agora, é que um tempo se esgota diante de nossa vista, enquanto outro emerge das possibilidades dessa alteração no curso do que até há pouco tendíamos a considerar “normal”. Porque em efeito, como pode ser “normal” uma circunstância na qual – diz Gambina – “a preocupação pela pandemia continua e a inflação voltou à agenda dos problemas na economia mundial, em um marco não resolvido de “mudança climática”, ao que agora se agrega o conflito bélico pela hegemonia na Eurásia?
Talvez caberia dizer que tudo isto se agrava devido a que – na mesma medida em que ainda não alcançamos a compreendê-la em toda a sua complexidade – carecemos ainda da linguagem correspondente à nova realidade que emerge. Por isso mesmo, devemos cuidar o uso da linguagem que morre, e contribuir à construção da que demanda o tempo que vem.
Em tempos assim, Guillermo de Baskerville aconselharia tomar como ponto de partida o lugar e a função de cada parte na evolução do todo, recordando-nos ademais a superioridade do real sobre o ideal, a de tempo sobre o espaço e, em particular, a da unidade sobre o conflito. Isso nos ajudará a compreender o curso do mundo que conhecemos o caminho que nos trouxe à circunstância que hoje chamamos de nossa. A isso se refere Christopher Wickham – historiador de outra grande transição, o do mundo antigo ao medieval – quando nos diz que o desenvolvimento histórico “não vai a nenhuma parte, mas sim, ao contrário, procede de algum lugar”. [5] Para Guillermo de Baskerville havia demasiada confusão na fase inicial da decomposição do mundo medieval em que Umberto Eco lhe deu vida. Hoje, provavelmente, poderia construir melhor suas perguntas a partir do reino deste mundo.
Alto Boquete, Panamá, 7 de março de 2022
NOTA:
[1] “Crece”. Patria, 5 de abril de 1894. Obras Completas. Editorial de Ciencias Sociales, La Habana, 1975. III:121.
[2] El Nombre de la Rosa y apostillas. (2016) Traducción de Ricardo Pochtar. Lumen, España.
[3] Op. Cit., p. 667.
[4] Julio C. Gambina / 27/02/2022. “El conflicto entre Rusia y Ucrania es expresión del desorden mundial. https://www.alainet.org/en/node/215009.”
[5] Europa en la Edad Media. Una nueva interpretación. Crítica, Barcelona, 2017.
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