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O flautista de Hamelin e a reinterpretação peruana do clássico conto dos irmãos Grimm

O poeta latino-americano não pode resistir ao impulso de pegar sua flauta e começar a tocá-la encantando os fascistas e cretinos
Jorge Rendón Vásquez
Diálogos do Sul Global
Lima

Tradução:

Uma lenda, vertida às letras pelos Irmãos Grimm, conta que o povo de Hamelin, cidade situada no centro da Alemanha, a uns cinquenta quilômetros de Hannover, havia chegado ao pináculo do horror e da repulsa pelos ratos que o invadiam, lá pelo ano 1284.

Os roedores estavam nas casas, nos campos e nas ruas, comendo deliberadamente todos os víveres que encontravam e regozijando-se em grande, e ninguém podia nada contra eles. 

Um desconhecido chegou, então, a essa cidade, um homem de uns 35 a 40 anos, sem mais pertences que uma bolsa às costas e se encaminhou à prefeitura.

Havia sabido da existência de uma praga de ratos e ofereceu às autoridades municipais acabar com eles em troca de uma recompensa de duas bolsas de ouro, muito pequena, na realidade, em comparação com a magnitude e a importância do serviço.

As autoridades aceitaram sem regatear, perguntando-se, no entanto, como faria esse homem, que era possivelmente um mago, para cumprir o encargo. 

No dia seguinte, muito cedo, o desconhecido apareceu na rua principal, tocando uma estranha melodia em sua flauta, e para surpresa dos viandantes os ratos começaram a sair de seus esconderijos e segui-lo.

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O homem percorreu as ruas da cidade atraindo mais ratos que se juntaram atrás dele. Depois de umas duas horas, todos os ratos formavam parte do cortejo que avançou em direção ao caudaloso rio no qual o flautista se meteu e com eles os ratos que pereceram afogados.

Só houve uma ratazana grande e gorda que embora quisesse resistir, não pode liberar-se da irrefragável melodia e, em lugar de morrer afogada preferiu suicidar-se.

Cumprido seu cometido, o flautista voltou à prefeitura e então aconteceu algo que as autoridades haviam aprendido dos ratos; se negaram a pagar-lhe. O flautista não discutiu, porque sabia que escondido atrás de uma cortina o promotor esperava um sinal para prendê-lo e, fazendo uma reverência, saiu do edifício. 

O poeta latino-americano não pode resistir ao impulso de pegar sua flauta e começar a tocá-la encantando os fascistas e cretinos

Sociedad Literaria Amantes del Pais
O poeta peruano Winston Orrillo

O retorno do flautista

Diz a lenda que o flautista retornou à cidade no domingo 23 de julho deste ano, e se dirigiu à praça principal, onde tirou sua flauta e começou a tocar. Era uma melodia acariciadora e, de repente, as crianças que brincavam na praça se aproximaram e o rodearam, e quando o flautista começou a caminhar, sem deixar de tocar a flauta, o seguiram.

Ao cabo de um momento outras crianças se agregaram e, depois, todas as crianças da cidade formavam parte dessa multidão que cantarolava as notas da melodia, enquanto se afastava da cidade.

Ninguém soube para onde foram. Perderam-se para sempre. Soube-se depois que o flautista tinha levado as crianças, porque pensava que devia libertá-los dos maus costumes que seus pais lhes inculcariam.

Em uma casa de Hamelin há agora uma placa recordatória desta lenda.

Winston Orrillo, o poeta de Rate Regierung 

Centenas de anos depois, ocorreu que em outra cidade, chamada Rate Regierung, a corrupção havia contaminado as autoridades e muitas outras pessoas que as elegiam, porque achavam que era natural saquear as arcas públicas. Aos seis dos últimos governantes os promotores e os juízes haviam tido que processá-los, mais do que pelo que haviam roubado, por haver-se deixado pegar.

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Iam celebrar-se as eleições nas quais, finalmente, competiriam um modesto professor primário e uma avezada discípula da bruxa do conto da Branca de Neve, especialista em lavagem de dinheiro.

O professor era apoiado pela gente boa que havia estado proscrita da política e acreditava que a moral devia ter sua oportunidade; e à dama, os demais para aqueles que a corrupção não devia abandonar o poder. 

O centro do jubileu era a praça principal que, ao cair da noite, enchia-se de passeantes, polemistas e fofoqueiros que falavam sem parar. Louvando as vantagens de suas preferências para convencer os indiferentes.

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Winston Orrillo, 50 anos de poesia

Uma dessas noites caiu por ali o poeta Winston Orrillo, atraído pela curiosidade e para se informar desse bulício. Era a realidade, alheia ao seu mundo habitado pelas musas e a quietude de seu apartamento de La Calera, mas o poeta a entendeu de imediato e já não pode resistir ao impulso de pegar sua flauta e começar a tocá-la.

Foi outra estranha melodia, com ares latino-americanos, interpolada de síncopes. Alguns se acomodaram em um roda na sua frente, à qual se somaram outros e, depois, todos os gentios da praça o escutavam.

Então o laureado escritor e uma política frustrada já muito andada em senectude e com mais rugas na alma que no rosto, que momentos antes havia estado gritando desaforadamente que a pupila da bruxa devia ser a eleita por direito de sucessão e que seu rival, se ganhasse, ficaria para sempre no governo e tiraria suas coisas a todos, se lançaram na roda a dançar.

Os imitaram uns locutores dos canais de TV e escrevedores dos diários e revistas pagas por aqueles que financiavam a candidata. Depois de um momento, essa parte da praça ardia de dançantes ao borde da histeria, que cantavam, gritavam e ameaçavam, enquanto saltavam sem tom nem som, tratando de seguir o ritmo da música que saia da flauta do poeta. 

Quando ele regressou ao seu apartamento, já tinha o tema de outro poema. Sentou-se tranquilamente em sua mesa e escreveu de uma só vez os versos que registraram esse momento da história do povo de Ratte Regierung. 

Transcrevo em seguida esse poema.

Toco a flauta

Por Winston Orrillo

Toco a flauta e encanto aos cretinos. 

Vou com meus instrumentos alugados.

Viajo de praça em praça como o vento.

Enfraquecido estou, embora frequentemente


brilho como uma fogueira repentina.

Oh, condição, sistema e alvedrio!

No circo podeis interrogar-me

Na minha tenda naufraga o que o queira. 


Não se cobra a entrada, melhor dizendo, 

eles cobram (sinto muito, não tenho culpa).

Meu louvor é cantar de vez em quando


Ou assobiar velhos ares corrosivos.

E me acompanho sempre com a flauta

para que bailem todos os cretinos.

(De Orden del día, Buenos Aires, 1968)

Jorge Rendón Vásquez, Colaborador de Diálogos do Sul, de Lima, Peru.

Tradução: Beatriz Cannabrava


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Jorge Rendón Vásquez Doutor em Direito pela Universidad Nacional Mayor de San Marcos e Docteur en Droit pela Université de Paris I (Sorbonne). É conhecido como autor de livros sobre Direito do Trabalho e Previdência Social. Desde 2003, retomou a antiga vocação literária, tendo publicado os livros “La calle nueva” (2004, 2007), “El cuello de la serpiente y otros relatos” (2005) e “La celebración y otros relatos” (2006).

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