Pesquisar
Pesquisar

Presidente do Peru Pedro Castillo é a expressão mais original do pensador marxista Carlos Mariátegui

Mariátegui foi o maior defensor da articulação entre o radicalismo político derivado das análises marxistas com a linguagem dos movimentos populares e indígenas da América Latina
Ruy Braga
Outras Palavras
São Paulo (SP)

Tradução:

Na eleição presidencial peruana de 2021, Pedro Castillo obteve uma estreita vantagem de 44 mil votos sobre Keiko Fujimori e foi declarado vencedor na última segunda-feira (19), após a justiça eleitoral peruana julgar os recursos impetrados pela candidata da extrema-direita. 

É impossível não ver na vitória eleitoral de Castillo, um professor e líder sindical com fortes laços indígenas à frente de um partido político que combina educação popular, ativismo sindical e auto-organização indígena, o espectro do mais original pensador marxista latino-americano: José Carlos Mariátegui.

Afinal, Mariátegui foi o maior defensor da articulação entre o radicalismo político derivado das análises marxistas com a linguagem dos movimentos populares e indígenas da América Latina. E nove décadas após sua morte, o partido-movimento Peru Libre recupera as tarefas emancipatórias legadas por Mariátegui aos trabalhadores peruanos ao derrotar o velho projeto autoritário, colonialista e extrativista sintetizado na candidatura de Keiko Fujimori

Não parece despropositado observar na atual conjuntura político-eleitoral peruana o anúncio de um novo momento para a América Latina: as forças do progresso tendem a triunfar, ainda que tenham que superar a encarniçada resistência dos acólitos reacionários representantes da política de espoliação neoliberal.

Exatamente por se tratar de uma disputa tão importante para o futuro de nosso subcontinente é que necessitamos compreender as ideias que balizam parte significativa da esquerda peruana e, ainda hoje, alimentam o imaginário de ativistas sociais, sindicalistas, trabalhadores e comunidades tradicionais em diferentes contextos nacionais: o comunalismo ayllu enraizado nas tradições de resistência e luta das comunidades indígenas andinas que, a despeito do genocídio colonial imposto pelos europeus, jamais deixaram de reinventar suas próprias tradições rebeldes, tanto no campo quanto nas cidades. Mariátegui foi quem melhor compreendeu a força dessa tradição de luta contra o Estado colonial antes e depois do ciclo de independências políticas que varreu a América Latina do século 19.

Mariátegui foi o maior defensor da articulação entre o radicalismo político derivado das análises marxistas com a linguagem dos movimentos populares e indígenas da América Latina

Bruno Portuguez Nolasco
Imagem: Retrato feito por Bruno Portuguez Nolasco

Criador do jornal socialista “Amauta” — “sábio” em quíchua, língua do império Inca —, órgão cultural que marcou toda uma geração de intelectuais e ativistas políticos nos anos 1920 e 1930, além de secretário-geral do Partido Socialista Peruano, Mariátegui morreu com apenas 35 anos, porém, ainda assim, deixou uma marca indelével no pensamento radical latino-americano. 

Atento tanto às rebeldias locais, indígenas, estudantis e trabalhistas, quanto aos levantes europeus, ele soube sintetizar as dimensões universal e particular da emancipação humana em um projeto político singular cuja força alimentava-se da combinação de movimentos populares regionais com a teoria revolucionária marxista, conhecido como “socialismo indo-americano”.

Esquematicamente, trata-se de uma síntese apoiada na aposta de que as lutas de classes modernas seriam bem recebidas por formas culturais pré-modernas, isto é, “proto-comunistas” existentes nos Andes. Nesse sentido, a comunidade ayllu que havia resistido ativamente à mercantilização capitalista impulsionada pela colonização, seria o embrião de um movimento socialista capaz de transformar sociedades de castas neocoloniais em verdadeiros Estados nacionais independentes. Isso só aconteceria quando o comunalismo ayllu e socialismo europeu se aliassem em uma atividade revolucionária de massas capaz de unificar povos indígenas e trabalhadores organizados por meio de um projeto político, capaz de articular as escalas local, nacional e internacional.

Ou seja, Mariátegui almejou “formar” uma nação recorrendo a uma espécie de desvio internacionalista por meio do qual incontáveis comunidades indígenas espalhadas por diferentes partes da América Latina superariam os limites dos atuais Estados nacionais unificando-se ao redor de um projeto voltado para o futuro do subcontinente e não mais sufocado por seu passado colonial. 

Em outras palavras, o marxismo romântico e decolonial de Mariátegui não essencializou a cultura ameríndia pré-colonial – de resto, tarefa levada a cabo pelos próprios colonizadores a fim de reproduzir as bases de sua dominação. Ao contrário, ele procurou desnaturalizar os fundamentos de nossa subordinação pós-colonial por meio de uma síntese politicamente internacionalista que, por isso mesmo, enraíza-se nas tradições locais e nacionais.

De uma certa maneira, o livro de Deni Alfaro Rubbo, “O labirinto periférico: aventuras de Mariátegui na América Latina”, moveu-se impulsionado por essa dialética entre o local, o nacional e o internacional posta pelo marxismo mariateguiano. Até onde eu sei, trata-se do primeiro estudo sistemático sobre a recepção da obra de José Carlos Mariátegui nas ciências sociais latino-americanas. Tendo por base uma refinada pesquisa teórica e documental desenhada para compreender a circulação e a apropriação das ideias do marxista peruano em nosso subcontinente, o livro de Deni amparou-se em um vasto material empírico abarcando desde entrevistas com militantes, intelectuais e editores diretamente ligados ao legado de Mariátegui, além de notável esforço de consulta de acervos públicos e arquivos particulares em diversos países. Entre esses acervos e bibliotecas vale destacar a Casa Museo José Carlos Mariátegui em Lima, a Bibliothèque Nationale de France (BNF) em Paris e a Casa de las Americas em Havana. No Brasil, Deni debruçou-se sobre o Fundo Florestan Fernandes (FFF) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), além do Memorial Darcy Ribeiro da Universidade de Brasília (UnB) e do Centro de Documentação e memória (Cedem) da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

É dispensável dizer que a investigação desse conjunto de coleções, acervos e fontes espalhados por América Latina e França, permitiu que o livro adquirisse uma riqueza ímpar em termos de precisão e profundidade, tornando seu enfoque marcadamente inovador no campo de estudos mariateguianos. Deni afirma que a combinação entre um esforço editorial hercúleo levado adiante pelos familiares de Mariátegui e determinadas circunstâncias sociopolíticas e culturais vividas no Peru e na América Latina viabilizou a construção de redes de circulação internacional espalhando as ideias do marxista peruano. Assim, aos poucos, uma imagem heterodoxa de Mariátegui como um dos principais referenciais de reconstrução do marxismo latino-americano emergiu em flagrante contraste tanto em relação às teses dualistas e desenvolvimentistas que marcaram historicamente a esquerda em nosso subcontinente, quanto em relação às teorias culturalistas que essencializam os povos tradicionais atualizando o mito do “bom selvagem”.

Explorando a dialética entre o local, o nacional e o internacional, um dos pontos fortes desse livro é, sem dúvidas, a minuciosa análise do processo de difusão, em especial a partir dos anos 1960, da obra de Mariátegui por diferentes conjunturas políticas e realidades nacionais, as tais “aventuras latino-americanas” referidas no subtítulo. Além das apropriações ideológicas realizadas por órgãos estatais e organizações políticas peruanas, Deni estuda a apropriação de Mariátegui por duas figuras-chave do marxismo latino-americano: o peruano Aníbal Quijano e o argentino José Aricó.

Ademais, Deni demonstra como o campo de estudos “decoloniais” na América Latina, em especial o Grupo Modernidade/Colonialidade, apropriou-se de Mariátegui por meio da “crítica ao eurocentrismo”. Finalmente, o livro examina a recepção de Mariátegui no Brasil com base em um mapeamento de seus leitores: intelectuais, exilados e militantes de organizações partidárias. Trata-se de uma espécie de arqueologia das ciências sociais no país, com especial destaque para Florestan Fernandes e Michael Löwy. Assim, percebemos como o autor dos “Sete ensaios de interpretação da realidade peruana”, a despeito de raramente se referir ao Brasil, influenciou intérpretes decisivos de nossa sociedade. Por tudo isso, tenho certeza que o livro de Deni Alfaro Rubbo irá satisfazer a todos aqueles que buscam compreender e transformar a atual encruzilhada latino-americano. Afinal, o labirinto periférico continua tão desafiador nos dias correntes quanto nos tempos de Mariátegui.

O labirinto periférico: aventuras de Mariategui na América Latina, de Deni Alfaro Rubbo, publicado pela Autonomia Literária, parceira de Outras Palavras. Você pode comprá-lo aqui. 

Ruy Braga é professor; atualmente é chefe do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, onde coordena o Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic).


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

Assista na Tv Diálogos do Sul

   

Se você chegou até aqui é porque valoriza o conteúdo jornalístico e de qualidade.

A Diálogos do Sul é herdeira virtual da Revista Cadernos do Terceiro Mundo. Como defensores deste legado, todos os nossos conteúdos se pautam pela mesma ética e qualidade de produção jornalística.

Você pode apoiar a revista Diálogos do Sul de diversas formas. Veja como:


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Ruy Braga

LEIA tAMBÉM

50 anos da Cadernos do Terceiro Mundo uma nova ordem informativa em prol do Sul Global
50 anos da Cadernos do Terceiro Mundo: uma nova ordem informativa em prol do Sul Global
album-referente-aos-festejos-nacionais-do-5o-aniversario-da-proclamacao-da-d4c858
Golpe e proclamação da República: a consolidação do liberalismo econômico no Brasil
A miséria humana diante da barbárie em Os últimos dias da humanidade, de Karl Kraus
A miséria humana diante da barbárie em "Os últimos dias da humanidade", de Karl Kraus
O perigo do nazismo e dos neopentecostais
O perigo do nazismo e dos neopentecostais