Historicamente para a sociedade classista e racista, na periferia se conjugam todos os males do mundo e, por isso, quem é de periferia automaticamente tem que ser ladrão, abusador, velhaco, violador, assassino e tudo quanto a mente humana possa conceber.
Tirar essa marca é um trabalho titânico porque o estigma é uma espécie de DNA. Porque ser da periferia se converte em impedimento para conseguir trabalho, para estudar, para estabelecer relações sociais fora dela. As pessoas veem o povo da periferia como delinquentes com os quais é preciso tomar cuidado. É excluída de entrada.
Por isso, ser da periferia é lutar contra a corrente permanentemente, contra o sistema que violentou as periferias, que as empobreceram e que as excluíram de qualquer direito e benefício como parte da sociedade. Acusou-as de ser o máximo perigo do país.
As famosas zonas vermelhas abundam na América Latina. Essa América Latina socavada, despojada, humilhada e manchada pelas grandes máfias oligárquicas que são o perigo real para a população. Literariamente, as célebres favelas dão um romantismo aos sonhos.
Porém, como é viver sem água potável, sem energia elétrica, sem ruas pavimentadas e sem esgoto, sem condução, sem trabalho, sem moradia.
Milena Sobrinho
Ativistas fantasiados de “La Casa de Papel” durante protesto realizado em 2020 no centro de São Paulo por mais verbas para as periferias
Como é viver isolado e sem os alimentos básicos, sem remédios e sem atenção à saúde. Como pretende a sociedade que um ser humano sobrevivendo nessas condições possa terminar seus estudos básicos e ir para a universidade?
Como se supõe que os pais de família possam alimentar seus filhos, se lhes são negadas as oportunidades de desenvolvimento? Como se pretende que tenham uma vida integral se são violentados diariamente pelas forças de segurança?
Se vivem as limpezas sociais que buscam eliminá-los? Se encerram os jovens em prisões que são centros de tortura, por sua origem e aparência? Se a violência institucionalizada os obriga a delinquir.
Porque foram violentados em toda a sua vida, os que chegam à adolescência, sem amor-próprio, sem sonhos, em um estado de depressão profunda, brigados com a vida, sentindo-se lixo, são utilizados pelas máfias oligárquicas para que repartam a droga que eles produzem, para que entreguem os pacotes, para que cobrem as dívidas dos filhinhos de papai e mamãe que, por seus privilégios de classe, são os intocáveis. E passam a vida nisso. Quanto vale uma adolescente de periferia?
Desaparecem e não acontece nada. Negar-se a delinquir ou fazer o trabalho sujo das máfias oligárquicas significa morrer.
Quanto valem as meninas da periferia? São as que formam parte das estatísticas de desaparecidos; suas vidas terminam em bares do país ou do estrangeiro porque são o melhor negócio, o mais rentável: seus corpos para o tráfico sexual. O que esperar de uma criança quando ela crescer, se a bombardeiam com a televisão com telenovelas e séries de narcotraficantes?
Se no rádio o aniquilam com canções de drogas e cartéis o dia inteiro? Se a mensagem do governo é: quanto mais trapaça, mais triunfo. Se além disso lhe negam qualquer recurso e oportunidade. E que esperam que façam os pais e mães se têm que trabalhar 16, 18 horas por dia para que comam pelo menos uma vez por dia?
Ser de periferia é ter tudo contra, por isso, nadar contra a corrente é a resistência. Só a periferia mesmo pode se dignificar. De fora só chegará a exclusão, a calúnia, o rechaço, o abuso, o menosprezo, a injustiça.
Por isso, quem é da periferia tem a missão titânica de ser rosto e voz de sua comunidade, tem que representar a periferia em qualquer lugar onde estiver. Por essa razão tem que cuidar de suas palavras e seus atos.
Tem que ser um ente de mudança, entre a infância e a adolescência, tem que influir para que essas meninas, meninos e adolescentes em lugar de se verem como lixo, se vejam como seres humanos que podem derrubar a barreira do ódio e da injustiça e alcançar seus sonhos. Porque para isso cultivaram em toda a sua vida a habilidade da resistência e de nadar contra a corrente.
Quem é da periferia tem que cuidar da forma como caminha, como fica em pé, como fala, seus gestos, porque há gente observando, gente que o verá para baixo sempre e gente que o verá como exemplo a seguir.
Ser da periferia é esforçar-se três, dez vezes mais que qualquer outra pessoa. É dar 110% em tudo o que faz. É madrugar e se deitar tarde, estudando, repassando e exercitando sua mente e seu espírito. Ser parte ativa da comunidade.
Ser uma pessoa funcional dentro e fora de casa, com isso rompendo a estrutura patriarcal dos papéis de gênero. Um menino de periferia pode lavar roupa da mesma forma que uma menina e fazer limpeza e arrumar as camas e lavar o banheiro. Lavar a louça.
É utilizar a tecnologia ao seu favor, ver documentários sobre cultura, arte, esportes, lugares inóspitos; tudo o que não lhe permitem as circunstâncias econômicas podem encontrar na tecnologia.
Se juntam em grupo e vão à casa de alguém que tenha internet e algum aparelho onde possam visitar as plataformas digitais. É claro que se pode fazer isso, porque é uma das responsabilidades da resistência. O recurso que não se tem, se busca até encontrar.
É a própria periferia que tem que lutar contra o bombardeio televisivo que só busca menosprezá-la. Como? Realizando programas culturais, ambientais, políticos e esportivos dentro da comunidade. E para isso é necessária a ajuda de todos, dos docentes, dos vendedores do mercado, dos motoristas de ônibus, das famílias, dos adultos. Só a periferia pode dignificar a si mesma.
É um trabalho lento, não se verá a mudança a curto prazo; será geracional, mas deve ser feito. Também plantar árvores nos barrancos para impedir que desmoronem. Pode-se fazer e para isso só temos que nos informar das façanhas realizadas por outros, em outros tempos, em piores circunstâncias. O ser humano tem capacidade de realizar o impensável.
A periferia tem a obrigação de ser sementeira de mentes analíticas que questionem o sistema e que tenham força para mudá-lo; para isso deve nutrir-se diariamente da memória histórica e ter força de vontade.
Ilka Oliva Corado, Colaboradora de Diálogos do Sul de território estadunidense
Tradução: Beatriz Cannabrava
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