Dois escritores, que se apresentam explicitamente como destacados militantes da ‘Comunidade’ pró-Israel em Washington, Tony Badran e Michael Doran, em coluna para The Tablet, condenam a tentativa, pela Equipe Biden, de conseguir um retorno ao ‘acordo nuclear iraniano’ (JCPOA), como um cavalo de Troia político, falcatrua concebida para minar a ‘guerra entre guerras’ de Israel e Irã.
Alertam que “Há um consenso na administração, não só sobre o ‘acordo nuclear iraniano’, mas sobre todas as principais questões da estratégia para o Oriente Médio: Todos, do presidente para baixo, concordam quanto à necessidade de ‘completar o que Obama começou’ — o que significa que o pior ainda está por vir.” É sinal de que (para a ‘Comunidade’), o objetivo final efetivamente significa arrancar os dentes de Israel, objetivo a ser alcançado graças a uma cortina de fumaça de ‘amor’ por Israel, destruído com mais do mais moderno armamento norte-americano.
“Se o controle que o projeto de Obama exerce sobre todas as mentes no governo Biden ainda não é óbvio para todos – é porque ainda reina confusão em torno de qual seria a real natureza do projeto [de Obama].” (…) A natureza dele, e seu “objetivo final”, escreveu Malley, foi “ajudar o [Oriente Médio] a encontrar equilíbrio mais estável de poder, que tornaria a região menos dependente da interferência direta, ou da proteção, dos norte-americanos”. (Grifos meus.)
Badran e Doran argumentam que a fala de Malley é apenas outro modo de dizer que “Obama sonhou com uma nova ordem para o Oriente Médio – que dependa mais da parceria com o Irã”. De fato, Jake Sullivan, há um ano, pareceu confirmar essa análise, quando escreveu: “O objetivo [no Oriente Médio] é ser “menos ambicioso” militarmente, “mas mais ambicioso em [pressionar]… para uma desescalada nas tensões e, eventualmente, a favor de um novo modus vivendi entre os atores regionais chaves (…) e que altere o papel dos EUA numa ordem regional – que os EUA tenham ajudado a criar”.
A ambição de Obama, afirmam os dois colunistas, era trabalhar em parceria com a Rússia e o Irã para estabilizar não só a Síria, mas também outros pontos regionais difíceis. Afinal, um acordo tácito dos EUA com o Irã já existiu no Iraque, baseado na hostilidade desses dois países contra o jihadismo sunita. Não seria possível expandir aquele modelo? Uma parceria com a Rússia e o Irã estabilizaria essa região agitada?
A alegação de fraude/farsa – o ódio evidente – levantada na ‘Comunidade’ pró-Israel e na Fundação para Defesa das Democracias (ing. Foundation for Defense of Democracies, FDD) estava no corolário implícito da necessidade de Obama de relativizar a “correlação de forças” – principalmente no que tivesse a ver com Israel e Arábia Saudita. Obama acreditava que esses países estivessem em luta contra ele, tentando impedi-lo de “rebocar o programa nuclear do Irã para longe das principais vias das relações EUA-Irã, e de ‘estacioná-lo’ à margem” –, dado que essa seria condição necessária e suficiente para construir equilíbrio mais estável de poder, que tornaria a região menos dependente dos EUA.
OK, a ‘Comunidade’ viu tudo isso como movimento sinistro; mas igualmente, poder-se-ia argumentar, Obama também tentava corrigir esse desencontro entre os recursos dos EUA e a promoção dos compromissos globais dos EUA. Contudo, o que mais irrita os autores é a convicção que têm de que a política de Obama seria hoje, integralmente, a atual política de Biden. E que seu objetivo final seria cravar uma cunha na política de contenção do Irã que Trump e Netanyahu perseguiram (com considerável sucesso, de acordo com os autores).
Aqui está o ponto: os autores quase com certeza acertam quando argumentam que as políticas domésticas dos EUA explicam “o controle que essa teoria oca exerce sobre mentes que, não fosse isso, seriam brilhantes”. O realinhamento no Oriente Médio foi a principal iniciativa de Barack Obama, que se mantém ou como o homem mais poderoso na política Democrata, ou num segundo lugar muito próximo, e que “Malley, como guardião da bandeira do Irã, de Obama, reporta-se a Blinken, sim, contato intermediado por Obama”.
Ainda mais pertinente, “o peso político do Realinhamento deriva não só do apoio pessoal de Obama; mas também do apoio de progressistas cuja cosmologia ele afirma. Esse apoio torna equivalentes uma política de contenção do Irã e uma via para ‘guerra sem fim’ – e converte uma política de atender ao Irã, em via para a paz”.
“[Esse apoio] reduz as complexidades do Oriente Médio a uma narrativa de moralidade maniqueísta que joga progressistas contra seus inimigos mitológicos – Cristãos Evangélicos, “neoconservadores” e sionistas. O Realinhamento mostra esses inimigos como co-conspiradores, com Mohammed bin Salman e Benjamin Netanyahu, para manter os EUA presos no pântano do Oriente Médio”.
Qual o ponto aqui? A coluna de The Tablet é importante, pois explica muito resumidamente um quebra-cabeças intrigante: Por que o Departamento de Estado na [estrada] Beltway, DC, tem-se mostrado tão convencido de que um acordo obtido no Vietnã levaria inevitavelmente à volta do Irã ao ‘acordo nuclear’ (JCPOA)? Trump foi derrotado, e com forte suspiro de alívio, o mundo é capaz de reverter ao pé em que as coisas estavam há quatro anos. Assim sendo, como o Irã poderia recusar a proposta de Biden, de desfazer, a favor do Irã, as amarras da contenção? Não seria racional.
Provavelmente, a equipe Biden nem tentou analisar a nova iniciativa JCPOA, do ponto de vista atual do Irã. Mas talvez o Irã veja-se pelo prisma da própria iniciativa, agora que já quebrou aqueles entraves – graças aos contatos que fez com China e Rússia; com recurso a um enxame efetivo de mísseis inteligentes bem ali, em toda a região; e mediante o recurso fortuito à nova economia digital e material da China, em torno e através da geografia do Irã.
Mas a equipe Biden, por mais que já tivesse muito prevaricado, ainda insistia na discussão de como garantir máxima ‘alavancagem’ in situ, sobre o Irã (para sua Parte 2 antecipada, do ‘acordo nuclear iraniano’). Deixaram que se perdesse qualquer impacto psicológico que seu projeto tivesse. E ficou claro que um grupo em Washington DC estava fortemente decidido a ser mesquinho nas concessões que fizesse. Daí surgiu o ceticismo iraniano, por boas razões.
A importância do artigo de The Tablet está no argumento muito convincente de que a política dos EUA para o Irã estava inteiramente focada numa disputa doméstica nos EUA (entendendo-se que Israel é parte da política doméstica nos EUA). Tudo, sempre, um exercício de contemplação do próprio umbigo: a ‘pressão máxima’ de Trump fracassou – e seria descartada sem cerimônia. A visão de Obama ‘voltou’, permitindo assim que os EUA fizessem seu movimento de pivô para longe da ásia ocidental e na direção de sua mais alta prioridade: conter a ascensão da China. Como o Irã poderia recusar a renovação do ‘projeto Obama’? Seriam os iranianos cegos para a profunda mudança que se dava na política de Washington, como resultado da eleição de 3 de novembro?!
Não. O Irã viu, mas o movimento não parou depois da saída de Obama. Os iranianos tinham muitas dúvidas. Por que se poriam de volta sob um regime de vigilância e intrusão, quando a experiência que tiveram já era tão ruim, mesmo antes de maio de 2018?
Ponto-chave aqui – com a abordagem ‘Biden’ do Acordo Nuclear iraniano (ing. JCPOA), e de modo mais geral, com toda sua política exterior – é pressupor o ‘congelamento do tempo’. A equipe Biden parecia pressupor que as políticas de Obama continuariam válidas, virtualmente sem alterações.
A premissa correspondia ao mundo de quatro anos atrás, não ao mundo como o temos hoje. Esse é o bem visível subtexto do artigo de The Tablet: que os dois polos da visão interna dos EUA sobre o Irã dia 6 de janeiro inverteram-se; e que agora a visão Obama será plenamente desfraldada. É possível que Netanyahu – tão profundamente imerso na bolha-EUA – tenha visto as coisas também desse modo.
Flickr / Joe Biden
A ambição de Obama era trabalhar em parceria com Rússia e Irã para estabilizar não só a Síria, mas também outros pontos regionais difíceis.
Os Democratas estavam de tal modo aplicados em sua ‘guerra’ para tirar Trump a qualquer custo que, parece, desviaram os olhos e não viram as mudanças radicais em curso em todo o planeta. Não anteviram a possibilidade de o Irã meter uma cunha nos planos deles. Hoje, a janela para algum acordo já é considerada muito estreita – se é que há ou haverá alguma janela.
Essa lacuna norte-americana contudo não está confinada só ao Irã. O mundo mudou – talvez de modo decisivo –, mas os EUA insistem em suas políticas do ano passado.
Em toda Beltway, a China é vista unanimemente como a principal ameaça à segurança nacional dos EUA. Mas a política parece continuar enraizada na profunda convicção ocidental de que sistema de partido único seria insustentável por ser incapaz para qualquer inovação; assim, portanto, poderia ser facilmente derrotada por os EUA ‘que fazem’.
Essa visão repousa contudo sobre a falsa premissa de que o Partido Comunista da China seria idêntico ao Partido Comunista Soviético – instituição que ruiu sob a tática norte-americana de forçar a superextensão financeira – na narrativa dos EUA. Mas, por que esse entendimento não foi atualizado? Por que continua a ser moeda de troca entre todos os norte-americanos que ainda creem que os EUA conseguirão ‘derrubar’ a China?
“Mas os dois lados têm pouco em comum. E por que seria diferente? Dificilmente a Rússia poderia ser mais diferente da China. O Partido Comunista da União Soviética foi um fracasso histórico: em contraste, o Partido Comunista da China, ao longo do século passado foi, pode-se dizer, o mais bem-sucedido partido político do mundo” – escreve Martin Jacques.
“É impossível compreender o Partido Comunista da China em termos do marxismo tradicional: desde bem antes de 1949, o marxismo do Partido Comunista da China foi bastante adaptado às condições locais. O PCC, além do mais, tem raízes no Confucionismo, do qual sofre profunda influência. Pode ser descrito como um híbrido de marxismo chinês e confucionismo. O PCC é modelado pela civilização chinesa e é tão complexo quanto ela – da qual, claro, o partido é produto”.
Mas o pensamento dos EUA sobre a Rússia mostra também nenhuma ou apenas alguma mínima inovação: parece andar a passos largos para repetir a velha arapuca criada no Afeganistão, desde a era Brzezinski – de empurrar a Rússia para uma nova arapuca, agora ucraniana, para assim comprometer o foco e a energia política dos russos, mantendo-os distantes da aliança com a China – e, outra vez, derrubar o preço do petróleo com a ‘revolução verde’ de Biden, e o re-set mundial para o modo ‘energia limpa’, distante para sempre dos combustíveis fósseis.
Os chineses contam uma fábula antiga, que parece resumir perfeitamente a política exterior dos EUA em tempos de hoje. Chama-se “Vigiar árvore, para pegar lebre”. Era uma vez um menino que recebeu do patrão a tarefa de pegar uma lebre por dia, para o almoço. O menino foi para o bosque e olhou e volta. Até que, de repente, viu uma lebre correndo em disparada. Para surpresa do menino, a lebre bateu de frente numa árvore e caiu desmaiada. O menino levou a lebre ao patrão e almoçaram juntos. A partir daquele dia, todos os dias, até morrer, o menino voltou à mesma árvore, à espera de mais lebres que desmaiassem a seus pés.
Esse menino é como a política exterior dos EUA: sempre esperando que as sempre mesmas condições lá estarão, à espera de cada nova equipe que assuma em Washington: ‘vigiando árvore, para apanhar lebre’, de tal modo que os EUA só precisem recolher a carcaça e almoçá-la.*
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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