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Carta a Lewis Hamilton: meu amigo, vou tentar te explicar o que está por trás do recente conflito entre Israel e Palestina

"Estive na Palestina ano passado, às vésperas da pandemia se espalhar e garanto que a realidade é muito pior do que as pessoas bem informadas possam imaginar"
Caio Teixeira
Diálogos do Sul Global
Santa Catarina

Tradução:

O atual heptacamperão de Fórmula 1 é o primeiro piloto negro na história da competição milionária, sujeito engajado que no ano passado aderiu ao movimento Black Lives Matter e levou vários pilotos e equipes a denunciar e pedir o fim do racismo. 

Ele sempre defende causas corretas e, no último final de semana, tuitou que ainda não ia se posicionar em relação ao que está acontecendo na Palestina, porque não conhecia os fatos e pretendia se informar primeiro. 

Antes que alguns afoitos comecem a construir uma cruz, quero lembrar que a maioria das pessoas, assim como o jovem e bem-intencionado inglês Lewis Hamilton, não conhece a realidade daquele lugar situado entre o Mediterrâneo e o Egito de um lado e de outro a Jordânia e os bíblicos Rio Jordão e Mar Morto. Para tentar ajudar Hamilton e todos os demais, de quem se tenta esconder a barbárie que acontece por lá, escrevo esta carta, trazendo alguns fatos. Teve início nesta sexta-feira (21) um cessar-fogo entre Israel e Palestina, acordado pelo Egito. Apesar disso, os fatos seguem candentes e faz-se necessário compreendê-los.

Estive na Palestina ano passado, às vésperas da pandemia se espalhar, e garanto que a realidade é muito pior do que as pessoas bem informadas possam imaginar. O que vou narrar a seguir é o que vi e senti naquela visita:

Carta a Lewis Hamilton:

As informações que chegam pelas agências internacionais de notícias passam a ideia de que toda violência no Oriente Médio entre judeus e árabes se dá por conta de uma birra religiosa, cujo começo é explicado por um caso de adultério consentido relatado nas páginas do velho testamento. Esse discurso simples e nem por isso impensado nos leva à conclusão de que “todos têm culpa”, afinal Israel se defende porque é atacado pelos foguetes palestinos da Faixa de Gaza, último reduto de resistência armada contra a ocupação israelense. 

O número de vítimas, no entanto, é sempre revelador. Última conta do número de mortos deste conflito dava conta de que morreram 212 palestinos contra 10 de Israel. É sempre assim. A proporção é sempre assim. Israel se gaba, há anos, de ser o segundo país em poderio bélico convencional de ponta, perdendo apenas para os EUA de quem é o maior beneficiário de recursos para fins militares a fundo perdido. Só para constar, o segundo maior é a Colômbia. 

Sim, o poderio de Israel é sustentado pelos EUA em troca de ser uma espécie de feitor da geopolítica estadunidense na região onde tem como vizinhos Líbia, Síria, Irã, Iraque, Arábia Saudita e Afeganistão. Tá bom ou quer mais?

Esse pequeno espaço de maioria desértica e cheio de petróleo é o palco dos maiores conflitos bélicos da humanidade desde a Segunda Guerra Mundial, todos eles com a mão bem visível dos EUA sempre apostando em criar o caos local para ocupar em seguida diretamente ou instalar governos fantoches de seus interesses econômicos, ou patrimoniais, já que, como piratas contemporâneos, têm o saque como objetivo final.

Antecedentes

Na dúvida vamos conferir se tudo isso é verdade.

A Segunda Guerra Mundial acabou em 1945. Logo depois, em 1948, a ONU cria o Estado de Israel, dentro do território até então conhecido por Palestina onde conviviam com todo o respeito entre si, árabes muçulmanos, árabes judeus e há apenas dois mil anos, cristãos. A decisão da ONU não foi precedida de uma negociação com os Palestinos que, no caso, eram os árabes muçulmanos e demarcou fronteiras dentro da Palestina que não existiam antes. 

Ao fazê-lo, a organização seguiu a tradição dos países imperialistas europeus que há muito tempo controlavam a região em regime colonial. A ilustração abaixo mostra a evolução do mapa desde 1946, quando tudo ainda era Palestina:

Quando virou resolução, em 1948, a maior parte dos países colonialistas recém-saídos de uma guerra nem questionou se a ONU tinha autoridade ou competência para decidir sobre o assunto. Além disso, o mundo se comovia com os horrores do holocausto e todos se sentiam mais ou menos em dívida com os judeus.

Os palestinos gritaram, os países árabes da região incluindo os do nordeste da África como o Egito que fica ao lado se negaram a reconhecer o Estado de Israel e veio a primeira guerra do pós-guerra-mundial. 

Todas as outras vieram a seguir e, para resumir, muitos ainda se lembram da guerra Irã-Iraque, entre países irmãos de sangue árabe, fomentada pelos EUA. Depois duas guerras dos próprios EUA contra o Iraque, guerra dos EUA no Afeganistão, Guerra dos EUA na Líbia e, por último Guerra dos EUA na Síria através do financiamento de movimentos insurgentes. Mas que coincidência! 

Os EUA estão em todas! Citei os maiores ou mais famosos conflitos bélicos ocorridos no mundo, coincidentemente de novo, situados no Oriente Médio. Deixei de fora aqueles ocorridos na Palestina fruto da investida de Israel para ampliar as fronteiras definidas na resolução da ONU e encurralar os palestinos em verdadeiros guetos geográficos, cada vez menores. Mais uma vez, dê uma olhada no mapa.

"Estive na Palestina ano passado, às vésperas da pandemia se espalhar e garanto que a realidade é muito pior do que as pessoas bem informadas possam imaginar"

Reprodução: Facebook
Lewis Hamilton faz constantes movimentos politicos a favor de movimentos como Black Lives Matter

Tão logo a criação do Estado de Israel foi aprovada pela ONU, em 1948, os judeus residentes trataram de instalá-lo e de tomar posse dos territórios estabelecidos por ela. Já existia um embrião de estado que era a estrutura institucional deixada pelos ingleses que dominavam o território palestino em regime colonial, desde que tomaram o poder dos turcos otomanos, no início do século 20. 

Essa estrutura incluía todo o armamento deixado pelo exército britânico, o que garantiu ao novo Estado um poderio de fogo capaz de enfrentar os países árabes em sua volta. 

Os palestinos são confinados atrás de muros em sua própria terra

De lá prá cá, como se vê no mapa, os Palestinos foram sendo confinados em pedaços cada vez menores de território. As pequenas ilhas de terra que aparecem na última imagem, onde reside o povo palestino, datada de 2010, hoje diminuiu mais ainda e o atual conflito é resultante de mais um avanço de Israel ocorrido há dias, quando 500 famílias foram expulsas das casas em que viviam há gerações pelo Exército israelense (entenda bem este fato assistindo ao vídeo abaixo: 

Invasões como essa são comuns e cotidianas e vão encurralando os palestinos em territórios cada vez menores. Pareço chato, mas olhe de novo para o mapa e tenha uma ideia do avanço de Israel na usurpação pela força de terras que não são suas. 

A primeira pedra atirada nessa luta foi jogada por Israel ao iniciar e perpetrar a expulsão dos palestinos de seus lares e terras ancestrais desde a polêmica criação do seu Estado, com apoio incondicional dos EUA que fazendo uso do seu poder de veto no Conselho de Segurança da ONU, impede qualquer ação militar com objetivo de estabelecer uma paz justa. 

Por outro lado, a Assembleia Geral da ONU, que, na prática só serve para aprovar declarações, mas não ações, já aprovou por esmagadora maioria dezenas de resoluções condenando Israel pelas violações de Direitos Humanos e por sua ocupação militar de territórios que não são seus e que tem donos. Israel, que se apoia da resolução da ONU de 1948, ignora e descumpre solenemente as demais. 

Apartheid em Israel

Ao longo dos anos, os palestinos vêm sendo confinados em uma espécie de prisão a céu aberto, pois são cercados por muros altíssimos, não possuem acesso a nenhuma fronteira a não ser através dos postos ou aeroportos controlados, por Israel, não possuem passaportes como palestinos (alguns poucos têm passaportes israelenses fruto ainda da resolução da ONU de 1948) e têm que recorrer a favores de países vizinhos, como a Jordânia, para conseguir um.  

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Não conseguem circular sequer entre pontos da mesma cidade sem passar por check-points, como o da foto abaixo, como uma guarda de fronteiras, que estão em todos os lugares, onde o normal é a humilhação de cidadãos desarmados por soldados fortemente armados de Israel. Eles são obrigados a passar por isso todos os dias para ir e casa ao trabalho e do trabalho para casa. 

Os serviços de água e energia elétrica são controlados por Israel, assim como toda a atividade bancária. Nos avanços que o mapa ilustra, Israel se apropriou das margens do Rio Jordão, principal fonte de água da região desértica, deixando os palestinos sem acesso a ela a menos que passe pela estrutura israelense.

Israel promove ainda uma política de terror físico e psicológico contra o povo palestino como forma de expulsá-los definitivamente de seus lares alegando direito bíblico sobre eles. 

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Essa política começa pelo controle das vidas, do direito à propriedade (violentado diariamente), do direito de ir e vir e até mesmo do direito de procriar. De fato, colocar uma criança no mundo por ali, é submetê-la a riscos inconcebíveis a qualquer pessoa civilizada. 

O exército israelense prende crianças com qualquer idade (10, 12 anos) sob acusação de terrorismo, palavra mágica para eliminação sumária de qualquer direito inclusive de defesa. Elas são levadas e interrogadas sem a presença dos pais tampouco de advogados. Sob essa intensa pressão psicológica são obrigadas a assinar confissões fictícias em hebraico, língua oficial em Israel, que não entendem pois falam árabe, e em seguida são jogadas em prisões comuns com bandidos comuns para cumprir penas de 1 a 3 anos.

Pode-se imaginar facilmente o tipo de violência a que ficam sujeitas. Como foram encarceradas por terrorismo não têm direito a visitas nem dos pais que permanecem sem qualquer informação sobre seus filhos. O ato de terrorismo mais comum que leva essas crianças ao cárcere é jogar alguma pedra num soldado israelense. Tudo isso é baseado na lei militar e não na lei aplicada aos cidadãos israelenses. 

Existem em Israel muitas organizações, formadas por voluntários de várias partes do mundo e mesmo por israelenses, ocupadas na defesa dos palestinos presos arbitrariamente que sequer vão a julgamento, pois são “réus confessos” após assinarem sob coação a confissão em hebraico.

Quando se anda por cidades israelenses como Tel Aviv, a capital, tem-se a impressão de que a cada 10 pessoas na rua duas são soldados armados de fuzis automáticos modernos e sempre carregados, prontos para atirar. Talvez não seja exatamente essa a proporção, mas é a impressão que se tem. 

Eles se misturam à população caminhando pelas ruas e passeios, dentro do transporte público, nos bares e cafés. São na ampla maioria jovens judeus de 18 anos que cumprem serviço militar obrigatório de dois anos para homens e um ano para mulheres. Carregam os fuzis com a naturalidade de quem carrega uma bolsa ou um casaco. Já andei por muitos países, mas nunca vi coisa igual.

A mídia internacional esconde tudo isso. 

Então, quando o Hammas lança foguetes contra Israel, ele não está “começando” um conflito. Ainda que possamos discordar dos métodos, ele está apenas respondendo, na medida de suas forças, a uma agressão cotidiana que começou em 1948. 

Recorrer a canais legais, processos judiciais, ministério público não leva a absolutamente nada, pois essas instituições são feitas para atender à população judaica, titular de cidadania e não aos palestinos de quem a terra foi usurpada e a quem é negado qualquer tipo de cidadania. 

Tribunais internacionais? Não funcionam contra Israel. O que fazer numa situação dessas? O que você faria? Uma das formas importantes de resistência é a divulgação internacional o mais ampla possível para furar o bloqueio da mídia, mas isso não basta e, na prática, não resolve o problema imediato. 

Os muros continuam, as humilhações, as expulsões de seus lares, a negação do direito de defesa e a prisão de suas crianças e adultos, homens e mulheres, evidentemente. 

Israel aposta em tornar a vida ali insuportável e impossível para os palestinos, de modo que eles se retirem. Mas esse povo está lá há séculos e está disposto a resistir simplesmente porque não tem opção. Resistir para existir, está escrito nos muros. Cabe a nós denunciarmos esse regime de apartheid tão ou mais violento que aquele da África do Sul que, aliás, tem no gene a mesma matriz do imperialismo inglês. 

Lewis Hamilton com certeza vai se informar e se posicionar corretamente, como sempre tem feito. Certamente vai ouvir o conterrâneo Roger Waters e cada um de nós tem obrigação humanitária de fazer o mesmo. Por tudo o que vi, concluí que o Estado de Israel é uma organização terrorista, genocida e funciona como uma base estadunidense no Oriente Médio em razão do que, a autoproclamada maior democracia do mundo merece a mesma qualificação. O que está em curso na Palestina é uma verdadeira limpeza étnica promovida por Israel, curiosamente semelhante à que Hitler tentou fazer com os judeus. 


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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