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Um ano após OMS decretar pandemia, Brasil se torna ameaça global com Bolsonaro no poder

Desde o início de 2021, de maneira geral o mundo passou a reduzir o número diário de casos e mortes, com exceção do caso brasileiro
Gabriel Valery
Rede Brasil Atual
São Paulo (SP)

Tradução:

A pandemia de covid-19 completa um ano. Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou o descontrole global da doença provocada por um novo coronavírus, o Sars-Cov-2. Deste então, a infecção já soma – em números oficiais – 48,5 milhões de casos confirmados e mais de 2,6 milhões de mortos em todo o mundo. É a mais grave crise sanitária da humanidade em mais de 100 anos, depois da chamada gripe espanhola, de 1918. Entre os mais afetados está o Brasil, que coleciona uma ampla sequência de erros na condução do surto pelo governo de Jair Bolsonaro.

Na definição da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), pandemia se caracteriza pela “disseminação mundial de uma nova doença e o termo passa a ser usado quando uma epidemia, surto que afeta uma região, se espalha por diferentes continentes, com transmissão sustentada de pessoa para pessoa”. Trata-se de um surto global que revelou intensas desigualdades, especialmente em relação ao tratamento da doença no âmbito da saúde pública.

Desde o início de 2021, de maneira geral o mundo passou a reduzir o número diário de casos e mortes. A expertise acumulada neste um ano na contenção do vírus passa pela melhora nos protocolos de saúde.

Eles envolvem tanto tratamentos mais eficientes como os comprovadamente eficazes isolamento social, uso de máscaras e higiene das mãos. Outro fator decisivo que aponta para o controle da pandemia foi a elaboração em tempo recorde de um grande número de vacina eficazes. Imunizantes, inclusive, que utilizam tecnologias inovadoras – como as vacinas de RNA mensageiro – e revelam um horizonte de esperança para a cura de outras doenças virais.

Desde o início de 2021, de maneira geral o mundo passou a reduzir o número diário de casos e mortes, com exceção do caso brasileiro

Palácio do Planalto
Hoje, o Brasil enfrenta seu pior momento em relação à covid-19.

Pior dos mundos

Hoje, o Brasil enfrenta seu pior momento em relação à covid-19. De acordo com o balanço de ontem (10) do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass), morreram 2.286 brasileiros no período equivalente a um único dia. Até agora, foram 270.656 mortes e mais de 11 milhões de infectados, sem contar a ampla e admitida subnotificação.

É o segundo país em número absoluto de mortes, atrás apenas dos Estados Unidos. Entretanto, o Brasil, nas últimas seis semanas, ostenta a posição de epicentro global da covid-19. É a nação onde mais pessoas se infectam por dia e também onde mais a infecção mata (a estimativa é que de 12% a 17% dos casos diários do mundo ocorrem em solo brasileiro). Mais eficiente do que os números absolutos para entender a gravidade da pandemia, são as taxas de transmissão e curvas epidemiológicas médias, como explica o epidemiologista e professor emérito da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) Cesar Victora. “Sabemos que o número de casos notificados subestima a magnitude da doença. As taxas de transmissão refletem uma realidade mais precisa da epidemia. Vemos um movimento de duas ondas, embora nunca tenhamos baixado próximo de zero. O restante do mundo agora vê um franco declínio de mortes enquanto o Brasil está em franca ascensão”, disse. 

Tragédia naturalizada

Victora participou de debate virtual ontem promovido pelo Núcleo de Estudos Avançados (NEA) da Fiocruz. Em pauta, os avanços, dificuldades e, especialmente, os problemas do Brasil. “Atualmente, somos o número um do mundo em taxa de mortalidade e número dois do mundo em números absolutos, atrás dos EUA que estão em declínio. Aqui no Brasil, por agosto ou setembro a população decretou o fim da pandemia. Com ajuda de dirigentes mal informados ou mal intencionados. Estamos apenas 5% mais em casa do que antes da pandemia”, disse, sobre os baixos índices de isolamento no país e o descaso com a pandemia.

Com boa parte dos estados brasileiros à beira do colapso no sistema hospitalar pela falta de leitos, ou já colapsados, estados e municípios passam a adotar, tardiamente, medidas de isolamento. Entretanto, elas seguem sem efetividade e amplamente ignoradas pela população. “Quando me falam que lockdown não adianta, eu pergunto: o que é lockdown? Por que no Brasil não existe isso”, afirma Victora. O sucesso do lockdown é unanimidade entre a comunidade científica e de sucesso verificável com facilidade em países da Ásia, Oceania e Europa. 

Óbitos semanais por milhão: Brasil no topo da crise. Forte redução da curva em outros países é resultado de lockdown. Fonte: NEA Fiocruz 

Pária internacional

Um dos resultados do descaso do Brasil com medidas de distanciamento foi revelado ao mundo com o surgimento de uma mutação da covid-19 em Manaus. A variedade, batizada de P1, é mais contagiosa e vem mostrando potencial de maior letalidade. Além do Brasil se tornar um risco ao mundo, assim como decretou na última semana a OMS, a variedade P1 sequer foi detectada no Brasil. Foram cientistas japoneses que identificaram a nova cepa em um brasileiro. 

Isso revela também a falta de recursos para decodificação genética do vírus, essencial para controle eficaz de uma epidemia. Hoje, o Brasil é um dos países mais fechados do mundo, que mais sofre com bloqueios para turistas.

“E temos problemas básicos: quanto mais o vírus circula e se reproduz, mais mutações ocorrem. A maioria das mutações são irrelevantes, mas elas podem se tornar dominantes quando se disseminam de forma eficaz. E todas as variantes possuem em comum que máscaras, distanciamento e higiene das mãos funcionam”, explica Victora.

Breve histórico

A pneumologista e pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp/Fiocruz) Margareth Dalcomo ajuda a fazer um breve histórico da covid-19 neste um ano. “Temos uma história de grande intensidade e um olhar prospectivo não muito otimista. O Sars-Cov-2, o que recebemos em março, chegou a nós da China como uma pneumonia atípica. Hoje temos mais de 105 mil publicações relacionadas à covid-19. Então tivemos dois tsunamis, o da pandemia e o da produção científica”, afirma.

Ela explica que o entendimento do vírus evoluiu com velocidade, mas que o negacionismo e o obscurantismo impediram maiores avanços. ” Em um mês, nós pneumologistas, percebemos que não estávamos diante de uma pneumonia, mas sim de uma doença sistêmica capaz de comprometer todos os órgãos do corpo (…) Tivemos então com cinco meses uma publicação inglesa sobre a dexametasona, o primeiro medicamento que efetivamente poderia reduzir mortalidade pela covid-19 (…) Fizemos estudos seguidos com diferentes medicamentos e eles foram como um jogo de dominó, caindo por terra e revelando: o que reduz mortalidade são boas práticas de terapia intensiva em quadros graves.”

Onda de absurdos

Já nos cinco primeiros meses de pandemia, Margareth lembra que estudos internacionais apontavam para a ineficácia de uma série de medicamentos, anunciados como “salvação”. Entre eles, a cloroquina e seu composto, a hidroxicloroquina. Mesmo assim Bolsonaro passou a defender o remédio como “milagroso”. Munido dessa convicção sem base científica, o presidente passou a estimular aglomerações, atacar o isolamento social e até mesmo o uso de máscaras, que chegou a afirmar “ser coisa de maricas”. Enquanto isso, adotou um profundo desprezo com a vida dos brasileiros, perdida aos milhares diariamente. “Quer que eu faça o que? Não sou coveiro. É só uma gripezinha”, entre outras frases de conteúdo similar.

“Desde os primeiros estudos, cloroquina e hidroxicloroquina foram paradigmáticos. Desde o início se mostraram incapazes não apenas de impedir mortalidade, como também de impedir agravamento de caso (…)  Então, no Brasil começamos a lutar pela informação científica de boa qualidade (…) Lutamos contra o obscurantismo. Não conheço nenhum outro país onde tenha vingado de maneira ostensiva e pouco ética para não usar outros adjetivos a questão do tratamento precoce”, disse.

Politização e risco

Margareth também lembra de outro medicamento “receitado” em grande escala por Bolsonaro, a ivermectina. Além de ineficaz, apresenta um grande risco por efeitos colaterais que podem levar uma pessoa saudável à falência hepática. “Veja a ivermectina, medicamento usado para tratamento de sarna, piolho (…)  Existem farmácias com carrinhos de supermercado lotados de ivermectina, com pessoas tomando e na fila do transplante de fígado de tanto tomar ivermectina. Há pessoas que tomam meses esse remédio. Vimos saquinhos da ilusão, distribuídos politicamente, onde são colocados dentro ivermectina, cloroquina, corticoide, vitamina D, vitamina C, enfim, uma coisa inteiramente sem sentido.”

Vacinas contra a covid

Outro conjunto de ações que prejudicou a situação da covid-19 no Brasil foi a postura contrária a vacinas por Bolsonaro. Ele foi o único presidente do mundo a atacar vacinas. Disse abertamente que não tomaria, que a busca por elas era exagerada, enquanto seus apoiadores passaram a adotar como lema: “Não queremos vacinas, temos cloroquina”. 

Grupo de bolsonaristas em manifestação contra a vacina em Curitiba. Foto: Eduardo Matysiak 

Hoje, a realidade começa a se impor. Após decisão que possibilitou o ex-presidente Luiz Inácio da Silva a concorrer às eleições em 2022, o petista concedeu entrevista coletiva, ontem, de grande repercussão. Ao contrário de Bolsonaro, se solidarizou com as vítimas e defendeu veemente a vacinação, o isolamento social e o uso de máscaras. Apresentou-se como líder responsável e conectado com as melhores práticas e políticas públicas mundiais. 

Ao perceber a ameaça aos seus planos de permanência no poder, Bolsonaro imediatamente mudou o tom com que se expressou por todo esse período de um ano. Usando máscaras, defendeu a vacinação contra a covid, enquanto seu filho, senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), publicou uma defesa da vacinação em suas redes sociais. Entretanto, no mesmo dia, outro filho, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), mandou a imprensa “enfiar a máscara no rabo”. 

Logística

Para a epidemiologista e ex-coordenadora do Programa Nacional de Imunizações (PNI), Carla Domingues, que já atuou em grandes programas de vacinação no passado, e ajudou a transformar o Brasil em uma referência no assunto, o cenário é de se lamentar. “A politização da vacina só fez com que houvesse confusão no país. Justamente em um momento em que precisamos. A melhor vacina é a que chega mais rápido. Precisamos esclarecer a população que o objetivo da vacinação não é evitar a infecção e sim evitar casos graves e óbitos. Precisamos de adesão da população. Se tivermos pessoas vacinadas e contaminadas, vão questionar as vacinas. E não é isso. O que queremos, neste momento, é evitar o caos e as mortes a partir da vacinação”, diz.

“Existe uma portaria de consolidação que deixa claro que é de responsabilidade do governo federal a aquisição de imunizantes, seringas e agulhas. Em momentos de vacinação por fora do calendário, precisamos de articulação do governo federal. No negacionismo do governo, chegamos até mesmo a não comprarmos e em um pregão de emergência, conseguimos apenas um percentual delas (…) No atual estado em que a situação chegou, com completa desorganização, não é possível mais pensar em outra lógica logística mais eficiente”, completou.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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