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Sem cordialidade no país do genocídio ou por que nosso povo se acostumou com a barbárie

O Brasil tem a violência em sua gênese. São cinco séculos de subjugação, espoliação e assédio. Por que 260 mil mortos deveriam nos chocar?
Vanessa Martina-Silva
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

O assunto é pandemia. Seria estranho se não fosse. O Brasil bate recorde atrás de recorde. São mortes aos montes. Nesta quarta-feira (3), 1.840 pessoas perderam a vida no Brasil. No dia anterior, foram mais de 1.700 mortos.

Você já se acostumou com isso? Já naturalizamos a barbárie? Por mais que você seja levado, levada a dizer que não, a resposta é sim!

Superamos os Estados Unidos em número diário de mortes. Eu poderia fazer piada com isso, mas não consigo. Não há espaço para graça, seria como rir por qualquer motivo que fosse, do holocausto.

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Seguramente, você que me lê estará se questionando: “o que falta para o povo acordar”?

Esta é a pergunta que nos fazemos diariamente ao sair nas ruas e nos depararmos com pessoas sem máscaras. Ao ver pessoas nos bares, restaurantes, praças, como se já estivéssemos no “novo normal”.  

O Brasil tem a violência em sua gênese. São cinco séculos de subjugação, espoliação e assédio. Por que 260 mil mortos deveriam nos chocar?

Prefeitura de Manaus
São 260 mil mortos. Com famílias, com histórias. Com CPFs, sonhos, dívidas e memórias.

Genocídio é a regra 

Eu compreendo sua indignação, compartilho dela, mas vamos pactuar uma coisa: nós, como brasileiros, estamos acostumados com o genocídio. O nosso povo nasceu de um e ele não parou até hoje.

Pareceu demasiado?

Quando os portugueses chegaram aqui na “América”, que, na verdade, era Pindorama, processo que eu chamo de invasão, o que aconteceu foi um genocídio. O maior da história. Segundo Marcelo Grondin e Moema Viezzer, mais de 70 milhões de indígenas morreram

Após a carnificina — quero recordar que os europeus consideravam os indígenas “canibais” bárbaros —, para dar conta de acumular riquezas bizarramente, sequestraram negros africanos e trouxeram para serem escravizados neste continente, transformaram pessoas em mercadoria. Genocídio continuado.

Da junção de brancos, negros e índios é formado o Brasil. A bonita história contada por Darcy Ribeiro até pode soar como inocente. Eu já caí neste conto, mas só até entender que o que aconteceu aqui foram atos contínuos de estupro.

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Como se ainda não fosse o suficiente, tudo isso é banalizado a ponto de as estradas de São Paulo que ligam a capital ao interior terem o nome de reconhecidos genocidas: Anhanguera, Bandeirantes, Castelo Branco, Raposo Tavares, para citar alguns. Ou seja: os matadores de índios, dizimadores de cultura, estupradores de mulheres são enaltecidos e têm estátuas erguidas para nos lembrar do que nossa “elite” é capaz de fazer.  

O sangue negro e indígena que “às vezes” os fenotipicamente brancos (lumenei rs) se orgulham de dizer que corre em suas veias, na verdade, é fruto de estupros dos senhores sobre seus subordinados. É pesado e traumático mesmo!

E mesmo com todo o avanço rumo a uma nação “desenvolvida”, não estancamos a sangria: a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no país, segundo dados de 2018. Não suficiente, as pessoas que mais morrem vítimas da Covid-19 no país também são negras!

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Se nosso histórico é esse, por que devemos nos surpreender com a presença de ilustre genocida na cadeira da presidência da República? Jair Bolsonaro tem em seu colo 260 mil mortos. Já superou em muito sua meta inicial que era “fazer o trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil!”.

A gente vai levando

São vários os exercícios para tentar entender esse momento, mas vejo entre as pessoas próximas a mim uma certa estagnação, uma dor e tristeza profundas de ser brasileira neste momento.

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Nos venderam a ideia romântica de que éramos o povo cordial (alô Sérgio Buarque), mas tudo o que vemos é brutalidade, violência, desrespeito, usurpação. Não tem como levar a vida levemente enquanto Ágathas seguem sendo assassinadas, quando 80 balas “perdidas” encontram um corpo negro e em um país onde é normal um homem ser espancado até a morte em um supermercado.

Mas não acontece nada.

Nada acontece.

Nada.

Isso é genocídio.

Isso é violência.

Isso é barbárie, é massacre, é genocídio. 

Mas está tudo bem.

Está tudo bem?

São 260 mil mortos. Com famílias, com histórias. Com CPFs, sonhos, dívidas e memórias.

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O líder do povo Juma, Aruká, morreu. Ele lutou contra os massacres de seu povo e perdeu para o vírus.

Mas a gente segue lidando com tudo isso e a cada momento estamos nos barbarizando mais.

São 260 mil mortos. Com famílias, com histórias. Com CPFs, sonhos, dívidas e memórias.

Estamos nos tornando mais e mais brutos. A gente já nem se importa muito mais com tudo o que está acontecendo. Preferimos desligar a TV na hora do jornal para não termos que lidar com isso. E estamos errados?

É tanta dor, tanto sofrimento que cada um olha para si mesmo e fala: “beleza. Está tudo mal, mas tenho que seguir a vida”. E segue adiante.

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Se a vida não é nosso bem mais precioso, o que seria? A família Bolsonaro responde essa pergunta retórica jogando na cara dos brasileiros a mansão luxuosa que Flávio comprou (será que pagou à vista com dinheiro vivo)?

E assim a gente vai levando, como cantou Chico Buarque.

Vanessa Martina Silva, jornalista e editora da Diálogos do Sul

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Vanessa Martina-Silva Trabalha há mais de dez anos com produção diária de conteúdo, sendo sete para portais na internet e um em comunicação corporativa, além de frilas para revistas. Vem construindo carreira em veículos independentes, por acreditar na função social do jornalismo e no seu papel transformador, em contraposição à notícia-mercadoria. Fez coberturas internacionais, incluindo: Primárias na Argentina (2011), pós-golpe no Paraguai (2012), Eleições na Venezuela (com Hugo Chávez (2012) e Nicolás Maduro (2013)); implementação da Lei de Meios na Argentina (2012); eleições argentinas no primeiro e segundo turnos (2015).

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