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ToggleO gado vai às urnas. Nas eleições de 15 de novembro, 1014 candidatos a prefeito declararam nada menos que 308.364 cabeças de gado, conforme pesquisa feita pelo De Olho nos Ruralistas na base de dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). São 304 cabeças de gado para cada candidato pecuarista. Tomando-se os cerca de 20 mil prefeituráveis em 5.570 municípios, a média é de 16,2 animais por político — bem mais que a média brasileira, de pouco mais de um boi por habitante.
A pecuária foi o tema escolhido pelo observatório para estrear a série O Voto que Devasta. Ao longo das próximas semanas serão esmiuçadas as conexões entre os políticos que querem ser prefeitos e histórias pouco republicanas, relacionadas à destruição de biomas — em especial a Amazônia — e a outros conflitos socioambientais em todo o território brasileiro.
Não foi um tema escolhido à toa. Os estudos que mostram o papel da pecuária na destruição da Amazônia se refletem nos dados sobre políticos. Das 308 mil cabeças de gado declaradas por aqueles 1.014 candidatos a prefeito, 144.096 (47%) ficam nos estados da Amazônia Legal. E nada menos que 33.259 (23% desse subtotal) pertencem a vinte políticos multados nos últimos anos, pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama), por desmatamento na Amazônia.
Confira, entre os que declararam possuir gado, a lista dos candidatos pecuaristas a prefeito multados pelo Ibama nos últimos anos:
Somente um desses políticos, o candidato em Iporá (GO), mora em município que não faz parte de um dos nove estados que compõem a Amazônia Legal.
Outros cinco desses políticos foram multados em um desses estados e informaram ser pecuaristas, mas não declararam nenhuma cabeça de gado. Outros cinco autuados pelo Ibama declararam ser produtores agropecuários — igualmente sem informar ao TSE uma única cabeça. Ou seja, a lista de candidatos punidos por desmatamento, quase todos eles na Amazônia, conflui com a lista de candidatos pecuaristas. A refletir, portanto, não somente uma concentração de poder econômico.
Sob a Pata do Boi | Divulgação
Sob a Pata do Boi: documentário mostrou o papel da pecuária na devastação da Amazônia
Pecuária é responsável direta pelo desmatamento
Há uma relação direta entre pecuária e devastação ambiental. Segundo o pesquisador Paulo Barreto, do Instituto do Homem e do Meio Ambiente na Amazônia (Imazon), um dos maiores especialistas mundiais no tema, dois terços da área desmatada na região amazônica são destinados ao pasto, que vem ocupando espaço num longo processo histórico. De acordo com dados do Mapbiomas, a área para pecuária na região amazônica aumentou 74% em trinta anos.
A dinâmica envolvendo a criação de gado no Brasil passa por uma série de etapas que vão desde a grilagem de terra, seguindo pelo corte de árvores de valor comercial até a queima da mata para plantio do pasto. E muitos entre os candidatos pecuaristas assinam essa devastação — para além das multas registradas pelo Ibama.
Candidato em São Félix do Xingu (PA), João Cleber de Souza Torres (MDB) é um exemplo eloquente desse processo. Ele está à frente de duas listas entre os postulantes às 5.570 prefeituras de todo o país: primeiro colocado na lista de maior rebanho, 11.855 cabeças de gado, segundo o TSE, e segundo maior multado pelo Ibama por desmatamento ilegal, pelo critério do valor das autuações.
Ele já foi acusado de grilagem e de ser responsável pela morte de trabalhadores rurais no município. De quebra, em 2014, andou pela lista suja do trabalho escravo.
E ainda sobra espaço para um suposto envolvimento em esquema de lavagem de dinheiro com compra de fazendas e gado, recheado por ameaças aos denunciantes. As acusações vieram a público com a Operação Reis do Gado, da Polícia Federal. O candidato de São Félix do Xingu, município que disputa com Corumbá (MS) a liderança em rebanho do país, foi preso durante a operação, que indiciou vários integrantes da família do ex-governador Marcelo Miranda, do Tocantins.
O observatório falará mais sobre João Cleber e sobre São Félix do Xingu — misto de capital da pecuária e da ilegalidade fundiária — em uma das próximas reportagens da série, nesta quinta-feira (29).
Confira a lista dos candidatos com mais bois
O prefeito de São Félix do Xingu não está sozinho nas acusações de corrupção. O segundo lugar entre os maiores rebanhos (10.576 cabeças de gado) e o primeiro lugar em valores (R$ 29.612.800) ficam com Juracy Freire, ex-prefeito de Porteirinha (MG), que administrou o município em duas ocasiões e tenta voltar ao cargo.
Confira a lista dos candidatos a prefeito que, conforme a base disponível no TSE, informaram possuir mais bois:
O Ministério Público de Minas Gerais (MP-MG) acusou Juracy Freire de improbidade administrativa durante seu primeiro mandato (2001 a 2004) por comprar equipamentos, combustíveis e merenda escolar de suas empresas e de seus familiares, em processos licitatórios fraudulentos — com a utilização de funcionários de suas fazendas como laranjas.
Em 2013, ele foi condenado por superfaturamento na construção de moradias com recursos da Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Os dados da Justiça Eleitoral mostram que a fortuna de Juracy mais que quadruplicou nos últimos doze anos. De R$ 10,9 milhões, em 2008, para R$ 43 milhões, em 2020.
Em terceiro lugar no tamanho do rebanho, com 9.770 cabeças de gado, e quinto entre os valores declarados (R$ 14.124,8395), o candidato Odilon Ferraz Alves Ribeiro (PSDB), de Aquidauana (MS), foi um dos alvos da Operação Vostok, da Polícia Federal, ao lado do principal líder do PSDB estadual, o governador do Mato Grosso do Sul, Reinaldo Azambuja.
O grupo de 22 denunciados é acusado de participar de um esquema de redução ilegal de impostos, com a emissão de notas frias, que garantia o pagamento de propina a políticos. As denúncias surgiram nas delações feitas por diretores da J&F — a holding da JBS. Apenas Zelito teria emitido notas fiscais frias no total de R$ 1.758.701,00. A defesa do irmão de Odilon fala em vendas regulares.
Ao site Midiamax, Odilon rechaça a ligação com o grupo, apesar das doações, e defende o irmão: “Tenho certeza que meu irmão vai provar sua inocência. Não sou investigado e espero que esse processo se encerre logo e a verdade prevaleça”.
Um trabalho desenvolvido por pesquisadores das universidades alemãs de Bonn e Freiburg e do Instituto de Pesquisa Aplicada (Ipea), de 2013, apontava que o aumento de denúncias por auditores fiscais de casos de corrupção como fraudes em licitações não garantiu a inibição de uma prática correlata: o desmatamento ilegal.
Os pesquisadores identificaram um aumento de 11% no desmatamento nos municípios com administradores afastados ou denunciados por fraudes. A conclusão foi a de que “há mudança de atividades ilícitas e corruptas para esferas menos fáceis de serem observadas pelos auditores federais”. Os pesquisadores disseram que é preciso adotar “outras abordagens multidimensionais” para o efetivo e amplo sucesso dessas ações de combate.
Quantidade de gado é ainda maior que a informada
A fortuna em gado declarada pelos candidatos à Justiça Eleitoral soma R$ 618.276.300,19, valor 3,6 vezes maior que o corte de R$ 184 milhões do orçamento do Ministério do Meio Ambiente anunciado para 2021. Somente o que eles declararam possuir em gado nos estados da Amazônia Legal (46% do total informado pelos pecuaristas) já ultrapassa esse valor: R$ 283.261.024,65.
Só que 135 candidatos a prefeito declararam R$ 56.974.496,06 em gado, mas não apontaram a quantidade de animais. Ou seja, aquelas 308 mil cabeças de gado são apenas uma amostra. Se tomarmos o preço de R$ 2 mil por boi, o mais incidente entre os próprios candidatos, podemos inferir que eles possuem outras 28.500 reses. Ou seja, apenas os prefeituráveis de todo o país (sem contar os candidatos a vice e a vereador) devem possuir um rebanho que se aproxima de 350 mil cabeças.
Para se ter uma ideia dessa dimensão, Portugal — todo o país — possui 1,68 milhão de cabeças de gado. O Brasil tem um dos maiores rebanhos bovinos do mundo: segundo os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2019, são 215 milhões de reses. Quase uma por habitante — tivesse cada brasileiro uma cabeça de gado para chamar de sua.
E a quantidade de bois nas mãos de candidatos a prefeitos certamente é maior: alguns deles se declararam pecuaristas, mas omitiram seus rebanhos nas suas declarações à Justiça Eleitoral. Não informaram nem quantos bois têm, nem o valor. Sem falar em outros candidatos conhecidos pela criação de gado, mas que não estão incluídos em nenhuma dessas condições anteriores — a não ser pelo fato de que também não informaram ao eleitor brasileiro quantas reses possuem.
Central no avanço da pecuária (e do desmatamento ilegal no Brasil), o Pará lidera o ranking dos candidatos que declararam os maiores valores em gado, com sete representantes. Em seguida vêm Goiás, com cinco, Minas Gerais, com quatro, Mato Grosso (outra fronteira decisiva na Amazônia), Mato Grosso do Sul e Tocantins com dois cada um.
Confira a lista:
Estudo mostra relação da reeleição e o desmatamento
Outro estudo feito em relação ao poder local e o desmatamento aponta que os municípios em que prefeitos da Amazônia tentam a reeleição há um crescimento nos níveis de desmatamento durante o ano de campanha. Segundo a pesquisadora Sharon Pailler, da Clark University (EUA), entre 2002 e 2012, nos municípios onde um prefeito concorria à reeleição, havia um aumento da taxa de desmatamento entre 8 e 10%.
Nas eleições desse ano, essa proporção pode ser ainda mais acentuada, acredita Paulo Barreto, do Imazon: “O discurso atual do governo federal criou um senso de impunidade que vem se refletindo nas atitudes contra a floresta dos governos locais”. A criação pelo governo Bolsonaro dos “núcleos de conciliação” para avaliar as multas ambientais dos órgãos federais ampliou a impunidade: nenhuma multa foi aplicada desde a entrada em vigor do decreto, em agosto de 2019.
Um estudo de 2019 do Imazon aponta que a maioria dos prefeitos evita entrar em confronto com os proprietários de terra, ignorando a possibilidade ampliar a arrecadação e a fiscalização a partir da atualização de dados para a cobrança do Imposto Territorial Rural (ITR), que, desde 2003, tem seu valor revertido para os cofres municipais. A principal omissão é não atualizar os valores das terras o que deixa a arrecadação muito aquém do possível com valores até seis vezes menores.
É nessa toada que o prefeito de Novo Progresso (PA), Ubiraci Soares Silva (PL), o Macarrão, procura a reeleição e vai disputar com o seu ex-aliado, o vice-prefeito Gelson Luiz Dill (MDB), o 20º candidato com maior rebanho no Brasil. Ambos são fazendeiros e têm um histórico de multas ambientais que inclui a invasão da Floresta Nacional do Jamanxim. Novo Progresso foi um dos palcos do dramático “Dia do Fogo”, quando, em agosto de 2019, autoridades e fazendeiros orquestraram uma queimada coletiva para atrapalhar a fiscalização dos órgãos ambientais.
Com reportagem de Leonardo Fuhrmann
Luís Indriunas é jornalista
Alceu Luís Castilho é diretor de redação do De Olho nos Ruralistas