Foi claro o objetivo de Washington desde antes da eleição de Salvador Allende. Henry Kissinger, o arquiteto da intervenção política e econômica dos Estados Unidos e então assessor de Segurança Nacional da Casa Branca, articulou o plano em uma das frases mais sintéticas na história das relações entre Estados Unidos e a América Latina: “não vejo porque temos que nos manter quietos enquanto um país se torna comunista pela irresponsabilidade de seu povo”.
Alguns meses antes da eleição de Allende, em 1970, sublinhou ainda que: “os assuntos são demasiado importantes para que só os eleitores chilenos decidam por si mesmos”.
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Pouco depois de fracassar o esforço estadunidense de evitar a eleição de Allende, Kissinger advertiu que a preocupação não se limitava ao Chile, mas sim ao exemplo e efeito da eleição de Allende para outros países latino-americanos, incluindo a Argentina e a Bolívia: “não só teríamos um governo [comunista] em uma ilha… mas sim em um país maior da América Latina”. Enfatizou que “não deveríamos nos enganar que uma tomada de poder de Allende não apresentaria problemas massivos para nós e para forças democráticas e forças pró estadunidenses na América Latina, e de fato em todo o hemisfério ocidental”.
Sob esse prisma, os Estados Unidos justificaram sua destruição da democracia no Chile e os magnos abusos de direitos humanos que isso incluiu. Mas o assalto contra a democracia chilena há 50 anos não só contava com a cumplicidade aberta e encoberta da cúpula política dos Estados Unidos, mas sim de grandes empresas estadunidenses, como havia sido o caso em tantas outras aventuras intervencionistas de Washington no hemisfério ocidental ao longo de mais de um século.
“As relações entre Estados Unidos e Chile se deterioraram nos anos 1960 por preocupações estadunidenses em relação à esquerda chilena e o surgimento da nacionalização chilena de certas empresas, especialmente as de cobre… A possibilidade da nacionalização de duas das principais empresas chilenas de cobre, Anaconda e Kennicott – ambas propriedades de empresas com sede nos Estados Unidos – junto com o crescimento do sentimento socialista através do hemisfério levou os Estados Unidos a aberta e encobertamente enviar assistência ao governo chileno, como também a partidos políticos como o Partido Democrata Cristão (PDC)”, resume agilmente um informe do Oficina do Historiador do Senado dos Estados Unidos.
Foto: Richard Nixon Foundation
Donald M. Kendall, presidente da PepsiCo, e Richard M. Nixon, presidente dos EUA, na Casa Branca em 1969
Setor estratégico
Cobre era o setor estratégico para o Chile como também para as empresas transnacionais. Antes da eleição de Allende, as empresas estadunidenses controlavam 80% da produção desse mineral e o cobre representava 4/5 dos ingressos de divisas para o país.
Quando o governo recém eleito de Salvador Allende promulgou uma lei de nacionalização em 1971, estas empresas mineiras, junto com a empresa estadunidense de comunicações International Telephone & Telegraph (ITT) – afetada pela iniciativa do governo de recuperar o controle da empresa de telefones – se tornaram promotoras de esforços estadunidenses para o que agora se chama “troca de regime”.
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Ainda antes de sua eleição, estas empresas já haviam deixado claro, junto com o governo estadunidense, que fariam tudo para evitar um governo encabeçado por Allende. Depois de fracassar, foram cúmplices da Casa Branca em promover o golpe.
Outra empresa, PepsiCo (dona da Pepsi e outras marcas) também participou ativamente em promover a troca de regime. O presidente do PepsiCo, Donald Kendall, havia instado a Richard Nixon em setembro de 1970 a fazer o possível para evitar que o então presidente eleito Allende tomasse posse, e logrou que o dono da engarrafadora dessa marca no Chile, o empresário multimilionário chileno Agustín Edwards Eastman, também dono do maior periódico do Chile, El Mercúrio, se reunisse com Nixon na Casa Branca em 15 de setembro de 1970.
Neste mesmo dia Kendall e Edwards tomaram café da manhã com Kissinger para conversar sobre como lograr esse objetivo, confirmam documentos desclassificados pelo National Security Archives revelados neste ano no livro “Pinochet Desclassificado” de Peter Kornbluh.
“Além de prover informação e frentes para a CIA, as empresas multinacionais também participaram em intentos encobertos para influir na política no Chile”, estabelece o informe extraordinário do famoso comitê especial do Senado encabeçado pelo senador democrata Frank Church, “Ação Encoberta no Chile 1963-1973”, publicado em 1975. Destaca que mais que qualquer outro, a relação do ITT com a CIA foi a mais proeminente no Chile durante essa década.
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“Em 1970, o governo estadunidense e várias empresas multinacionais estavam vinculadas em oposição à candidatura e depois à presidência de Salvador Allende”, agrega o informe do Senado, assinalando que houve duas fases, a primeiro foi um esforço da CIA e das empresas multinacionais para buscar prevenir a eleição de Allende, e a segunda fase com o governo estadunidense e as empresas apoiando e fomentando a oposição a Allende. O informe detalha múltiplas reuniões entre a CIA e multinacionais estadunidenses tanto em Washington como no Chile, e a relação mais extensa com a ITT.
A participação de empresas transnacionais estadunidenses foi acompanhada com uma política de desestabilização econômica, resumida nas instruções explícitas do então presidente Richard Nixon de “fazer a economia gritar”.
Desde a eleição de Allende, em 1970, até o golpe, se implementou sob a guia de Washington a suspensão de toda assistência econômica estadunidense, um freio ao crédito internacional. Buscou-se obstaculizar negociações sobre o dívida externa herdada de governos prévios (a segunda mais alta, per capita, do mundo) como também as exportações de cobre, e igualmente se freou a importação de produtos essenciais para o funcionamento de alguns setores industriais chilenos, algo em que ativamente participaram as empresas transnacionais, tudo o que foi denunciado por Allende como um bloqueio econômico não declarado para criar condições adversas para desestabilizar o país.
Por outro lado, as operações clandestinas de Washington no Chile também se realizavam através dos meios durante décadas: “Desde 1953 a 1970 no Chile, a Estação [escritório da CIA no país] subsidiou agências de telegramas, revistas escritas para círculos intelectuais e um seminário direitista… Por muito tempo – e provavelmente a mais significativa – a instância de apoio de um meio foi o dinheiro outorgado ao El Mercurio, o maior diário de Santiago” durante a presidência de Allende, resume o informe do Senado sobre a ação encoberta dos Estados Unidos no Chile.
O informe destacou que em 1971 e 1972, Washington outorgou quase 2 milhões de dólares ao El Mercúrio, justificando que esse e outros meios “apoiados pela CIA haviam desempenhado um papel importante na preparação dos cenários para o golpe militar de 11 de setembro que derrocou Allende”.
David Brooks e Jim Cason | La Jornada, especial para Diálogos do Sul – Direitos reservados.
Tradução: Beatriz Cannabrava
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