Não há outra forma de dizer: a exigência de uma nova constituição para substituir a do Pinochet e terminar com o neoliberalismo no Chile “arrasou” com cerca de 80% de apoio diante do “rechaço”, em um plebiscito que supõe o fim da marca do neoliberalismo que regeu os destinos do país nos últimos 40 anos.
No fechamento desta edição e com 93% das mesas apuradas, o “aprovo” somava 78% de apoio; enquanto a disjuntiva quanto ao órgão que redigirá a nova carta magna era resolvido esmagadoramente por 97% a favor de uma “convenção constitucional” cujos integrantes sejam 100% eleitos pela cidadania.
Votaram a metade dos quase 15 milhões de eleitores habilitados, um pouco mais de sete milhões.
Exatamente um ano depois que milhões de chilenos marcharam pelas ruas do Chile expressando sua indignação diante da situação – leia-se paupérrimas aposentadorias, baixíssimos salários, altos custos de transporte, abuso de preço nos bens essenciais, ausência de direitos sindicais, privatização dos direitos sociais e muito mais -. Essa multidão esmagadora transformou sua indicação acorrendo às urnas de maneira avassaladora.
Uma mulher do modesto e rebelde povoado de Lo Hermida, na comuna de Peñalolén de Santiago, sistematicamente reprimida pelo governo de Sebastián Piñera nos doze meses de rebeldia social, resumiu os sentimentos que foram expressos pela esmagadora votação.
“O que eu espero? Espero um país melhor – diz enquanto se emociona e chora – ; espero um país melhor para ti Rayén (se dirige à filha que a escuta) e para minha futura neta que vem e netos e para meus vizinhos pequenininhos. Espero o melhor, por isso estou votando, talvez eu não veja nenhuma mudança, mas estou feliz de ter vindo votar e oxalá muita gente mais como eu possa exercer seu voto e gritar “até aqui chegamos”, que basta de abusos, abusos de poder em todas as coisas. Espero um país para os mapuches como eu, quero que sejamos respeitados e quero que nós também respeitemos, quero para minha futura geração isso, o melhor, mesmo que que não veja nada disso, mas eu o quero para Rayén e se tenho que sair para lutar aí estarei”.
Suas palavras, pronunciadas entre lágrimas, são um desafio para a política, absolutamente fracassada em resolver as urgências sociais.
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"Estamos diante de uma substituição de gerações e o plebiscito fez com que os jovens saíssem de casa"
Conforme se difundiam os resultados e caia a noite, milhares se reuniram na Praça Dignidade de Santiago e em centenas de outras cidades do Chile para celebrar, expressando uma alegria coletiva que apenas se remonta a 1988, quando em outro plebiscito a sociedade chilena disse “não” à continuidade da ditadura de Pinochet.
“Em torno de 77% dos chilenos disseram sim a uma nova Constituição e que esta seja redigida por uma convenção integralmente eleita, paritária entre homens e mulheres e com cadeiras para povos indígenas. Abre-se assim um inédito cenário constitucional. Será no caso chileno e segundo sua história constitucional a primeira constituição redigida em democracia”, comentou o cientista político Ernesto Águila, acadêmico da Universidade do Chile.
Agregou que “a constituição que foi derrotada foi escrita sob a ditadura e tinha como característica fazer impermeável o modelo neoliberal”, mas agora a que aconteceu “conduz a revisar o modelo econômico e social chileno”.
“O resultado deixa o governo de Piñera em uma situação delicada. Embora alguns de seus ministros tenham manifestado sua adesão ao “aprovo” prevendo uma derrota, o grosso da direita se jogou pelo “rechaço”. O protesto social tampouco parece que vá diminuir com o resultado e mesmo antes deles serem conhecidos, milhares de pessoas se reuniam na mística praça Dignidade.
O plebiscito foi realizado em meio à pandemia da Covid-19 e apesar das medidas sanitárias, isso pareceu influir em uma menor participação dos adultos mais velhos. Isso se supriu com uma ampla participação de jovens que votavam pela primeira vez.
Mauricio Morales, acadêmico da Universidade de Talca destacou que a opção “convenção constitucional” obteve um 97% de apoio, inclusive mais alto do que o “aprovo”. “Surpreendeu a alta e jovem votação que dirimia entre uma constituinte integralmente eleita e uma com composição mista com parlamentares; creio que o resultado deve ser interpretado como um forte castigo à classe política chilena”.
Também parece ter-se produzido uma mudança geracional, com uma participação mais elevada dos jovens entre 18 e 24 anos, que participaram em 30% em 2013 e 35% em 2017, cifra que se elevou em torno de 50%.
“Estamos diante de uma substituição de gerações e o plebiscito fez com que os jovens saíssem de casa, algo que não fez nenhuma eleição anterior”, destacou Morales.
Por outra parte, o mais importante parece ser a diminuição das brechas de participação entre os segmentos mais ricos e mais pobres, o que é “uma excelente notícia, dado que a participação desigual se traduz em representação desigual, e neste caso os dados mostram um incremento de participação dos setores mais pobres”.
Disse que “há uma correção do viés de classe que acompanha os processos eleitorais e que se aprofundaram com o voto voluntário”.
Aldo Anfossi especial para La Jornada desde Santiago do Chile.
La Jornada, especial para Diálogos do Sul — Direitos reservados.
Tradução: Beatriz Cannabrava
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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