Joan Garcés, um dos assessores políticos mais próximos de Salvador Allende, presidente do Chile entre 1970 e 1973, descreve o mandatário como um “militante latino-americanista, com visão mundial construtiva, sem as então denominadas fronteiras ideológicas”.
Em entrevista ao La Jornada, Garcés (Liria, Valência, 1944) se mostrou crítico com a postura do Executivo de Gabriel Boric com relação à experiência da Unidade Popular e as razões do golpe de Estado. “O governo atual, como os anteriores desde 1973, silencia 50 anos depois a causa principal, exógena, da desestabilização interna do sistema sócio-político e econômico entre 1970 e 1973”, aponta o cientista político e professor de Relações Internacionais.
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Garcés, doutor em Ciências Políticas pela Sorbonne, é também autor dos livros “Orlando Letelier. Testimonio y vindicación”; “Soberanos e intervenidos. Estrategias globales, americanos y españoles”; “Allende y la experiencia chilena”, entre outros.
Entre seus passos pessoais mais importantes, figura ter dirigido em 1998, a partir da Europa, o processo judicial contra Augusto Pinochet por crimes de lesa humanidade, genocídio, terrorismo e tortura, em colaboração com outras vítimas da ditadura chilena como o sociólogo Marcos Roitman Rosenmann. O processo provocou a detenção do general golpista em Londres e o repúdio da comunidade internacional pelo regime de terror que instaurou.
Confira a entrevista a seguir.
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Governo Boric silencia a causa principal da desestabilização interna do sistema sócio-político e econômico do Chile entre 1970 e 1973
La Jornada | A 50 anos do golpe militar no Chile, que recordações tem daqueles dias junto ao presidente Salvador Allende?
Vivia-se o resultado acumulado da decisão tomada em segredo pelo presidente Nixon no dia que Salvador Allende iniciou sua presidência, em 5 de novembro de 1970: “nos oporemos a Allende tanto quanto possamos e faremos todo o possível para impedir que se consolide no poder, tendo cuidado de apresentar esses esforços de uma forma que pareça que reagimos aos seus movimentos”.
Nos muros de Santiago, eram lidas ameaças como ‘Jacarta se acerca’, isto é, o plano de extermínio contra os partidários do Presidente Sukarno posto em prática na Indonésia desde 1965. Três altos oficiais criminosos se adiantaram, e precisamente no dia 11 dirigiram suas armas para matar o Presidente Allende e exterminar seus partidários. Adotaram o “método Jacarta” às circunstâncias do Chile.
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Que lições caberia tirar da atuação da comunidade internacional e do golpe militar a Allende? Levando em conta o contexto da Guerra Fria e da hegemonia beligerante na região por parte dos Estados Unidos.
A política do “bom vizinho” da administração de Franklin D. Roosevelt foi substituída desde 1945 pela projeção, sobre nossos povos, da guerra hegemônica com a União Soviética, com a consequente promulgação do regime antirrepublicano imposto a sangue e fogo aos espanhóis em 1939, a derrocada de governos democráticos e a provocação de diversas formas de violência na Colômbia e na Venezuela (1948), Guatemala (1954), República Dominicana (1963) e na Brasil (1984).
No histórico discurso ante a ONU, em 4 de dezembro de 1972, o Presidente Allende insistiu na urgência da solidariedade entre os povos irmãos da América Latina.
Sim, e antes viajou ao México em sinal de respaldo às propostas do governo mexicano nas Nações Unidos, sobre o direito dos povos a dispor de seus recursos naturais. Allende era um militante latino-americanista, com uma visão mundial construtiva, sem as então denominadas “fronteiras ideológicas”.
Allende também foi amigo do general Lázaro Cárdenas e citava em seus discursos personagens históricos como Benito Juárez.
A história e cultura contemporânea de nossos povos é substancialmente comum. As iniciativas do presidente Cárdenas em política interior e exterior influenciaram muito toda a geração de Allende. Em agosto de 1973, eu escutei ele se lamentar de não ter podido assistir o enterro de Lázaro Cárdenas, sobretudo nos dias de outubro de 1970 em que estava se desenvolvendo no Chile o golpe de Estados ordenado por Nixon no anterior 15 de setembro – o qual fracassou pela oposição do comandante em chefe do Exército constitucionalista, o general René Schneider, ao preço de sua vida. Foi a primeiro a ser assassinado.
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Considera que o Chile tem ainda que fazer uma importante revisão histórica de seu próprio passado para saber realmente o que aconteceu e como tudo isso afetou seu presente mais atual?
É difícil. Desde o motim castrense toda a informação publicada esteve em mãos dos meios que foram clandestinamente financiados para desestabilizar o país (El Mercurio foi o mais impactado), deslegitimar a oficialidade constitucionalista das Forças Armadas, apoiar o extermínio durante a ditadura e o legado desta até hoje. Desde 1973, continuam confiscados o patrimônio, os imóveis em Santiago, Concepción e Viña del Mar, as rotativas do diário mais vendido no Chile, El Clarín, incumprindo o laudo do Tribunal Internacional de Arbitragem do CIADI, que em 2020 confirmou que o Estado do Chile tem a obrigação de indenizar seus proprietários espanhóis, o que lhes permitirá ampliar o pluralismo informativo.
O que opina sobre a forma com que o governo atual do Chile, de Gabriel Boric, está rememorando aqueles anos?
Daria a impressão, até agora, de que tem decidido passar por cima da natureza decisiva, sofisticada e multidimensional da intervenção da administração Nixon e de alguns de seus países aliados na América, Europa e no Pacífico, dirigida a provocar o colapso do Estado democrático do Chile, exterminar o movimento popular organizado e recuperar o controle de seus recursos econômicos e humanos.
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O governo atual, como os outros desde 1973, silencia 50 anos depois a causa principal, exógena, da desestabilização interna do sistema sócio-político e econômico entre 1970 e 1973, da subsequente longa cadeia de massivos e sistemáticos “crimes em busca de autor” parafraseando o título da obra de teatro de Pirandello. Ainda hoje o Estado chileno mantém sob segredo a identidade dos funcionários que com suas mãos assassinaram, fizeram “desaparecer” e torturaram as dezenas de milhares de vítimas que enumeram os informes Rettig e Valech. O muito pouco que se conhece é graças aos esforços e trabalho das próprias vítimas ante os Tribunais de Justiça.
Que elementos crê que deveria-se recordar neste aniversário frente ao futuro, não só do Chile, mas sim de toda a América Latina onde o governo de Allende continua sendo uma referência?
A longa marcha dos povos de nossa cultura comum para a livre determinação e soberania geoeconômica, em particular, para pôr algumas datas, desde a revolução mexicana de 1991; a rebelião universitária de Córdoba de 1918; a sétima Conferência panamericana que em Montevidéu se opôs, em 1933, à doutrina Monroe a princípio da não intervenção; a resistência em 1936 ao fascismo dos republicanos espanhóis; e os sucessivos continuados, fatos dos quais o povo do Chile foi e é parte ativa, combatente, apesar da demonstrada crueldade das direitas chilenas.
Acredita que pelo menos a batalha da história Pinochet perdeu, ao ser identificado em todo o mundo como um tirano e um ditador desapiedado?
As cinco horas de combate do presidente do Chile contra a infantaria, artilharia e aviões disparando contra o Palácio de La Moneda, com a frota dos Estados Unidos na costa do Chile, foi a última batalha política de Allende. A ganhou, ao preço de sua vida.
Armando G. Tejeda | La Jornada, especial para Diálogos do Sul – Direitos reservados.
Tradução: Beatriz Cannabrava
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