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Cannabrava | Brasil dos quilombos resiste e continua vivo como estado dentro do Estado

O quilombo, na mais pura tradição quilombola, tem governo e economia próprias e sobrevive independente da cidade oficial. Temos um povo que resiste
Paulo Cannabrava Filho
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

Os jornais publicam dados oficiais, fornecidos pelo governo do Estado do Rio de Janeiro, sobre a situação de algumas favelas que ilustram bem o que é a força da economia informal: um verdadeiro estado paralelo.

Abandonadas pelo Estado, 1.400 favelas — comunidades na linguagem oficial — se auto organizam, criam seu próprio governo já que têm sua própria economia e sua própria força de defesa. Quem manda na economia manda também na organização social e na segurança.

Na economia, o poder está no narcotráfico e nos bicheiros. São os mais ricos e dominam também o mercado imobiliário. No comércio varejista, predomina a informalidade que não paga impostos.

O quilombo, na mais pura tradição quilombola, tem governo e economia próprias e sobrevive independente da cidade oficial. Temos um povo que resiste

Câmara Municipal de Fortaleza
Abandonadas pelo Estado, 1.400 favelas — comunidades na linguagem oficial — se auto organizam.

É compreensível que esse estado se consolide num cenário de quatro décadas de depressão, ou seja, sem desenvolvimento gerador de trabalho e renda e aumento da população e da demanda por serviços e assistência social, além de ausência total do Estado.

Estado ausente como gerador de desenvolvimento no âmbito da União e dos estados federados. Ilhas cercadas por conglomerados humanos prestes a explodir.

É a economia paralela e o trabalho informal que mantêm a calma, garantem o trabalho informal e a segurança apesar do Estado. O fenômeno está presente em todas as cidades grandes e áreas metropolitanas. Nelas convivem duas cidades:

– a oficial, com as elites governantes e os 10% ou 20% de ricos e remediados — protegidos pelas polícias militares estaduais e pelas forças armadas e um contingentes cada vez maior de policia privada, talvez maior que o próprio Exército. Aqui tudo acontece por e para eles mesmos.

– a marginal, dos excluídos, onde também tudo acontece por e para eles mesmos.

No Rio de Janeiro, nessas 1.400 partes da “outra cidade” estão 14% dos postos de saúde, 13% das zonas eleitorais com dois milhões de eleitores. São 1.779 escolas (2/3 públicas) com 550 mil alunos.

Economia em bancarrota

Darcy Ribeiro tinha pensado a melhor das escolas para as crianças desses bairros. Escola de qualidade dando-lhes condição de cidadania e capacidade para aprender uma profissão para serem capaz de gerar trabalho e renda.

O neoliberalismo, ao impor o pensamento único, acabou com as escolas como projeto de formação de cidadãos. Acabou também com as possibilidades de oferta de emprego, seja através da desindustrialização, da desestatização ou da desnacionalização. 

A produção industrial vem em queda, com tropeços, desde os anos 1980, isto é, tivemos alguns períodos de crescimento, mas nunca o suficiente para recuperar o que se produzia nos anos 1970. 

Desde 2014, com PIB negativo, a indústria avançou um pouquinho entre 2018 e 2019, mas voltou a cair em 2020. Ou seja, o desastre não é consequência da retração provocada pela pandemia, mas sim resultado do projeto deste governo de ocupação a serviço da recolonização do país.

Os danos sociais são visíveis. As crianças, que antes passavam o dia nos Centros Integrados de Educação Pública (Cieps), agora são treinadas para ser “aviões” ou sentinelas do tráfico. Fazer o quê? Sobreviver… é disso que se trata.

São 1.400 comunidades. Algumas urbanizadas, com escolas e postos de saúde, delegacias e postos das missões pacificadoras, mas, favelas. São os quilombos de hoje como dizia a senador, teatrólogo, pintor e poeta Abdias Nascimento.

Por que quilombos?

O quilombo, na mais pura tradição quilombola, tem governo e economia próprias e sobrevive independente da cidade oficial. Temos um povo que resiste. Resistência que começou há mais de 400 anos em Palmares, sob a liderança de Zumbi. 

Já não são as tropas da Coroa portuguesa nem os soldados do Império que os atacam. Nem as forças policiais estaduais a serviço das oligarquias. Agora são as forças especiais das “missões pacificadoras” da ONU, treinadas pelos Estados Unidos durante a ocupação no Haiti. 

No lugar do Estado, quem faz a segurança são as tropas do Comando Vermelho (CV), do Terceiro Comando da Capital (TCP), os Amigos dos Amigos (Ada). Esse exército paralelo, segundo estimativa da polícia do Rio de Janeiro, já ultrapassa o contingente 57 mil pessoas.

Um confronto que só nesse contexto acarreta 1.700 mortes, em média, por ano. Mais da metade das execuções são perpetradas por agentes oficiais da repressão, do Exército ou das polícias militares. A média é de 40 mil mortos por ano em todo o Brasil, com recorde de 60 mil mortos em 2017.

Esse balanço trágico de dezenas de milhares de mortos todos os anos pela violência nos leva a deduzir que a situação descrita para o Rio de Janeiro é paradigmática, se repete em todos os quilombos por esses Brasis afora.

Em São Paulo, as administrações se gabam de que não há favelas e a mídia esconde a realidade da outra cidade, a dos excluídos, condenados a viver nos cortiços ou nos quilombos das periferias. Aqui, os latifundiários do asfalto são implacáveis: simplesmente botam fogo nas ocupações irregulares.

Sem outra alternativa, a população se estende por áreas de mananciais ou de difícil acesso, distantes de tudo, sem qualquer serviço básico. Com o tempo e o rápido adensamento, chegam os serviços públicos como água, esgoto, coleta de lixo, transporte urbano. Mas continua sendo uma outra cidade.

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Paulo Cannabrava Filho Iniciou a carreira como repórter no jornal O Tempo, em 1957. Quatro anos depois, integrou a primeira equipe de correspondentes da Agência Prensa Latina. Hoje dirige a revista eletrônica Diálogos do Sul, inspirada no projeto Cadernos do Terceiro Mundo.

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