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ToggleEm 18 de maio de 2020, uma hashtag contra judeus amanheceu entre os assuntos mais comentados do Twitter na França.
Visível para os quase 9 milhões de usuários da rede social no país, não demorou para que a #sijetaitunjuif, ou #seeufossejudeu, parasse no debate público.
Discussões foram feitas em programas jornalísticos, entidades judaicas emitiram notas de repúdio e políticos usaram o ataque antissemita para reforçar bandeiras.
Mas o que parecia uma grande campanha de ódio contra os judeus – ao ponto de ficar entre os temas mais comentados naquela manhã entre os franceses – na verdade começou como algo pontual e acabou crescendo justamente pela ação de quem se indignou com aquilo.
Um monitoramento feito pelo hacker francês ativista no combate à desinformação e proteção de dados Robert Baptiste, que usa o codinome Elliot Alderson nas redes sociais, mostra que os primeiros tuítes começaram a circular em um pequeno grupo, na noite anterior: ao todo, 54 pessoas que só interagiam entre si fizeram alguns posts, muitas com perfis falsos.
O engajamento das mensagens era baixo, com pouca interação e poucos compartilhamentos.
Mas tudo mudou quando usuários fora dessa “bolha” descobriram a hashtag e se indignaram com ela. Com mensagens públicas expondo a revolta, usuários adotaram a hashtag para pedir ao Twitter que fizesse algo.
A partir daí, compartilhamentos, curtidas, comentários… Logo, o assunto foi parar entre os mais discutidos.
Durante a manhã, a Liga Internacional contra o Racismo e o Antissemitismo se pronunciou sobre o assunto. Depois foi a vez de políticos dos extremos do espectro e influencers.
“De indignação em indignação, a hashtag se espalha para todos os lugares (…) É um padrão. As pessoas veem algo que as choca e mencionam o conteúdo. Fazendo isso, elas o amplificam”, disse Baptiste à BBC News Brasil.
PxHere
Levantamento de ativista mostra no canto esquerdo (amarelo e isolado) os primeiros perfis a usarem uma hashtag antissemita
Atenção aos extremos
O exemplo não é exclusividade da França. Não é raro que postagens e vídeos sejam impulsionados nas redes sociais por aqueles que mais os repudiam.
E isso pode ter a ver com o efeito que as redes sociais têm sobre nossas emoções.
“O algoritmo das plataformas trabalha para que passemos mais tempo nelas. E os posts e assuntos com reações mais extremas nos faz ficar mais [tempo], por causa da indignação dos dois lados”, conta a professora Lilian Carvalho, coordenadora do Núcleo de Comunicação, Marketing e Redes Sociais Digitais da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
E, quanto mais um determinado post envolve os usuários, mais ele vai ganhando destaque e alcançando novas pessoas. No caso do Twitter, pode parar nos Trending Topics; no Facebook, pode aparecer mais alto no feed de amigos; no YouTube, pode aparecer nos vídeos “em alta” e “recomendados”.
“Economia do ódio”
Apesar de estarmos conectados o dia inteiro de alguma forma nas redes sociais, não é sempre que achamos tempo para nos engajarmos.
Trabalho, almoço, estudo, tarefas domésticas… É nessa disputa por nossa cada vez mais escassa atenção que acontece o debate de ideias nas plataformas, explica Marco Bastos, professor de comunicação e especialista em redes sociais da City University of London, no Reino Unido.
“Não tem como dar atenção a tudo que está acontecendo, então os usuários usam o pouco tempo que têm para investir em ideias que são caras a eles, na guerra de quem vai falar o que ou quem vai ter mais resultado sobre aquilo. A economia do ódio atua justamente aí, no conteúdo que as pessoas não vão conseguir evitar de olhar e comentar”, diz.
Um dos resultados disso, segundo os especialistas, é a polarização, já que os extremos repercutem mais.
Para Lilian Carvalho, as postagens no “meio termo”, mesmo que concordemos com elas, não despertam o nosso interesse.
“Não digo que a pessoa não deve se indignar, mas entender o que essa indignação significa no ambiente das redes sociais e como as plataformas utilizam de gatilhos emocionais para manipular nossas emoções”.
No caso específico do Twitter, o professor Marco Bastos ressalta ainda que mudanças feitas pela plataforma alteraram o aparecimento de assuntos na lista do Trending Topics, que reúne os assuntos mais comentados.
Se antes, ela era baseada apenas na quantidade de posts, hoje leva em consideração a diversidade de grupos que falam sobre o mesmo assunto.
Ou seja, se todos os ambientalistas do mundo – mas apenas eles – resolverem impulsionar uma hashtag, só vão conseguir emplacar caso o assunto seja discutido fora da “bolha” e gere algum tipo de embate.
Na terça-feira (21), a hashtag #FamíliasContraFelipeNeto, por exemplo, apareceu entre os assuntos mais comentados na rede social.
A ideia era protestar contra os posicionamentos políticos do popular youtuber brasileiro. Uma simples busca pelo termo, porém, mostra que alguns dos posts com mais engajamento, na verdade, eram de apoio a Felipe Neto.
Ainda assim, a notícia sobre a popularidade do termo foi tema de posts de blogs e sites de notícias.
Em outros casos, grupos contrários conseguem, de fato, se apropriar de uma hashtag e dar um novo significado a ela.
Um exemplo recente é a #WhiteLivesMatter, ou Vidas Brancas Importam, que começou como reação ao movimento antirracista Vidas Negras Importam.
O termo acabou sendo “sequestrado” por fãs da música pop sul-coreana, o k-pop, que diluíram mensagens racistas num mar de posts sobre seus ídolos.
A lista de assuntos mais comentados no Twitter é muito utilizada para pautar jornalistas e em debates na TV no Brasil, como no programa matutino Encontro com Fátima Bernardes, da Rede Globo.
“Acho que o usuário sabe que, ao falar sobre o assunto, o está impulsionando. Mas essa não é a preocupação principal dele no momento que ele quer impor seu ponto de vista”. explica o professor Marco Bastos.
À espera dos compartilhamentos
Chamar a atenção dos usuários com as reações extremas é apenas um dos artifícios das redes sociais para estimular mais o uso de suas plataformas.
A estrutura também nos faz esperar por reações ou “fazer parte de uma comunidade”, como explica Bastos. Quando nos posicionamos, desejamos curtidas, comentários e compartilhamentos.
Em recente entrevista à BBC, a jornalista espanhola Marta Peirano, autora do livro El Enemigo Conoce El Sistema (O inimigo conhece o sistema, em tradução livre), ressaltou que a estrutura das redes sociais nos faz ficar viciados.
“Somos viciados em injeções de dopamina que certas tecnologias incluíram em suas plataformas. Isso não é por acaso, é deliberado”.
A dopamina é um neurotransmissor cuja atividade está ligada à motivação que temos para fazer as coisas e pode ser acionada por uma série de estímulos externos, de um barulho a uma notificação.
“Temos que lembrar que tudo isso é muito novo, estamos aprendendo. Antes, quando só consumíamos TV, era fácil controlar. Era só mudar de canal para a gente deixar de ver o que não queríamos reagir. Agora não, estamos na mão do algoritmo, que coloca o assunto que quer na nossa frente”, conclui a professora Lilian Carvalho. (BBC News Brasil).
Osvaldo Bertolino | Jornalista, escritor e historiador
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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