Conteúdo da página
ToggleAté há pouco tempo nossos principais problemas eram outros. A praga generalizada pela Covid-19 soterrou os assuntos que até janeiro eram os que mais importavam. Mas embora a prioridade de controlar a pandemia continue, a necessidade de prever o que virá depois merece crescente atenção. E, além disso, às reflexões normais se acrescentam as pertinazes reclamações, de parte interessada, daqueles que pressionam pela reabertura dos negócios o quanto antes, mesmo com o risco de agravar a crise sanitária.
Há cinco meses, os grande temas eram os sintomas de recessão nas economias dos Estados Unidos e da Europa, que estacam a do Japão e empobrecem a da América Latina, os protestos sociais que isso motiva, assim como as crises políticas que afetam não poucos países, aos quais agora se agregam os Estados Unidos. Ademais, aumentava a crise ambiental com temperaturas e degelos recordes, grandes incêndios florestais e a própria Covid.
APOIE A DIÁLOGOS
Com isso ressurgia a reivindicação de um novo progressismo, depois que o anterior perdeu vários governos latino-americanos pelas deficiências políticas que os fizeram mais vulneráveis, e a vasta contraofensiva hemisférica da “nova” direita, orquestrada a partir de Washington. Uma direita que, após essa lúcida estreia, não foi capaz de reimplantar uma ordem neoliberal funcional nem sustentável, nem conseguir controle nem legitimidade política, como em breve tempo mostraram os fracassos de Macri, Bolsonaro e Piñera.
Fernando Frazão
O futuro do pós-pandemia ainda ´´e incerto.
Esse transfundo tem ficado pendente. Quando surgir alguma vacina para esta pandemia nenhum desses problemas terá sido mitigado e muito menos resolvido. Voltarão a emergir, agudizados pelos efeitos desta praga. É enganoso fantasiar sobre uma “normalidade” viável e sustentável que nossos países deverão adotar, sem propor, da mesma maneira, o enfrentamento das causas latentes da crise econômica, sociopolítica, ecológica, ética, institucional e da relações internacionais, que continuarão esquentando.
Esta situação multicrítica expressa a mudança de época em que estamos todos enrolados, e não é só uma época de mudanças, como adverte o Papa Francisco. As novas perspectivas de desenvolvimento das forças produtivas, reavivadas pelas terceira e quarta revoluções científico-técnicas, já não cabem na estreiteza das relações e práticas institucionais, jurídicas e estruturais antes instauradas, já exaustas e desacreditadas pelas políticas neoliberais.
Ou seja, não só os setores populares e médios da população, mas também a fração tecnologicamente mais avançada da burguesia, têm motivos para se sentirem presos na ordem política, legal e moral estabelecida, e boas razões para querer mudá-la, tanto nas nações prósperas como nos países neocoloniais e subdesenvolvidos. Embora as mudanças desejadas por uns e outros não coincidam.
RECEBA NOSSO BOLETIM
Nesse estado de coisas, enquanto a situação recrudesce, brotam crescentes indignações, indocilidades e impulsos emancipatórios, e surgem novas subjetividades, formas de pensar e modos de fazer política. Os problemas locais e setoriais – nos bairros e municípios, étnicos e geracionais – adquirem maior protagonismo. E na persistência e agravamento das insatisfações, rebeldias e exigências, buscam-se outros modos de compartilhar e viver, e a reflexão passa a reclamar outro pensamento crítico, mais propositivo e eficaz.
A isso a pandemia tem agregado um pacote de problemas que demandam resposta. Mas além disso, os efeitos da Covid-19 precipitam um conjunto de exigências que desbordam o campo da saúde e suas imediatas sequelas comerciais e reclamam assumir e afrontar o panorama completo – toda a sua complexidade – além das necessidades imediatas.
Na luta por reformar ou reciclar a atualidade capitalista realmente existente –hoje disfuncional para uns e outros–, contendem aqueles que representam os diversos e até opostos interesses econômicos e políticos, com suas respectivas necessidades, propostas, estratégias e estilos. Além das indignações, subjetividades, aspirações e modos de pensar e agir das capas sociais e dos âmbitos culturais e locais das pessoas, são suas áreas de luta nas quais buscam captar apoios para seus objetivos.
Cada grupo de interesse busca canalizar a seu favor as indignações e esperanças das pessoas, por uns ou outros meios, inclusive os mais imorais. Há muito tempo pereceu o mito de que os dogmas neoliberais podiam oferecer algo.
Como diria Carlos Marx: “Ao chegar a uma determinada fase de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade se chocam com as relaciones de produção existentes, ou, o que não é mais que a expressão jurídica disto, com as relações de propriedade dentro das quais se desenvolveram até ali. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas reações se convertem em suas travas. E se abre assim uma época de revolução social”. Ver o quarto parágrafo de seu Prólogo da “Contribuição à crítica da economia política”, de 1859.
Aqueles que o argumentavam, hoje necessitam defender o saque mal havido com as forças brutas da ultradireita. Lamentavelmente, o que melhor corresponde aos interesses nacionais e populares nem sempre é assumido pelas pessoas mais desamparadas. Não poucos seguem aqueles que lhes oferecem um benefício imediato, em lugar de uma opção de soluções sustentáveis e duradouras para a maioria cidadã. Por isso é que há pobres nos bandos neofascistas.
É responsabilidade daqueles que se dizem revolucionários ou progressistas encaminhar as indignações e anseios populares no sentido mais criador, não regressar à miserável realidade considerada “normal” no ano anterior ao coronavírus. Porque esta história não termina, mas ressurge após a pandemia.
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul