O confinamento imposto para controlar a pior pandemia da história moderna cortou completamente nossas liberdades essenciais, cercando-nos com um muro de imposições surgidas dos centros de poder, os mesmos que há alguns meses eram objetos de fortes manifestações de protesto em todo o planeta.
Para dizer a verdade, o ataque deste vírus desconhecido e aparentemente indestrutível veio para criar um estado de impunidade muito conveniente para aqueles governos que até há pouco tempo vacilavam na corda bamba. Isso, no entanto, não é novo; as tragédias e catástrofes, naturais ou não, sempre serviram como pretexto para facilitar o acesso a mecanismos extremos de poder político para indivíduos e grupos cujo desempenho, cedo ou tarde, lhes teria custado a perda de autoridade.
Nossa realidade foi reduzida, de repente, a calar e obedecer, não importa quão desatinadas sejam as ordens superiores ditadas e impostas por meio do medo e da repressão. No maioria de nossos países, a população é encurralada e reduzida a uma obediência humilhante mediante a força das armas, com exércitos patrulhando as ruas e polícia agredindo sem compaixão os mais pobres, pre munidos de uma autoridade capaz de transformar em delitos atos tão elementares como a busca de meios para sobreviver.
De modo inexplicável, o simples fato de sair de casa é hoje um ato subversivo merecedor de um castigo exemplar; e mesmo que o confinamento seja uma medida acertada e necessária para deter a pandemia, o modo de o impor tem significado, em muitos países, a abolição – mediante a violência – de direitos garantidos pela Constituição e pelas leis.
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O silêncio e a obediência, afinal de contas, são produtos dessa longa sequência de abusos aos quais estamos tão acostumados
Calar e obedecer parece ser a consigna do momento. Por um raciocínio lógico (deter os contágios e evitar a perda de vidas humanas) se mantém incapacitada a cidadania para divergir e se deixa à mercê do critério de outros, aqueles que decidiram sua vida e seu futuro. Na realidade e fora de toda a lógica, os setores mais poderosos, ou seja, esses “outros” que capturaram o poder mediante a corrupção e a pilhagem, conseguiram o status sonhado: ter a sociedade nas mãos.
Se existe algo mais perigoso que um vírus mortal, é o medo e a desinformação, capazes de anular a capacidade das pessoas para retomar as rédeas de sua liberdade e decidir sobre sua vida. Calar e obedecer é hoje e tem sido sempre uma mordaça amarga imposta ao longo da história. É um preceito capaz de enfraquecer rapidamente as bases das democracias incipientes e longamente ansiadas pelos povos latino-americanos, após inúmeros golpes de Estado e atentados constantes contra os direitos humanos, políticos e económicos.
Calar e obedecer é o que vem incapacitando grandes setores por meio da exploração e da pobreza, impedindo que tenham acesso ao conhecimento e transformando as leis em instrumentos propícios para obstaculizar seu direito à participação cidadã, ativa e consciente.
Calar e obedecer é a antidemocracia por excelência e o vírus a impõe com todo o seu poder letal, amparando-se no medo à morte, mas, sobretudo, nessa sensação de impotência diante da capacidade de outros para apoderar-se do nosso destino. O silêncio e a obediência, afinal de contas, são produtos dessa longa sequência de abusos aos quais estamos tão acostumados como para seguir escolhendo o pior da oferta política para administrar nosso presente e empenhar, com total descaso, nosso futuro.
À medida que o silêncio se impõe, nossos direitos retrocedem.
Carolina Vásquez Araya, Colaboradora de Diálogos do Sul da Cidade da Guatemala
Tradução: Beatriz Cannabrava
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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