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OAB vê crime contra a humanidade no combate à Covid-19 no Amazonas

Com mais de 10 mil casos confirmados e mais de 800 mortes no estado, o governo de Wilson Lima se prepara para retomar as atividades econômicas
Izabel Santos
Amazônia Real
Manaus

Tradução:

O presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Hélio Leitão, classificou como um crime contra a humanidade ou “lesa-humanidade” a falta de ações mais rígidas por parte do governador do Amazonas, Wilson Lima (PSC), no combate a pandemia do novo coronavírus em Manaus e no interior do estado. À reportagem da agência Amazônia Real, o advogado disse que a retomada de atividades econômicas ou qualquer relaxamento no isolamento social coloca em risco a vida da população do Amazonas.

“Em nenhuma hipótese o valor supremo a ser preservado, sobretudo pelo poder público, deixa de ser a vida. A economia existe em função da vida, do ser humano. No momento em que se altera essa equação, faz-se a opção, na verdade, pela morte. Faz-se uma opção por privilegiar a economia em detrimento da vida. Isso, na verdade, caracteriza um crime de lesa-humanidade, um atentado aos direitos humanos e ao direito humano mais sagrado, que é o direito à vida, do qual hão de decorrer todos os demais”, afirma Hélio Leitão à reportagem.

O governador Wilson Lima anunciou, na semana passada, um plano de flexibilização do isolamento social com a reabertura do comércio e indústria a partir do dia 14 de maio. O plano foi elaborado por uma equipe coordenada pelo economista e comentarista Samy Dana. No entanto, antes mesmo de iniciar a flexibilização, indústrias da Zona Franca de Manaus retomaram as atividades e a população voltou com mais intensidade às ruas da capital.

Com mais de 10 mil casos confirmados e mais de 800 mortes no estado, o governo de Wilson Lima se prepara para retomar as atividades econômicas

Foto do Ensaio Insulae de Raphael Alves
Enterros no cemitério N. S. Aparecida, em Manaus.

Perguntado sobre quem pode ser responsabilizado pelo crime contra a humanidade no caso do combate a Covid-19 no Amazonas, o presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB disse que são os gestores públicos. “Serão diretamente responsabilizados pelo agravamento dessa crise sanitária e pelas mortes decorrentes dessa crise sanitária”.

Para Hélio Leitão, “nós convivemos em sociedade e o meu direito termina onde começa o do outro. Eu não tenho direito, no meio de uma crise como essa, sanitária, e pandemia, eu não tenho direito e expor os outros a riscos”, explicou.

O presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos disse que a pandemia do novo coronavírus é uma situação excepcional. “Nessa situação de excepcionalidade, o Estado tem o poder-dever, é um poder e é um dever, de limitar, de restringir direitos, de restringir locomoções, de restringir atividades econômicas. É é um poder-dever. Além de ser um poder-dever que decorre de lei, é um  poder-dever que decorre de um imperativo ético, um imperativo de proteção da vida”, afirmou o advogado.

A definição de crime contra a humanidade ou crime de lesa-humanidade foi dada, pela primeira vez, pelos Princípios de Nuremberg em 1945, aprovados pela Organização das Nações Unidas (ONU). A Corte Interamericana de Direitos Humanos admite esses princípios como integrantes do direito internacional cogente ou imperativo. Os crimes cometidos por agentes públicos durante o período da ditadura militar brasileira (1964-1985) foram classificados como crimes de lesa-humanidade. 

A reportagem da Amazônia Real procurou a assessoria de imprensa do governador Wilson Lima para repercutir as declarações do presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB, advogado Hélio Leitão, mas ele não respondeu até o fechamento desta matéria.

MP tentou o lockdown

Para impedir a flexibilização do isolamento social, o Ministério Público do Estado ingressou com uma ação civil pública na Justiça pedindo o bloqueio total da circulação de pessoas nas ruas de Manaus e nos 61 municípios do Amazonas. A medida é para diminuir o avanço da pandemia do novo coronavírus no estado e aumentar a capacidade de atendimento da população na rede de saúde pública e privada. Nos hospitais, a unidades de terapia intensiva (UTI´s) estão em colapso.

Nesta quarta-feira (6), o juiz Ronnie Frank Torres Stone, da 1a. Vara da Fazendo Pública, indeferiu o pedido do MP. O órgão informou que iria recorrer da decisão no Tribunal de Justiça do Amazonas, mas até o fechamento desta reportagem não informou se ingressou com o recurso.

O presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB, advogado Hélio Leitão acrescenta que é notório que as restrições de atividades econômicas vão afetar a economia em todo o mundo. “Mas a opção do momento se dá entre a vida ou a morte, esta é opção do momento. E optar pela retomada das atividades econômicas em sua plenitude, significa fazer a opção pela morte. O que se vê no estado do Amazonas é um atentado contra a vida, um atentado contra os direitos humanos”, diz.

O Amazonas acumula 10.099 casos confirmados de Covid-19 até esta quinta-feira (7), sendo 5.897 em Manaus e 4.202 do interior do estado. Além disso, o estado já registra 806 mortes. No interior, a doença está presente em 53 municípios, sendo Manacapuru (700 casos) e Parintins (324) os que têm maior número de infectados. As informações são do boletim epidemiológico divulgado diariamente pela Fundação de Vigilância em Saúde (FVS).

No interior do estado, onde não há leitos UTI e os profissionais de saúde são uma mão de obra escassa, o “vírus chega de barco”, como disse a diretora-presidente da FVS, Rosemary Pinto em coletiva on-line no dia 22 de abril. Na época, os municípios fora da capital somavam 713 casos. Hoje, são 4.202, 589% a mais. No entanto, o transporte fluvial intermunicipal de passageiros está teoricamente suspenso pelo Decreto n° 42.087, de 19 de março de 2020.

O Amazonas tem mais de 4 milhões de habitantes, sendo que a metade vive em Manaus. Especialistas ouvidos pela agência Amazônia Real avaliaram que o pico da pandemia ainda não chegou e a situação é grave no interior do estado, pois os hospitais não têm UTI´s e nem respiradores para o atendimento da população. O estado é que detém a maior população de indígenas do país com mais de 500 mil pessoas. Os povos indígenas estão em risco de genocídio por causa da pandemia.

Violação dos direitos humanos

O arcebispo do Amazonas, Dom Leonardo Ulrich Steiner, avalia que a preocupação com a retomada das atividades econômicas não é a mesma com o avanço do novo coronavírus. “Existe uma preocupação justa com a retomada da economia”, diz Dom Leonardo. “Ela não é mesma em relação à expansão e propagação do [novo] coronavírus. Propagação e expansão que leva à morte de um bom número de pessoas. Basta ir ao cemitério e contar o número de túmulos no último mês”, acrescenta. 

“Enquanto essas pessoas [que insistem no fim do isolamento social e retomada das atividades econômicas] não forem atingidas nos elos mais familiares e íntimos, estarão pensando na economia e não nas pessoas. A questão da violação dos direitos humanos existe quando a vida é colocada em jogo, visando o lucro. Para produzir, a pessoa não pode ser colocada diante da possibilidade da morte. Diria, mais do que violação dos direitos humanos, é falta de ética. A ética rege as relações sociais de trabalho e vida”, diz o arcebispo.

“As determinações da autoridade municipal e da autoridade estadual eram necessárias e boas. Devagar as pessoas acham que [a pandemia] não era tão grave. Faltou empenho na informação evidenciando a importância do isolamento social. Como vieram manifestações contrárias, houve receio na fiscalização. E o isolamento é a possibilidade de diminuir a número de internações de uma só vez”, afirma o Dom Leonardo.

“Acabam as pessoas morrendo em casa. Morrem em casa também pela falta de uma estrutura de saúde em Manaus e no Amazonas pelo SUS. Estou a pouco tempo em Manaus, as informações que chegam é de desvios na saúde do Amazonas”, disse arcebispo do Amazonas.

Direito à vida e à saúde

Hospital 28 de Agosto: crise da Covid 19 em Manaus
(Foto do Ensaio Insulae de Raphael Alves)

As omissões da União, dos Estados e dos Municípios em relação aos direitos à saúde e à vida dos cidadãos brasileiros podem resultar em condenações em tribunais internacionais. De acordo com o professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Michael Mohallen, países que aderem a tratados de direitos humanos como a Comissão Americana de Direitos Humanos; Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos; e  Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, dos quais o Brasil é signatário, assumem o compromisso de cumprir a garantia do direito à vida e à saúde.

“Esses tratados não se comprometem com políticas públicas específicas, como no caso de uma pandemia em adotar uma medida de isolamento ou qualquer outra, mas existem compromissos em tratados dos quais o Brasil é signatário, como a Comissão Americana de Direitos Humanos e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, em que o Estado brasileiro assumiu o compromisso de cumprir a garantia do direito à vida”, explica Michael Mohallen. “Mas o Brasil, diferentemente de outros países, não têm enfrentado de modo satisfatório os desafios da pandemia”, avalia o professor.

Em reunião surpresa no Supremo Tribunal Federal, na tarde desta quinta-feira (7), o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), acompanhado por empresários, pressionou pelo fim do isolamento social no país e disse que “alguns estados foram um pouco longe nas medidas restritivas”. “As consequências estão batendo à porta de todos. Autônomos perderam ou tiveram a renda reduzida. Quem tem carteira assinada, está batendo na casa de 10 milhões de desempregados. Este número tende a crescer. Por isso, esse grupo de empresários nos trouxe essa preocupação”, acrescentou Bolsonaro.

O presidente Jair Bolsonaro voltou a criticar governadores e prefeitos que adotaram o isolamento social e o bloqueio total da circulação de pessoas nas ruas, o lockdown.

O professor Michael Mohallen disse que “na medida em que o Brasil, por meio da União ou do Governo Federal, adota medidas que não sejam protetivas do direito à vida, o Brasil pode eventualmente responder a um caso perante o Comitê de Direitos Humanos da ONU, ou perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ou a Comissão Americana de Direitos Humanos, por não ter protegido a vida dos brasileiros”.

No atual contexto, Mohallen destaca o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, onde um dos direitos sociais mais importantes é o direito à saúde, “e o Brasil, ali, assume o compromisso de garantir o direito à saúde da sua população”. 

“Esses tratados protegem vários direitos, o direito à vida é um deles.  Acho possível que [no futuro] levem-se casos para essas instâncias internacionais alegando que o Estado brasileiro não protegeu a vida dos brasileiros da melhor forma, portanto pode ter havido uma violação de direitos humanos e quebra de algum desses tratados”, avalia o professor.

Michael Mohallen explica que há inúmeros casos de condenações de Estados por violações do direito à vida, por várias razões, assim como há vários debates como no Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, por violação do direito à saúde, “que é um importante direito social”. “Possivelmente esses casos [de violações de direito à vida e à saúde] devem surgir nos próximos meses e anos. Não me surpreenderá se o Brasil estiver entre esses casos que respondem por possíveis violações do direito à vida e à saúde das pessoas [durante a pandemia de Covid-19]”.

Sociedade civil cansou de esperar

Enterros no cemitério N.S Aparecida no Tarumã
(Foto do Ensaio Insulae de Raphael Alves)

Organizações do movimento social em Manaus divulgaram nesta quinta-feira (7) uma “Carta-manifesto aos poderes do Estado do Amazonas”. “É o nosso grito como sociedade civil”, explica a advogada Márcia Dias, membro do coletivo de mulheres Guerreiras Amazônica em Movimento, que combate à violência contra as mulheres e é organização membro do Fórum Permanente das Mulheres de Manaus (FPMM), uma das mais de 50 entidades que assinam o documento.

“Esse manifesto é a voz de todos nós, companheiros e companheiras, que não aguentamos mais ver as pessoas sofrendo, morrendo”, diz o manifesto, que foi assinado também pela Articulação das Mulheres Brasileiras (AMB), Rede Um Grito Pela Vida, Fórum Afro-ameríndias e Caribenhas, Movimento das Mulheres Negras da Floresta (Dandara), Associação de Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro (AMARN), Cáritas Arquidiocesana de Manaus, Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Amazonas, entre outras instituições.

A carta diz que os hospitais públicos de Manaus foram os primeiros do Brasil a entrar em colapso desde o início da pandemia de Covid-19 no estado, no dia 13 de março. Além da falta de leitos, equipamentos e mão de obra para tratar pacientes da doença, a saúde no Amazonas padece com problemas de gestão. 

“Nós nos unimos, enquanto sociedade civil, para fazer um contraponto em relação ao que está acontecendo. Há uma dor muito grande da população que está sofrendo e estamos acompanhando estarrecidas a postura do poder público. Aqui no Amazonas a gente já sofre com a política de morte do Governo Federal, e agora, estamos vendo que os três poderes não estão agindo para salvar vidas”, diz o manifesto, que pode ser lido na íntegra abaixo.

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Izabel Santos

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