Para Monedero, a explosão do 15M em 2011 representou o descontentamento acumulado por anos após o fim de ditadura franquista e a chegada da transição.
Ao calor das manifestações nas praças espanholas e ao grito de “não nos representam”, o docente universitário e doutor em ciências políticas fundou o Podemos junto ao hoje segundo vice presidente da Espanha, Pablo Iglesias. Um coletivo que rompeu os moldes do panorama político europeu e que desde janeiro passado se converteu no primeiro partido à esquerda da social democracia que chega ao Governo nesse país desde 1939.
A Estrella de Panamá conversou com o também escritor sobre o ascenso de Podemos, geopolítica, e sua leitura sobre o que considera a atual crise do modelo capitalista global.
Burgos Dijital / Wikimedia Commons
Juan Carlos Monedero, politólogo español.
Confira a entrevista:
Estrella de Panamá – Podemos nasceu do 15M, contra o regime da transição e dos partidos. Hoje governa com o PSOE; continua o ímpeto rebelde ou já no Executivo é outra coisa?
Na noite das eleições (…) foi muito curioso porque esse povo que havia enchido as ruas gritando “que não, que não nos representam” nos recebeu gritando nessas mesmas praças: “que sim, que sim nos representam” (…) não ganhamos as eleições, mas conseguimos romper uma maldição que durante quase um século impedia que qualquer força política à esquerda da social democracia entrasse no Governo. É seguir apelando para as pessoas na rua e dando a elas toda a informação do que está acontecendo no Governo, e que as pessoas se responsabilizem juntamente do que se pode e não se pode fazer. A única maneira de conseguir transformações reais tem que ser em um grande processo de deliberação. Dizia Jesús Ibáñez que a ante sala de uma revolução é sempre uma grande conversação; isso foi o 15M. A entrada de Podemos no Governo não deve interromper essa grande conversação, senão não haverá mudança.
Essa “conversação” não corre perigo de ficar asfixiada a partir da lógica institucional?
Há algumas fórmulas para evitar que o Estado termine nos devorando porque vem com muitos vieses que refletem quem historicamente vem ganhando as batalhas. O Estado espanhol tem um viés de gênero, raça, religioso, tem um viés heterossexual, somente a correlação de forças vai permitir fazer políticas públicas que não tenham esses vieses; é obrigação do Podemos abrir canais de discussão com todos os movimentos sociais na hora de legislar.
Como buscaria equilibrar essa correlação de forças?
Diante de uma lei orçamentária, por exemplo, haverá pressão dos grandes capitais, dos fundos de investimento, das grandes empresas. Diante disso, a pressão das pessoas na rua para que Podemos possa defender o Governo. Até hoje o Estado tem funcionado para manter status quo, nós queremos entrar no Estado para ter uma alavanca e mudar estruturas profundas.
Durante anos, Podemos criticou o PSOE por ser um “partido do regime” …
Porque foi.
Mudou algo agora?
Para o PSOE, com tanta história e ramificações, é difícil deitar-se sendo parte do bipartidarismo neoliberal e levantar-se com capacidade de reverter esse modelo (…) mas como dizem na Espanha, “à força enforcam”; o PSOE tinha duas opções: fazer uma grande coalizão com a direita, e isso o teria levado para a lata do lixo da história, como boa parte da social democracia europeia, ou pactuar com uma força emergente como Podemos. Tomaram a decisão correta, entender que têm mais luz e mais percurso recuperando as condições de esquerda às quais havia renunciado e para isso “podemizaram” seu discurso. É verdade que, como no conto do escorpião e a rã, a natureza do escorpião é picar a rã embora ela o esteja ajudando a passar para o outro lado do rio.
O PSOE é como o escorpião?
Já foi, mas pode haver transmutado sua alma. Pelo menos há que dar-lhe o benefício da dúvida com certa prudência.
A social democracia hoje é bem mais moderada comparada com a que impulsionou o estado de bem-estar europeu nos anos 40 e 50…
Se moveram para a direita (…) há um processo de reversão de todas essas conquistas socialistas e essa reversão é feita frequentemente pela social democracia e não pela direita.
Em que sentido?
Jesús Ibáñez dizia que há mudanças de direita que só podem ser feitas pelas esquerdas. Tinha razão, porque determinados processos de privatização, se tivessem sido feitos pela direita as ruas teriam ardido, mas como era feitos pela esquerda, que além do mais tinha por perto algum sindicato, isto desalentava os protestos das pessoas que não entendiam que eles governavam para os ricos e privilegiados. A socialdemocracia renunciou aos seus princípios.
Hoje se pode falar de socialismo ou de uma posição anticapitalista?
Isto é como a gangrena; o fato de ter uma alternativa e ter que cortar o braço, não significa que você vai ficar contente e aceitá-lo. Creio que agora mesmo não temos um modelo alternativo ao sistema capitalista, um esquema que mercantilizou praticamente todos os aspectos de nossa existência; beber, comer, morar, o sexo, o esporte, etc. Cometemos um erro no século XX de pensar que como a estatização de todos os meios de produção saiu mal, a solução é privatizar tudo. Claro que foi uma estupidez econômica que o Estado gerenciasse tudo, mas igualmente é uma estupidez que o Estado não tenha um sistema bancário público ou que empresas vitais para a vida dos cidadãos estejam em mãos privadas.
Então, o que seria? Uma mistura de modelos?
Sim. Tem que ser claramente um híbrido, porque há determinados hábitos nos quais se podem gerir as coisas através do mercado e outras não. Temos que repensar muitas das coisas do ponto de vista de que o sistema capitalista nos conduz ao desastre… se nós seguimos insistindo, por exemplo, na privatização do meio ambiente, o ser humano vai desaparecer (…) Há âmbitos da vida que não são mercadorias, da mesma forma que não tem sentido que trabalhemos mais horas que um escravo na Grécia clássica. As grande utopias que nos punham em marcha no século XX hoje já não nos dizem nada; os lemas que mobilizaram a esquerda, hoje em dia não nos servem. Não está muito claro o que queremos, mas sabemos o que não queremos (…), portanto, se somos conscientes que o capitalismo nos leva à depredação do meio ambiente, à guerra, à violência ou à guerra civil…temos que buscar alternativas. Não podemos contemplar passivamente o que acontece.
Quando se fala de esquerda, aparece a discussão sobre os acertos, desacertos e horrores da esquerda latino-americana e europeia…
Fiquemos com os acertos e solucionemos os desacertos; é um momento de fazer bons diagnósticos sem ingenuidades.
Como fica a Venezuela em todo o debate? É o modelo a seguir no século XXI?
Nunca ninguém vai pensar que a Venezuela é o modelo; está incapacitada por sua história; a Venezuela é um país que nunca foi um vice-reino porque nunca teve minas. Por isso sua falta de estrutura administrativa a condicionou a conformação do Estado. Depois, no século XIX esteve atravessada por guerras civis e no século XX, quando tem petróleo, é quando começa a construir o Estado desde cima, profundamente ineficiente até hoje. Agora o que não é justo tampouco é que a Venezuela seja acusada de todos os males do mundo. Ontem foi Moscou, depois foi Cuba e agora necessitam um inimigo, e o inimigo é a Venezuela.
Então, o que se faz diante da situação venezuelana?
Temos que ajudar, é onde está o Papa e o ex-presidente (José Luis Rodríguez) Zapatero, que haja diálogo entre o Governo e a oposição porque não há outra saída.
E no caso do chavismo, o que lhe corresponderia estando no poder?
Mostrar disponibilidade de aceitar esse diálogo, uma saída que esteja referendada pela comunidade internacional, que seguramente vai ter que ver com eleições transparentes, onde haja espaços que reconheçam que a convocatória dessa eleição seja limpa, justa, igualitária, e que se aceite o resultado dessas eleições.
E a oposição? Especialmente a que lidera Juan Guaidó…
Guaidó é um palhaço sustentado por (Donald) Trump (…) está politicamente morto e creio que essa atuação exagerada que acaba de fazer os Estados Unidos de recebê-lo depois de não havê-lo recebido (no início) é um sinal de seus problemas, porque mais da metade das pessoas que o haviam aprovado há um ano já não lhe respaldam. Para os Estados Unidos é uma enorme vergonha que a pessoa que indicou e que supostamente ia derrubar o Maduro em dois meses, um ano depois, não só não o derrocou, mas perdeu o apoio que tinha.
Qual é sua leitura da explosão social no Chile?
O FMI nos mostrou o Chile pinochetista e pós ditadura como a maneira eficaz do neoliberalismo de fazer as coisas, resultados econômicos invejáveis e uma maravilha em termos sociais. Tudo era mentira e explodiu. Isso demonstra que o principal problema do mundo é que as propostas que busquem superar o capitalismo, se chamem como se queira chamar, tem que se basear na luta contra as desigualdades. A crise chilena também evidenciou a dupla medida: a resposta repressiva de (presidente chileno Sebastián) Piñera que deixou mortos e feridos, não recebeu a mesma atenção que Caracas quando ali teve distúrbios. Isso significa que na Venezuela as coisas estão bem? Não. Mas tampouco estão bem no Chile (…) e os que criticam a Venezuela não criticam o Chile, com o qual são uns hipócritas que nunca se interessaram pelos direitos humanos, nem ali nem no Iraque, na China ou nos Emirados Árabes. Então a Venezuela é a grande desculpa para que Piñera possa matar seu povo sem que ninguém o critique.
Em termos geopolíticos, como vê a América Latina?
Na região há uma disputa entre os Estados Unidos, a Rússia e a China, que se traduz em problemas para os povos. Boa parte de todos os confrontos estão se expressando em termos de blocos.
Não há forma de que a América Latina se desmarque desta nova guerra fria?
Temos que tentar, por isso o governo de esquerdas na Espanha pode ajudar a reverter esse beco sem saída. Voltando à Venezuela, por exemplo, se para salvar-se dos Estados Unidos tem que cair nos braços de Moscou ou de Pequim, tampouco é uma solução idônea. Tanto a China como a Rússia querem buscar uma solução hegemônica em um modelo que continua sendo também neoliberal, portanto não creio que seja uma grande solução.
Terminará em guerra esta disputa geopolítica?
Não se pode descartar que as contradições entre esses blocos terminem em conflito; além disso, a guerra sempre foi uma solução do capitalismo em crise (…) não pensemos que a guerra vai ter somente uma expressão com bombas. Através do modelo neoliberal se pôs a Grécia de joelhos, à qual se extrai um terço do seu PIB sem disparar um só tiro. A guerra é uma solução última quando não funcionam as demais.
*Estrella de Panamá especial para Diálogos do Sul — Direitos reservados.
**Tradução: Beatriz Cannabrava
Veja também
Na