Poderia dizer-se que a Líbia, o rico país petrolífero do norte da África, arde nestes momentos, mas seria uma descrição inexata do caos fabricado por interesses multinacionais, em particular os petroleiros.
A crise na Líbia começou em 2011 quando a aviação da OTAN, baseada numa interpretação enviesada de uma resolução do Conselho de Segurança da ONU, aprovada com as abstenções da Rússia e da China, derrubou o governo constitucional e propiciou o assassinato a sangue-frio do líder Muammar al-Gaddafi após ultrajá-lo com seu empalamento, um suplício praticado na Idade Média.
Foi o início de um apocalipse precoce para os líbios, que nesses momentos desfrutavam do maior índice de desenvolvimento humano na África.
Agora é evidente que a operação contra a Líbia e, também a campanha para desestabilizar a Síria, ocorrida na mesma época, foram organizadas apressadamente como uma espécie de controle de danos após a defenestração por protestos massivos do presidente tunisiano Zine El Abidine Ben Ali.
E, o que era ainda pior para Washington, a rebelião popular que obrigou a demissão do mandatário egípcio Hosni Mubarak, seu incondicional e de longa data parceiro na região.
Foi a chamada primavera árabe que, como efeito colateral, repercutiu no Bahrein, onde o Pentágono mantem uma base militar e ainda no Iêmen, cuja localização vizinha ao mar Vermelho – rota obrigatória para o Canal de Suez -, lhe confere importância geográfica estratégica.
Merecendo ainda registro que a eclosão de protestos da comunidade xiita na Arábia Saudita, causaram efeitos inesperados e indesejáveis para as chancelarias ocidentais.
Em ambos os casos, os cálculos falharam, mas por razões diferentes: a Líbia agora é um estado falido no qual milícias armadas alimentam grupos extremistas em países do Sahel e do sul da África e é o primeiro emissor de migrantes indocumentados para a Europa, enxaquecas perenes sem alívio no curto prazo.
O curioso deste quadro é que no momento da agressão contra a Líbia, Gaddafi se alinhava ao ocidente e já tinha cometido o erro crasso de cumprir uma das demandas das potências ocidentais, entregando seus arsenais de armas de longo alcance. Um erro que lhe custou a própria vida.
O complô contra a Síria foi um fiasco monumental, como demonstram os persistentes avanços das tropas leais ao presidente constitucional Bashar al-Assad, apoiadas pela participação militar russa, com inegáveis implicações geopolíticas globais que de maneira inexplicável foram ignoradas pelo estrategistas que idealizaram essa guerra.
No caso sírio a reação de Moscou era de se esperar, já que diferentemente da Líbia, esse país tem uma especial importância para a Rússia, cujas forças armadas utilizam a base naval do porto de Tartus, o que lhe permite operar no Mediterrâneo, um raio de ação necessário para suas aspirações de recuperar o status de potência mundial perdido após a derrubada da União Soviética.
Nações Unidas
O caos líbio se agravou nas últimas semanas por causa da ofensiva das forças leais ao governo assentado na cidade oriental de Tobruk
De mal a pior
O caos líbio se agravou nas últimas semanas por causa da ofensiva das forças leais ao governo assentado na cidade oriental de Tobruk, que disputa o poder com o Governo de Acordo Nacional (GAN) com sede em Trípoli, a capital, reconhecida internacionalmente.
Movidos pelas crescentes tensões no Levante, agora a Rússia, a Turquia, a Alemanha, a França, o Egito e a Itália buscam firmar um acordo de cessação de hostilidade entre os beligerantes após o naufrágio de um esforço similar na semana antepassada em Moscou, pela negativa a referendá-lo do marechal Khalifa Hafter, chefe militar do governo de Tobruk.
Hafter resultou numa surpresa, pois viveu exilado nos Estados Unidos durante décadas e retornou à Líbia após a derrubada do governo, supondo que se somaria ao novo gabinete.
No entanto, após ganhar o apoio de remanescentes do Exército leais a Gaddafi, deveio um poder fático contrário ao governo estabelecido em Trípoli, integrado por membros de confraria islamita Irmandade Muçulmana, inclinação que explica o apoio da Turquia e a oposição do Egito.
O presidente egípcio, Abdul Fatah Khalil Al-Sisi, foi o arquiteto da derrocada do presidente Mohamed Mursi, membro proeminente da direção da Irmandade, ponto de partida da luta política que mantém com a Turquia, na qual conta com o apoio da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos e a oposição do Qatar.
Apesar das gestões pacificadoras em curso, incluída a reunião do domingo, 19 de janeiro na Alemanha, a Turquia enviou um contingente militar à Líbia integrado por especialistas em defesa antiaérea e guerra eletrônica.
Versões sobre a localização de um grupo maior com a missão de manter a paz e apoiar o GAN em Trípoli foram desmentidas pelo presidente turco, Recep Tayyip Erdoğan.
Essa decisão, teria provocado o desagrado da Argélia, expressado semanas atrás de maneira oficial durante uma visita de funcionários do GAN, cujas autoridades se manifestaram contra a presença de tropas estrangeiras na Líbia.
Os acordos aprovados na reunião alemã se limitaram a uma declaração de intenções das potências ocidentais e da Rússia, sobre a vigência do embargo de armas aos beligerantes e o apoio à cessação de hostilidades.
No entanto, o encontro em termos reais foi um fracasso, pois os beligerantes nem sequer estabeleceram contato direto.
Assim, entre mediações, declarações contraditórias, fortes tensões regionais e crescente ruído de sabres transcorre o cotidiano na Líbia, esse país convertido em campo de batalha não só por fatores internos, mas sim de outros poderes que buscam prevalecer na região e no mundo. Um mal augúrio para qualquer entendimento.
*Moisés Saab, Jornalista da Redação Internacional de Prensa Latina
**Prensa Latina, especial para Diálogos do Sul — Direitos reservados.
***Tradução: Beatriz Cannabrava
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