O embuste de um golpe com cara de “transição” está descrevendo, prolixamente, todo um montão de desvarios políticos e intelectuais, sobretudo na esquerda: cuja apologia ao governo de “transição” está definindo seu próprio suicídio histórico. A esquerda opositora (ao governo do MAS) não apenas optou por um protagonismo oportunista, senão que, com absoluta perda de sentido histórico, tem cumprido fielmente com o último propósito imperial: macular e escarmentar definitivamente todo o horizonte popular. Porque a atual criminalização e perseguição do sujeito indígena tem como finalidade última a abolição do horizonte político proposto por este sujeito: o viver bem, a descolonização e o Estado plurinacional.
A esquerda opositora denunciou tanto a direitização do governo de Evo, que nunca se precataram de sua própria direitização. Denunciaram tanto a suposta ditadura e “dominação masista”, que já não sabem agora reconhecer a verdadeira ditadura e dominação do supremacismo branco em sua versão mestiça. Acusaram tanto o caudilho índio, que não perceberam a própria legitimação que outorgaram ao caudilho ilustrado (Carlos Mesa) e ao caudilho “macho” inquisidor (Fernando Camacho).
Tanto se rasgaram as vestes por uma nacionalização que dizem que não houve, que agora não sabem o que dizer da sistemática alienação anunciada do lítio e de todos os nossos recursos estratégicos. Enquanto reclamavam livremente a falta de liberdade de expressão na suposta ditadura, se esqueceram, agora olimpicamente dessa reclamação, quando são violados todos os direitos e se ameaça, se persegue, se encarcera e se expulsam jornalistas e se proscrevem meios internacionais.
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A Bolívia é o início do golpe da geoeconomia do dólar para todo o continente sul-americano.
Essa esquerda funcional ao Império sela sua própria morte. Critica tudo, mas nunca faz a autocrítica e nem limpa, pelo menos, a própria miséria histórica que carrega como uma maldição: oferecer à direita, em bandeja de prata, sua própria reposição.
O trotskismo foi exemplar nisso, reeditando seu próprio anátema genético de abrir as portas ao fascismo. Por isso, não é de estranhar que o comedimento extremista seja o vírus introduzido na luta popular para direitizar suas opções. Isso aconteceu com a funcionalização do desacordo e do dissenso antigovernamental, para benefício de um fascismo empoderado que não tardou em liderar um assalto à democracia, em nome da democracia.
Esta direitização foi promovida também nos âmbitos acadêmicos e, desde ali, amparados em um criticismo acrítico (que mais se inclina pela pura criticoneria), se dedicaram diligentemente a socavar tudo para que não ficasse nada; dando, desse modo, o melhor argumento para legitimar o ódio fascista desatado contra o índio.
A academia se ufana de “crítica”, mas é a que dá os argumentos necessários para a reposição conservadora. Por mediação acadêmica, a direita fascista recebeu a “ilustração” de seu obscurantismo como oferenda intelectual; esta mediação inclusive auspiciou e legitimou um golpe fascista que fez dessa “transição” o desmantelamento sistemático, não apenas da institucionalidade que tanto diziam defender, mas sim da própria soberania nacional.
A instauração de um regime de facto, o decreto que dá “licença para matar” ao exército, a liberação das quotas de exportação, a anunciada privatização de empresas estratégicas, o revanchista massacre branco , redesenho do corpo diplomático, revisão das Relações Internacionais, o reatamento de relações com os EUA, etc., não são atribuições de um “governo de transição”. Esta virada definitiva será a orientação de uma nova ordem imposta que será instaurada com a verdadeira fraude que vem sendo tramada com a nomeação de Salvador Romero, ficha de Carlos Mesa, para o Tribunal Supremo Eleitoral.
Pouco a pouco vai se desmascarando o planejamento golpista. Aplicando diligentemente a lógica fascista, criminalizaram os protestos populares, enquanto santificavam a “kristalnacht” racista que foi desatada pela “juventude cruzenhista”, “juventude cochala”, “a resistência pacenha”, etc. Hoje perseguem dirigentes populares, sob o qualificativo de “masistas”, acusando-os de sediciosos e terroristas; mas não dizem nada das hordas nazistas juvenis e universitárias que queimaram, destruíram, atacaram e até quase queimaram em vida a autoridades do governo anterior; sem contar que o atual reitor da UMSA havia feito um seguro contra incêndios dias antes da queima de sua casa, ou que os 64 ônibus makatari que foram queimados, estavam em desuso e retirados de funcionamento em um cemitério de sucata.
Agora seguramente cobrarão substancialmente seus seguros de uma operação planejada que mostra a perversidade de certas pessoas que semearam caos para sacar substanciais lucros de um país em chamas. A sociedade urbana engoliu o conto das “hordas” que vinham destruir tudo, para justificar a repressão do exército. Essas “hordas” foram, na realidade, os que vieram para apoiar Camacho e Pumari e o assalto golpista, agora abençoados como “defensores da democracia” pelo regime de facto.
Os mobilizados no depósito de Senkata, estavam há cinco dias no bloqueio, sem polícia nem exército, e nunca lhes ocorreu incendiar os tanques de armazenamento de gás; mas bastou a acusação de terrorismo para que os pacenhos chamassem de “heróis” o exército e a polícia, que produziram 9 mortes e dezenas de feridos. Outra vez, como em outubro de 2003, La Paz se abastece de combustível manchado com o sangue daqueles que deram o peito pela defesa dos nossos recursos.
Os ingênuos ambientalistas (que não entendem a geopolítica do discurso ambiental e a luta de capitais que funcionalizam até as alternativas energéticas como novos nichos de acumulação) já foram cooptados pela política de “reflorestamento” da Chiquitanía, que dará início à definitiva extensão da fronteira agrícola da soja transgênica, para benefício exclusivo do capital agroindustrial de Santa Cruz que, na verdade, é controlado pelo capital brasileiro e financiado pela Monsanto.
O incêndio premeditado da Chiquitanía serviu para mobilizar interessadamente a juventude urbana em torno à demanda de “ajuda internacional”; graças a essa mediação, desde Jujuy, Argentina, ingressou todo o material logístico e os dólares necessários para comprar grupos paramilitares, sicários travestidos de “juventude democrata”, Comités Cívicos e para os aparelhos coercitivos do Estado. Tudo estava planejado, mas a esquerda, até a acadêmica, estava tão sumida em seu rechaço patológico ao “falso índio presidente” que não viu nada. E continua cega diante do que está vindo.
A direita já tem o seu programa de governo redigido em Washington, cujos porta-vozes serão Camacho e Pumari: a “federalização” do país, ou seja, a quebra do Estado e a balcanização do país; para que nossos recursos estratégicos nunca mais sejam patrimônio nacional.
E o pior: esquartejar o espírito plurinacional e impor uma nova Reconquista, que dissemine o “caos construtivo” na região. A Bolívia é o início do golpe da geoeconomia do dólar para todo o continente sul-americano.
Nisso consiste uma “solução final”, desde a Alemanha nazista até a doutrina “core and the gap” do Pentágono e da CIA: desatar o caos indefinido como a nova fisionomia de um mundo sumido no inferno.
O triste será que, quando acabemos como a Síria, o Iraque, o Afeganistão ou a Líbia, não ficará ninguém com vida para dizer aos insensatos “críticos” de esquerda, o quão profundamente equivocados que estavam.
*Músico, poeta e escritor boliviano
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