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Lava Jato: os riscos da “jogadinha ensaiada” que põe juiz e promotor do mesmo lado

Entrevista especial da Revista IHU On Line com Lenio Streck e José Geraldo de Sousa Junior
João Vitor Santos
Revista IHU On-line
Porto Alegre

Tradução:

No futebol, qualquer técnico sonha em ver seu time hábil na chamada “jogadinha ensaiada”, quando um vai passando a bola para o outro, atravessando o campo do adversário e chegando ao gol. Mas essa máxima futebolística não serve para a Justiça. Ou, ao menos, não deveria servir. Para os professores e juristas Lenio Streck e José Geraldo de Sousa Junior, as recentes revelações de troca de mensagens entre o então juiz Sergio Moro e integrantes do Ministério Público Federal, publicadas em reportagem do Intercept Brasil, no caso Lava Jato, revelam que pode sim ter havido “troca de passes” entre as partes. O objetivo seria a condenação e prisão do ex-presidente Lula, por supostamente ter recebido um tríplex no litoral de São Paulo como propina de construtoras. “O que o Intercept revela é um conluio, uma promiscuidade, uma relação clandestina que conhecida, assusta, impacta, aturde, desqualifica a sacralidade do princípio do acesso equivalente e da garantia de um juiz imparcial”, dispara José Geraldo. Lenio também é direto ao afirmar que “o juiz e o procurador assumiram, nesse caso Lula (tríplex), nitidamente um lado. Foram parciais”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, os juristas esclarecem que não é proibida a troca de informações entre as partes, seja entre Judiciário e Ministério Público, seja com representantes da defesa. Mas isso deve se dar, como qualificam, de forma republicana. “Não deve haver hierarquia entre juiz e partes. Portanto, Ministério Público não é superior ao defensor. E nem juiz comanda o MP ou o defensor. E o juiz deve falar com o promotor-procurador do Ministério Público nos autos do processo. Ou seja: as conversas devem ser públicas. Jamais particulares ou secretas”, explica Lenio. “É uma contradição com o princípio da imparcialidade do juiz. Não que o órgão não possa atender as partes, mas em despacho regular, com redução a termo de seus pleitos, ou em audiências públicas e sempre assegurando-se o equilíbrio entre elas”, completa José Geraldo.

Para ambos, a revelação da troca de mensagens pode sim trazer nulidade ao processo, inclusive com possibilidade de reveses nos desdobramentos tanto da condenação e prisão de Lula como na Lava Jato como um todo. Além disso, avaliam que a reportagem do Intercept Brasil demonstra a necessidade de uma reforma no Judiciário brasileiro. “Urgentemente temos que estabelecer limites à atuação do juiz e da acusação”, aponta Lenio. “Não só essa exigência de reforma funcional e modernizante, para assegurar acesso legítimo e alargado à Justiça, mas à própria Justiça a que se tem acesso”, acrescenta José Geraldo.

Lenio Streck (Foto: Arquivo pessoal)  

Lenio Luiz Streck é jurista, mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, conhecido principalmente por seus trabalhos voltados à filosofia do direito e à hermenêutica jurídica. É professor dos cursos de pós-graduação em direito da Unisinos e atua como advogado. Procurador de Justiça aposentado, foi membro do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul de 1986 a 2014.

José Geraldo de Sousa Jr. (Foto: Agência Brasil) 

José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB, onde leciona desde 1985 e foi reitor da UnB, de 2008 a 2012.

Entrevista especial da Revista IHU On Line com Lenio Streck e José Geraldo de Sousa Junior

Revista IHU On Line
“Urgentemente temos que estabelecer limites à atuação do juiz e da acusação”

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Segundo a legislação, como deve ser a relação entre um juiz e as partes (promotoria e defesa) num processo judicial, seja ele de qualquer natureza?

Lenio Streck – É o Código de Processo Penal – CPP que trata disso, a partir da ideia de devido processo penal que está no artigo 5º da Constituição. Não deve haver hierarquia entre juiz e partes. Portanto, Ministério Público não é superior ao defensor. E nem juiz comanda o MP ou o defensor. E o juiz deve falar com o promotor-procurador do Ministério Público nos autos do processo. Ou seja: as conversas devem ser públicas. Jamais particulares ou secretas.

José Geraldo de Sousa Junior – A Constituição não estabelece uma regra específica que discipline essa relação. A previsão de um juiz imparcial encontra-se estabelecida no artigo 8º, nº 1, do Pacto de São José da Costa Rica e, por força da própria Constituição, aplicável imediatamente no ordenamento jurídico nacional. Mas esse fundamento se insere entre os princípios constitucionais na medida em que, dirigindo-se aos juízes, a Constituição veda expressamente (art. 95, par. único, inciso III) sua atividade político-partidária. No art. 5º a Constituição, ao estabelecer o elenco de direitos, arrola um amplo enunciado que assegura o acesso à Justiça e ao Poder Judiciário, em hipótese alguma convertidos em juízos ou tribunais de exceção, de modo que desse conjunto sobressaia o reconhecimento de verdadeiro direito fundamental ao acesso a um juiz independente e imparcial, irredutível ao comprometimento articulado, associado ou identificado com os interesses das partes que se fazem representar, seja em nome próprio ou público.

A troca de informações entre juízes, procuradores e mesmo advogados, como nesse caso divulgado pelo Intercept Brasil, na prática, é algo corriqueiro no sistema judiciário brasileiro?

Lenio Streck – Não. Alguns querem justificar o imbróglio envolvendo Dallagnol e Sergio Moro como se fosse o tradicional “embargos auriculares”, pelo qual tanto advogado ou promotor tentam argumentar fora do processo. Mas isso não passa de folclore. Ocorre que, na prática, em determinados nichos da justiça, há uma relação próxima, muito próxima, entre juiz e membro do Ministério Público.

Isso coloca o advogado em desvantagem, como se pode ver no caso Lula, em que, segundo revelou o site Intercept, o juiz dá dicas ao procurador. Na verdade, o juiz e o procurador assumiram, nesse caso Lula (tríplex), nitidamente um lado. Foram parciais. Tem um dispositivo do CPP (art. 254, IV) que diz que juiz que aconselha parte é suspeito.

José Geraldo de Sousa Junior – É uma contradição com o princípio da imparcialidade do juiz. Não que o órgão não possa atender as partes, mas em despacho regular, com redução a termo de seus pleitos, ou em audiências públicas e sempre assegurando-se o equilíbrio entre elas, a transparência e a ampla defesa. Mesmo quando se trate de apresentação de memoriais que carregam uma certa unilateralidade no seu objetivo de esforço de esclarecimento ou de questões complexas no interesse das partes, o Supremo Tribunal Federal, em seu Regimento Interno(art. 58), impõe que as partes, podendo apresentar memoriais aos ministros, neste caso depositarão na Secretaria exemplares destinados à Biblioteca e aos advogados dos litigantes. Há, assim, uma solenidade, uma liturgia, que salvaguardam o necessário balanço dos interesses em tensão, sempre prevalecendo a transparência, a igualdade de informações, a publicidade das relações, o seu decoro.

O que o Intercept revela é um conluio, uma promiscuidade, uma relação clandestina que conhecida, assusta, impacta, aturde, desqualifica a sacralidade do princípio do acesso equivalente e da garantia de um juiz imparcial. Por isso a lição de La Boétie (Discurso da Servidão Voluntária), reivindicando a ética contra a clandestinidade, contra a cumplicidade: “cúmplices não são pessoas éticas que se respeitam, mas se entretemem, ou seja, desconfiam uns dos outros“. O Sistema de Justiça, na sua institucionalidade ética, abomina a clandestinidade, a cumplicidade principalmente sob a forma de “troca de informações entre juízes, procuradores e mesmo advogados”.

No caso específico da Operação Lava Jato, essas supostas relações entre o então juiz Sergio Moro e o Ministério Público, reveladas pela reportagem do Intercept Brasil, podem gerar nulidade das decisões já tomadas, como a condenação e prisão do ex-presidente Lula? E quais devem ser as repercussões nos demais processos da Lava Jato?

Lenio Streck – Sim, podem. A defesa sempre disse que havia suspeição.

José Geraldo de Sousa Junior – Ora, no Direito Processual em geral e no Processual Penal especificamente, ocorrerá (Art. 564) a nulidade entre outros casos arrolados, (I) – por incompetência, suspeição ou suborno do juiz. No Art. 254 o Código estabelece que o juiz dar-se-á por suspeito, e, se não o fizer, poderá ser recusado por qualquer das partes, (IV) – se tiver aconselhado qualquer das partes.

De tudo que veio à luz até aqui e sabe-se lá o que mais virá, transparece uma conspiração altamente politizada para inibir um percurso eleitoral e pavimentar uma alternativa partidária sem lastro no referendo popular. Tudo aponta para a nulidade quando e se arguida, pelo prejudicado ou pelo Fiscal da Lei. O alcance dessa nulidade deverá ser aferido casuisticamente porque, se num primeiro plano expõe a falta de justa causa para qualquer decisão condenatória, num plano alargado desnuda um complexo conjunto de violações que, de partida, afronta a administração da Justiça.

Tanto o procurador Deltan Dallagnol como o juiz Sergio Moro alegam que as conversas publicadas pelo Intercept Brasil foram obtidas de forma ilegal. A divulgação dessas mensagens configura algum crime? Por quê? E quais podem ser os desdobramentos desse caso?

Lenio Streck – Como garantista, vamos admitir que os diálogos sejam frutos de prova ilícita (hackeamento). Então, Dallagnol e os demais escapam de processo judicial. Mas é consenso no Direito brasileiro que ninguém pode ser condenado com base em prova ilícita. Porém, o réu pode ser beneficiado por ela.

Já cedo da manhã de segunda-feira, no calor dos acontecimentos, expliquei para vários sites e rádios essa questão, lembrando de um exemplo de meu professor de processo penal, em 1830: se uma carta for aberta criminosamente (violação de correspondência) e nela se descobrir que um inocente está pagando por um culpado, o inocente poderá se beneficiar dessa prova ilícita. Tenho isso muito claro.

José Geraldo de Sousa Junior – De certo modo o que eles agora dizem tem alguma procedência teórica e processual e converge para o que, a partir do processo constitucional norte-americano foi denominado teoria dos frutos da árvore envenenada, também conhecida como teoria da prova ilícita por derivação. Esta teoria sustenta que a prova lícita, quando produzida a partir de uma prova ilícita, está contaminada, devendo também ser considerada ilícita.

Ora, ocorre que esses próprios personagens contribuíram enormemente para afastar essa teoria nos procedimentos da “Lava Jato”, incorrendo nesse uso nefasto de captura e divulgação de fatos, com vazamentos de conteúdos obtidos de modo ilícito aos quais atribuíram valor probatório para entre outros calçar a condenação do ex-presidente Lula. De ontem para hoje, foram inúmeras as postagens de depoimentos colhidos “ao vivo”, sobretudo desse juiz enunciando no interesse de sua tese condenatória juízo afirmativo que agora procura afastar relativamente a sua postura carregada de suspeição (nos termos do artigo 254 do CPP).

O que todo esse episódio revela sobre as relações institucionais e o próprio judiciário? Seria preciso pensar uma reforma do judiciário?

Lenio Streck – Sem dúvida. Urgentemente temos que estabelecer limites à atuação do juiz e da acusação. Eu mesmo já enviei projeto à Ordem dos Advogados do Brasil – OAB para inserir, no pacote Anticrime que Moro enviou ao parlamento, um artigo que obriga o Ministério Público, na investigação de crime, investigar também a favor da defesa, exatamente como está no artigo 160 do Código de processo penal alemão e no artigo 56 do Estatuto de Roma. Também sugeri que adotássemos na nossa legislação o artigo 339, do Código Penal alemão, que diz que é prevaricação o ato de um juiz ou promotor se demonstrar parcial em um determinado processo judicial.

José Geraldo de Sousa Junior – Não só essa exigência de reforma funcional e modernizante, para assegurar acesso legítimo e alargado à Justiça, mas à própria Justiça a que se tem acesso. Nesse espaço do IHU tenho tratado seguidamente desse tema.

De modo mais analítico, entretanto, remeto à pesquisa que coordenei em convocação editalícia do Ministério da Justiça, para formular, nesses termos precisos de necessidade de reforma da Justiça, culminando como uma proposta de institucionalização de um Observatório da Justiça. Um resumo compreensivo dessa proposta e seus fundamentos pode ser analisado e está disponível na internet .

Deseja acrescentar algo?

José Geraldo de Sousa Junior – Gostaria de retomar um ponto para o qual venho chamando a atenção nesse tema e que esse constrangedor procedimento revelado pelo Intercept acaba por escancarar. Tal como externalizei em minha coluna Lido para Você publicada semanalmente no Jornal Estado de Direito (RS), quando tratei da publicação do Relatório de Pesquisa conduzida pela Articulação JusDH: na nova ordem constitucional, o Poder Judiciário se vê, assim como toda a institucionalidade estatal e a sociedade, diante de desafios históricos para a reconstrução da sua função social.

De notar, portanto, o tamanho do problema no qual nos situamos nesta complexa relação política entre o desenho institucional da justiça, a democracia e os direitos humanos no Brasil: se por um lado atingimos um estágio político e social, no qual se vislumbra confiar ao Poder Judiciário a função de solucionar ou intermediar conflitos sociais de alta intensidade política, como a efetivação ou proteção contra a violação de direitos humanos, de outro é justamente essa hipótese que desperta o alerta e sérias preocupações acerca da legitimidade e capacidade institucional do Poder Judiciário para lidar com tamanho alargamento político das suas funções.

Ou ainda pior, algo que estamos assistindo agora em nosso próprio país, com a Constituição arguida contra a própria Constituição, para dela extrair-se, com o uso meramente formal de seus enunciados, como por ocasião do afastamento da Presidenta da República, numa aplicação de retórica mobilizadora de engajamentos (sociais, políticos, jurídicos), delirantes de seu necessário fundamento material; na seletividade de decisões envolvendo lideranças de oposição político-partidária; na tipificação criminal do protesto social; na judicialização da política; tudo levando à configuração desse processo como um golpe, sem armas, sem quartelada, mas uma ruptura com a base de legitimidade do sistema constitucional-jurídico, um atentado à democracia, uma forma de traduzir, sem nenhuma sutileza, o Estado de Exceção Democrática, que se vale da lei e da Constituição para esvaziá-las de suas melhores promessas. 

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

João Vitor Santos

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