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No dia 23 de julho deste ano, a Chacina da Candelária completou trinta anos. Ocorrido ainda nos primeiros anos da redemocratização, esse triste episódio, em que oito crianças e adolescentes foram executados à sangue frio enquanto dormiam, teve como autores um grupo que misturava policiais da ativa, ex-policiais e matadores de aluguel. Esse tipo de crime bárbaro, no entanto, apesar de ter se inscrito na memória política e social do Rio de Janeiro nesta ocasião, nunca foi novidade no estado. Pelo contrário. Herdeiro de uma tradição colonial, sobre a qual se adicionaram sucessivas camadas de diferentes formas do autoritarismo, o Rio de Janeiro sempre foi um lugar marcado pelo tratamento brutal dispensado às crianças e adolescentes.
Durante a ditadura militar, jovens pretos e pobres constituíam um dos alvos prioritários de matadores atuando sob a forma de grupos de extermínio ou em empreitadas solitárias locais. Nesse tempo, a tarefa de “limpar as ruas” de tipos indesejáveis – e nesse caso especialmente de pedintes e trombadinhas – constituía um negócio lucrativo para os vigilantes, cujos serviços eram solicitados tanto por modestos comerciantes da Baixada Fluminense como por elegantes donos de hotéis da orla carioca.
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Em 1990, ainda na aurora da redemocratização, esse era um dos mais inquietantes problemas do Rio de Janeiro. À época, por solicitação da Câmara Municipal, o Movimento Nacional de Proteção ao Menor, coordenado por Volmer Nascimento, realizou um levantamento em todas as delegacias do estado e apurou que, somente naquele ano, 445 crianças e adolescentes haviam sido executados no Rio de Janeiro. Esse levantamento, que também foi entregue ao Ministério da Saúde e ao Ministério da Criança, motivou a instauração de uma CPI do Extermínio de Menores na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj).
A essa altura, era promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente, cuja ambiciosa doutrina de proteção integral se chocava frontalmente com a política de licenciosidade letal ainda pungente no modus operandi das instituições e de parte da opinião pública.
Não é coincidência, portanto, que no ano seguinte, em 1991, uma pesquisa divulgada pelo jornal O Globo revelava que ao menos um terço dos policiais militares já havia sido convidado a participar de grupos de extermínio. A mesma pesquisa também apontava que 90% da corporação era contra o ECA e considerava crianças e adolescentes de rua como “bandidos”: “Mostrando revolta contra a legislação, os PMs revelaram o desejo de acentuar a guerra contra as crianças, citadas como bandidos comuns” [O Globo, 9 jun. 1991].
O que distingue a Chacina da Candelária de todas as execuções de crianças e adolescentes até então é o elemento político inscrito em seu modus operandi: ela extrapola o caráter de mera limpeza social característico de outras execuções e assume um viés de resistência violenta, por parte das polícias do Rio de Janeiro, contra o Estado Democrático de Direito e o controle democrático da atividade policial. Esse enfrentamento, contudo, tem início dez anos antes da Chacina da Candelária, em 1983, quando Leonel Brizola iniciava seu primeiro mandato como governador do Rio de Janeiro.
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
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II
Fruto da primeira eleição livre desde o início da ditadura em 1964, a ascensão de Brizola ao governo estadual é marcada por duas medidas singulares que o colocam em rota de colisão com os setores autoritários das polícias: a primeira foi recuperar o controle político sobre as corporações, extinguindo a Secretaria de Segurança, subordinada ao Exército, e criando secretarias estaduais de polícia civil e de polícia militar, sob controle direto do governo estadual.
A segunda medida foi a limitação das operações policiais nas favelas, as quais considerava eivadas de vícios autoritários e incompatíveis, portanto, com uma estrutura de governo democrática. Em paralelo, Brizola também criou uma comissão especial destinada a investigar a atuação de grupos de extermínio, com especial atenção ao caso da Baixada Fluminense.
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Tais ações, contudo, não ficaram sem resposta por parte das forças refratárias à democracia, levando as polícias civil e militar do Rio de Janeiro a um explícito boicote ao governo, caracterizado pela inação ou postergação dos agentes de segurança com relação aos seus deveres funcionais.
Em outras palavras, as polícias faziam “corpo mole”, de maneira que as medidas de Brizola fossem interpretadas pela opinião pública como ações que impediam o trabalho da polícia. Como resultado, Brizola não elege seu sucessor, Darcy Ribeiro, assumindo Moreira Franco.
Brizola retorna ao governo do estado do Rio de Janeiro em 1991, após a performance caótica de Moreira Franco – um governo identificado com a volta daquilo que havia de pior no período autoritário, como o reaparecimento dos grupos de extermínio na Baixada Fluminense. Ainda mais resistente à redemocratização, a reação da polícia ao seu segundo mandato foi muito mais violenta que na gestão anterior.
Nesse sentido, o segundo mandato do governo Brizola foi um período que ficou marcado por uma espécie de “chantagem policial”, no qual as chacinas funcionavam como instrumento de pressão política, com o claro objetivo de desestabilizar o seu governo e garantir que a polícia passasse alheia à reconstrução democrática em vigor no Brasil dos anos 1990.
Ocorria, assim, um duplo enfrentamento: no âmbito local, contra o governo Brizola; e no âmbito federal, contra a Constituição e leis como o Estatuto da Criança e do Adolescente. É sempre bom lembrar, por exemplo, que a Chacina de Acari – quando onze jovens, oito deles menores de idade, foram sequestrados, torturados e assassinados por um grupo de extermínio formado por policiais – ocorreu apenas duas semanas após a promulgação do ECA.
As chacinas de Vigário Geral e Nova Brasília se somam a esses ataques concentrados ao mandato Brizola, que eram traduzidos pela imprensa como expressões da incompetência do próprio governador. Não por menos, seu mandato terminou com uma intervenção federal e danos irreparáveis à carreira política de Brizola e ao próprio conceito de uma política de segurança pública democrática e cidadã. Esse último ponto é crucial para entendermos o Rio de Janeiro tal qual se apresenta trinta anos depois da Chacina da Candelária.
III
Em uma de suas citações mais populares, Mark Twain afirmava que a história nunca se repetia, embora rimasse. A política de segurança pública do Rio de Janeiro é um dos maiores exemplos empíricos dessa formulação. Três décadas atrás, assistíamos incrédulos ao assassinato de crianças dormindo na rua por grupos de extermínio.
Hoje, testemunhamos sem muito alvoroço o assassinato de crianças dormindo em seus próprios quartos durante operações policiais – nossa primeira rima. Foi em 2014, quando a Chacina da Candelária completava 21 anos, que Felipe Rangel Bento Paes, de 3 anos, morreu com um tiro na cabeça enquanto dormia, dentro de sua casa, na favela de Costa Barros, em meio a uma operação policial.
Esse era o ano que marcava o início do descontrole da polícia no estado, com o declínio das Unidades de Polícia Pacificadora, a crise fiscal que explodiria no ano seguinte e a subsequente intervenção federal no Rio de Janeiro. Mas é com a entrada da chapa Witzel/Castro, em 2019, que o descontrole se converte em uma autonomia policial sem paralelo, com a subsequente extinção da Secretaria de Segurança Pública.
Essa autonomia das polícias, que a tornou, na prática, uma instituição paralela ao poder político, teve como resultado uma sequência de anos trágicos em que, segundo dados do Fogo Cruzado, um número recorde de crianças foram assassinadas por policiais no Rio de Janeiro.
Ágatha Félix, de 8 anos, morreu com dois tiros nas costas, quando retornava ao lar depois de um passeio com a mãe, em setembro de 2019. Jenifer Cilene Gomes, 11 anos, foi morta por um tiro nas costas, em Triagem, logo que chegou da escola. Kauan Peixoto, 12 anos, levou três tiros de um policial na Chatuba, quando foi comprar um lanche.
Kauan Rosário, 11 anos, morreu com um tiro em uma operação policial em Bangu. Kauê Ribeiro dos Santos, 12 anos, morreu no Chapadão, em meio a um confronto entre policiais e traficantes. Em 2020, quando o Estatuto da Criança e do Adolescente completava trinta anos, o menino João Pedro foi morto dentro de casa, no município de São Gonçalo.
Durante uma operação policial, sua casa foi alvejada por agentes do Core (Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro), que o mataram com uma rajada de metralhadora. Nas paredes de sua residência foram constatadas marcas de mais de setenta tiros. O assassinato de João Pedro é conhecido por ter sido um dos propulsores da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) das Favelas, que limitou e logrou a observância de cautelas em operações policiais nas comunidades do Rio.
Cautelas que, por sinal, tinham como um dos seus objetivos a proteção da integridade física das crianças, em especial no entorno escolar, frequentemente usados como base durante operações policiais. O caso mais recente é o do menino Djalma de Azevedo, 11 anos de idade, morto por policiais quando estava a caminho da escola, em Maricá, no dia 12 de julho de 2023.
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Não haveria espaço suficiente neste texto caso quiséssemos elencar nominalmente o leque de situações criadas pelas polícias que tiraram a vida de crianças dormindo no seu quarto, a caminho da escola, comprando um lanche, passeando com os pais, brincando no portão de casa, entre outras atividades que em nada, absolutamente nada, têm a ver com segurança pública, mas que são tratadas como se assim o fossem.
Aqui vemos o resultado da Chacina da Candelária, entre outras chacinas do mesmo período, que garantiu que a polícia mantivesse o padrão de atuação dos tempos da ditadura em plena democracia e consagrou o descrédito da legalidade para se lidar com a violência urbana. Nesse sentido, é emblemático que, hoje, executores de chacinas não precisem esconder o rosto com capuz nem que a trama de suas ações se desenrole na obscuridade de um grupo de extermínio.
As operações policiais, e as violações constantes dos princípios democráticos mais fundamentais que lhes caracterizam, deram conta de absorver tal brutalidade e regurgitá-la sob a forma de ações oficiais, de combate ao crime, em que uma criança morta enquanto dorme é apenas uma externalidade negativa dessa guerra contra pobres, negros e favelados.
IV
Segundo recente pesquisa da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, de 1999 até hoje, 15.614 casos de homicídio e tentativa de homicídio contra crianças foram registrados no Rio de Janeiro, sob a forma de inquéritos policiais. Destes, 9.428 casos ainda se encontram na fase de investigação, sem solução aparente. Isso significa que seis em cada dez crimes contra a vida perpetrados contra crianças no Rio de Janeiro permanecem impunes, até que sejam arquivados pelo Ministério Público.
Trata-se de uma situação tão insustentável que, em 2021, a reboque de decisão do pleno do STF no julgamento dos embargos de declaração da ADPF 635, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro promulgou a Lei Ágatha, que obriga o Ministério Público a priorizar investigações de homicídios envolvendo crianças no estado. Essa abjeta indiferença do MPERJ quanto aos assassinatos de crianças é um reflexo pontual do quadro geral da atuação institucional do Ministério Público no que tange ao controle externo da atividade policial. Isto é, não há controle, apenas conivência.
Sucessivas pesquisas realizadas ao longo dessas três últimas décadas apontam uma taxa de pouco mais de 1% de casos de homicídios policiais denunciados pelo MPERJ. Em anos recentes, a instituição passou por diversos constrangimentos, como a primeira condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos, em virtude da inação do MPERJ no caso da Chacina de Nova Brasília; a atuação proativa do STF no controle da letalidade policial no Rio de Janeiro; assim como a própria Lei Ágatha.
Historicamente, representantes do Ministério Público argumentam que a baixa incidência de denúncias nos casos de mortes em decorrência de ação policial reflete não a inação dos promotores públicos, mas sim a péssima qualidade na produção de provas realizada pela polícia. De fato, essa é uma alegação absolutamente verdadeira e uma razão aceitável para não se proceder a uma denúncia.
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O que não é aceitável, no entanto, é que essa justificativa sirva para que o Ministério Público lave suas mãos em relação aos efeitos devastadores das operações policiais no Rio de Janeiro nos últimos quarenta anos. O que não é aceitável, é que a sociedade fluminense pague com a vida de milhares de pessoas por décadas a fio por conta dessa justificativa.
É ainda mais inaceitável que parte substancial dessas mortes prematuras seja de crianças, assassinadas enquanto faziam coisas de crianças – como comprar um lanche, ir à escola, brincar no portão de casa ou dormir no berço dentro do seu quarto. É nesse sentido que a história do Rio mais uma vez rima.
Quando o então governador Leonel Brizola limitou as operações policiais nas comunidades do Rio de Janeiro, em 1983, as razões eram semelhantes às que hoje, quarenta anos depois, motivaram as restrições impostas pelo STF às polícias do Rio, no contexto da ADPF das Favelas: ações brutais contra pretos e pobres sem lastro democrático algum.
Como no passado, as forças de segurança do estado têm se valido de chacinas policiais – as maiores de nossa história – como instrumento de chantagem contra o Supremo Tribunal Federal em específico, e contra as forças democráticas do Rio de Janeiro como um todo. Nesse sentido, a ação por omissão do Ministério Público se soma ao impulso homicida do governo estadual e suas polícias, ampliando ainda mais as dimensões da resistência autoritária que tão profundamente hoje nos desafia.
Contudo, rompendo com rimas históricas que alinhavam contextos separados por quatro décadas, o Rio de Janeiro hoje não precisa se perguntar o que fazer para mudar essa situação.
A resposta, construída ao longo desses quarenta anos por uma grande coalizão de atores da sociedade civil – que engloba familiares de vítimas da violência de estado, movimentos de favela, pesquisadores, juristas, partidos políticos e ONGs de direitos humanos – foi consolidada nas recomendações ao Plano de Redução da Letalidade Policial enviadas ao STF há quase um ano, assim como em parecer técnico de um grupo de trabalho instituído no Conselho Nacional de Justiça.
Neles residem a moldura legal que finalmente enquadra as polícias civil e militar em uma paisagem verdadeiramente democrática, na qual a vida é o valor absoluto de uma efetiva política de segurança pública. Todas as vidas, sem exceção.
Daniel Hirata, Diogo Lyra, Carolina Grillo e Renato Dirk são coordenadores do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI/UFF).
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