Em dezembro de 1926, Julio Antonio Mella – que um ano antes havia participado na fundação do Partido Comunista de Cuba, junto a Carlos Baliño, por sua vez companheiro de luta de José Martí – propunha a necessidade de desentranhar o milagre – assim parece hoje – da cooperação estreita entre o elemento proletário das oficinas da Flórida e a burguesia nacional: a razão da existência de anarquistas e socialistas nas filas do Partido Revolucionário [Cubano][i]
Esse problema continua sendo do maior interesse para os movimentos que buscam culminar em nossa América a obra das revoluções de independência do início do século XIX. Além das categorias que permitem propô-lo- como as de formação econômico-social e de interesse geral da sociedade -, é imprescindível buscar as raízes do aparente milagre na própria vida das sociedades, e na experiência pessoal daqueles que lutam por transformar a realidade.
No caso que intrigava Mella desempenhou um importante papel o aprendido por Martí, na perspectiva de radical humanismo, sobre a vida e as lutas dos trabalhadores nos Estados Unidos ao longo de seu exílio nesse país entre 1881 e 1895. E nesse aprendizado desempenhou um papel, menos conhecido do que deveria, uma mulher: a dirigente anarquista Lucy González Parsons.
Ela nasceu em 1853 em Waco, Texas, filha da afro-mexicana Marie Gather e o mestiço indígena Creek John Waller. Em 1871 se casou com Albert Parsons, e em 1873 ambos se mudaram para Chicago, onde se envolveram em organizações anarquistas do movimento operário. Ali, Lucy se converteu em conhecida jornalista e oradora.
Em 1886, Albert Parsons, junto com os imigrantes alemães August Spies, Adolf Fischer, Louis Lingg e George Engel foram condenados à morte por um atentado terrorista ocorrido durante uma manifestação operária na praça de Haymarket, em demanda pela jornada de oito horas. Os protestos que desatou sua execução em 11 de novembro de 1887 conduziram a que fosse estabelecido o 1º de maio – data em que ocorrera aquela manifestação – como o Dia Internacional dos Trabalhadores. Ao longo do julgamento, da condenação, da execução e das lutas subsequentes dos operários de Chicago, Lucy Parsons desenvolveu uma ativa campanha pela absolvição e pela memória dos companheiros.
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Lucy González Parsons
Martí, como sabemos, cobriu para distintos meios hispano-americanos o crescimento do movimento operário nos Estados Unidos em meados da década de 1880, que culminou nos acontecimentos de 1º de maio. Os textos que dão conta desse processo revelam também a crescente tomada de consciência do próprio Martí sobre as razões de fundo das lutas dos trabalhadores, as contradições de seu movimento, e a vasta e brutal repressão de que foram objeto.
A primeira reação de Martí foi de repúdio à violência que ele atribuiu à influência do anarquismo na região de Chicago. E nessa primeira reação emerge Lucy Parsons, descrita como “uma mulata [que] marcha à cabeça das procissões ondeando com gesto de possuída uma bandeira vermelha” enquanto seus camaradas armazenavam armas e preparavam bombas para enfrentar a polícia.[ii]
Depois da prisão dos anarquistas, Lucy Parsons emerge de novo na crônica martiana. Só um dos presos “casado com uma mulata que não chora”, diz Martí, “é norte-americano”, e descreve “a mulata Parsons”, dizendo que é “implacável e inteligente” como seu esposo, e “que não pisca nos maiores apertos, que fala com feroz energia nas juntas públicas, que não se desmaia como as demais, que não move um músculo do rosto quando ouve a sentença feroz.”[iii]
A partir de então, as crônicas de Martí evidenciam uma transformação que o levará a criticar com energia o julgamento manipulado e a execução vingativa dos anarquistas de Chicago. E nessa transformação, a valentia pessoal e o talento oratório de Lucy Parsons desempenharão um papel importante ainda pendente de investigação. Assim, por exemplo, nos diz:
Em nenhuma igreja da cidade [de Nova York] houve ontem domingo um sacerdote mais fervente, nem uma congregação mais atribulada que em Clarendon Hall, o salão dos desterrados e dos pobres. Pugnava em vão a concorrência de fora por entrar na sala superlotada, onde falava aos anarquistas de Nova York, alemães em sua maior parte, Lucy Parson, a “mulata” eloquente. Lucy Parson, a esposa de um dos anarquistas condenados à forca em Chicago.[iv]
Ela, agrega,
Sabe de evolução e revolução, e de forças médias, de tudo o qual fala com capacidade de economista tanto em inglês como em castelhano. “A anarquia está”, segundo ela, “em seu estado de evolução; depois virá a revolução, se é imprescindível: e depois a justiça”. “A anarquia não é desordem, mas sim uma nova ordem”.
E sintetiza assim o que Lucy Parsons propõe:
Pedimos a descentralização do poder em grupos ou classes. […] A terra será possuída em comum, e não haverá por conseguinte renda, nem juros, nem ganhos, nem corporações, nem o poder do dinheiro acumulado. Não pesará sobre os trabalhadores a tarefa brutal que hoje pesa. As crianças não se corromperão nas fábricas, que é o mesmo que corromper a nação. Mas irão aos museus e às escolas. Não se trabalhará desde o nascer do sol até o crepúsculo e os operários terão tempo de cultivar sua mente e sair da condição de besta em que vivem agora. [E] não se amontoarão capitais loucos, que tentam a todos os abusos; não haverá dinheiro de sobra com que corromper os legisladores e os juízes; não haverá a miséria que vem do excesso da produção, porque só se produzirá em cada ramo o necessário para a vida nacional.[v]
A partir daqui, a que ondeava uma bandeira vermelha “com gesto de possuída” se transfigura em uma pessoa à qual dizem mulata “por sua cor acobreada”, que tem o cabelo ondulado e sedoso; a testa clara e alta pelas sobrancelhas; os olhos grandes, afastados e reluzentes; os lábios cheios; as mãos finas e de linda forma”, e fala “com voz suave e sonora, que parece nascer de suas entranhas e comove os que a escutam”. E o faz “com todo o brio dos grandes oradores”, com uma eloquência poderosa que lhe vem “de onde vem sempre, da intensidade da convicção”.
“Às vezes sua palavra levanta bolhas, como um látego; de repente rompe em um arranque cômico, que parece roído com lábios de osso, porque é frio e duro, sem transição, porque o vasto de sua pena e crença não a necessitam, se levanta com estranho poder patético, e arranca à vontade soluços e lágrimas. […] Quando acabou de falar essa mestiça de mexicano e índio, todas as cabeças estavam inclinadas, como quando se reza, sobre os bancos da igreja, e parecia a sala lotada um campo de espigas encurvadas pelo vento.”[vi]
Assim a mulata se transfigura na “apaixonada mestiça em cujo coração caem como punhais as dores da gente operária”, que nas manifestações costumava falar de um modo tal que “com tanta eloquência, tosca e flamejante, não se pintou jamais o tormento das classes abatidas; raios os olhos, metralha as palavras, fechados os dois punhos, e depois, falando das penas de uma mãe pobre, tons dulcíssimos e fios de lágrimas.”[vii]
Seis anos depois dos acontecimentos que puseram Martí em contato com Lucy Parsons, em um artigo para El Partido Liberal, do México, encontramos a última referência à dirigente anarquista nas crônicas norte-americanas de Martí:
Um diário diz: “Não é possível deixar de notar que aumenta nas massas o culto pelos anarquistas enforcados em Chicago: à sombra da forca, em Chicago mesmo, foram em procissão os operários a visitar as sepulturas, e levava a bandeira vermelha a mulata eloquente, a viúva do americano Parsons.”[viii]
Lucy Parsons levou essa bandeira, sem claudicar nunca em suas convicções, até falecer em 1942, 47 anos depois que Martí caíra em combate. Descansa no Cemitério Forest Home, em Chicago, perto do monumento dedicado aos mártires do 1º de maio. Pátria, na verdade, é humanidade.
NOTAS:
[i] “Glosas al pensamiento de José Martí. Un libro que debe escribirse”. Guanche, Julio César (compilador), 2009: Julio Antonio Mella. Ocean Sur, México, DF, p. 73.
[ii] “Correspondência particular para El Partido Liberal.” El Partido Liberal, México, 29 de maio de 1886. En los Estados Unidos. Periodismo de 1881 a 1892. Casa de las Américas, La Habana, Cuba, 2003, p. 604.
[iii] “El proceso de los siete anarquistas de Chicago.” La Nación, Buenos Aires, 21 de octubre de 1886. En los Estados Unidos. Periodismo de 1881 a 1892. Casa de las Américas, La Habana, Cuba, 2003, p. 722 y 726.
[iv] “Correspondência particular para El Partido Liberal.” El Partido Liberal, México, 7 de noviembre de 1886. En los Estados Unidos. Periodismo de 1881 a 1892. Casa de las Américas, La Habana, Cuba, 2003, p. 738.
[v] “Correspondência particular para El Partido Liberal.” El Partido Liberal, México, 7 de noviembre de 1886. En los Estados Unidos. Periodismo de 1881 a 1892. Casa de las Américas, La Habana, Cuba, 2003, p. 738 – 739.
[vi] “Correspondência particular para El Partido Liberal.” El Partido Liberal, México, 7 de noviembre de 1886. En los Estados Unidos. Periodismo de 1881 a 1892. Casa de las Américas, La Habana, Cuba, 2003, p. 739.
[vii] “Un drama terrible.” La Nación, Buenos Aires, 1 de enero de 1888. En los Estados Unidos. Periodismo de 1881 a 1892. Casa de las Américas, La Habana, Cuba, 2003, p. 963.
[viii] “Correspondência particular de El Partido Liberal. La cuestión social y el remedio del voto.” El Partido Liberal, México, 11 de diciembre de 1889. En los Estados Unidos. Periodismo de 1881 a 1892. Casa de las Américas, La Habana, Cuba, 2003, p. 1326.