Pesquisar
Pesquisar

Carnaval, desengano: quando os sonhos tomam as ruas de Belo Horizonte

Em dez anos, Belo Horizonte tornou-se uma das referências das novas festas de rua no Brasil
Roberto Andres
Outras Palavras
Belo Horizonte

Tradução:

Parece que foi ontem, mas faz dez anos. Verão de 2009 em Belo Horizonte, calor e chuva. Em uma festa de aniversário, a conversa chega em o que fazer no carnaval. Por quê não fazemos um bloco em BH, alguém perguntou.

Houve quem risse. Naquela época, só ficava na cidade quem queria fugir da folia. A dúvida se haveria quórum era real. Ainda assim, no embalo etílico, marcamos o dia do bloco e as providências: chamar os amigos músicos, pensar o trajeto, criar um blog (sim, naquela época usava-se blog).

No domingo do carnaval, me lembro de ir para a concentração do bloco com um frio na barriga. E se não tivesse ninguém? Saberíamos tocar? Seríamos mesmo capazes de fazer carnaval na terra que já foi chamada de túmulo do samba?

Éramos poucos, uns 30, e saracoteamos por ruas desertas com bastante liberdade rítmica. As pessoas olhavam das janelas e estranhavam. Alguns desciam. “Quem descia, não voltava mais para casa”, como bem lembrou um amigo sobre este dia.

O bloco perambulou por becos e lotes vagos, adentrou bancos, postos de gasolina e sorveterias, enfrentou a chuva torrencial e teve seu fim em algum boteco.

O sentimento era de euforia, por termos conseguido tornar possível algo que parecia distante. Sim, era possível retomar a rua, estar junto com amigos, vestir fantasias, cantar e dançar, tomar banho de mangueira, caminhar com alegria. “Inventar a maravilha de amanhã”, diz uma cançãoque marcou esta geração.

A partir dos três blocos que saíram naquele ano, o carnaval de BH cresceu organicamente: 6 em 2010, 11 em 2011, algumas dezenas em 2012 e assim por diante. Hoje são centenas de blocos, com as propostas mais variadas, uma festa diversa com muita autonomia nas pontas.

Em dez anos, Belo Horizonte tornou-se uma das referências das novas festas de rua no Brasil

Outras Palavras
É preciso sonhar com outras cidades possíveis, vivenciar pequenas revoluções tão necessárias para nosso futuro. Foto Priscila Musa

A cidade mudou, com o carnaval. Passamos a perceber mais as ruas, a cidade, a andar a pé – e isso contaminou a vida de muita gente. Passamos a entender que festa é política e que celebrar com os outros é das grandes belezas da vida.

Tudo isso não se deu sem conflitos. Nos primeiros anos, a Prefeitura tentou reprimir a folia. Teve pirata e marinheiro que levou bomba de gás lacrimogênio da polícia.

Como a festa resistia e crescia, o poder público começou a investir em publicidade, palcos, etc. Isso deu um impulso que, para muitos, foi desproporcional à capacidade de absorção da cena cultural da cidade.

Seja como for, estamos entre os maiores carnavais do Brasil. E o desafio é enorme. O poder público tem o importante papel de prover infraestrutura (reorganizar o trânsito, instalar banheiros, coletar lixo, etc.), mas deve parar por aí. No momento em que os foliões perderem a liderança da festa, este carnaval começa a morrer.

Afinal, o que deu força vital à folia foi justamente o que nela há de desobediência, de mudança do estado atual das coisas: tomar o centro das ruas, vestir roupas inimagináveis, andar por lugares onde não se andava.

Certa vez ouvi de um sargento da Polícia Militar que “estávamos colocando a vida de milhares de pessoas em risco por um capricho”. Isto foi em 2018 e o capricho era atravessar um túnel com um bloco.

Eu sabia que o risco não existia, por conhecer a legislação sobre eventos abertos, por saber que blocos passam em túneis em outras cidades – mas aquela fala me deixou um mal-estar. Ao fim, é isso que o poder busca tanto: tirar a alegria, nos deixar tristes, amuados. E nos fazer pensar que nossos desejos mais profundos são caprichos.

Não, senhor oficial, ocupar com nossos pés um espaço em que só passam carros não é um capricho, mas um movimento de transformação. É sonhar com outras cidades possíveis, vivenciar pequenas revoluções tão necessárias para nosso futuro. Aquele bloco passou no túnel sem nenhum incidente – a não ser a emoção que aflorou em cada um daqueles milhares de foliões que lá estavam.

Pela primeira vez em uma década, não estarei em BH no carnaval. O desejo que envio de terras mais frias é que cada foliã ou folião, cada bloco, cada bateria, possa viver uma desobediência alegre, que leve a fundo os desejos mais inusitados, que faça da folia o grande momento de invenção que ela é, apesar de todas as tentativas de tolhê-la. Que seja linda a festa.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Roberto Andres

LEIA tAMBÉM

Coletiva dia da consciência negra
Frei Betto | Deus é negro
Comuna de Paris, a Utopia
Comuna de Paris, a utopia
Com Trump, EUA vão retomar política de pressão máxima contra Cuba, diz analista político
Com Trump, EUA vão retomar política de "pressão máxima" contra Cuba, diz analista político
50 anos da Cadernos do Terceiro Mundo uma nova ordem informativa em prol do Sul Global
50 anos da Cadernos do Terceiro Mundo: uma nova ordem informativa em prol do Sul Global