Como um exercício indispensável de sobrevivência emocional fomos adaptando nosso mundo interior com o propósito de proteger-nos contra a força das circunstâncias. Vemos a miséria e a dor de outros – e muitas vezes as nossas – com um filtro contraditório de resignação e otimismo, único recurso possível para proteger-nos de emoções demasiado intensas e devastadoras. Assim vamos deixando para trás o que é potencialmente letal para nosso equilíbrio interno. Por isso, talvez, nos convertemos em uma espécie de “processadores” cujo objetivo é seguir em frente, não ver o que nos toca de maneira direta e abstrair-nos de qualquer experiência traumática.
Em países como os nossos, com passados e presentes carregados de violência e destruição, este mecanismo vem instalado desde a infância. Dotado de um véu de indiferença que muitos chamam de “resignação cristã” ou “a vida é assim mesmo” nos acostumamos a tolerar o abuso e a vassalagem dos mais fracos como parte da tradição e dos costumes.
Nesse conglomerado de seres indefesos diante de sistemas adversos ao gozo de seus direitos humanos elementares estão as mulheres, as meninas, crianças e jovens como os principais atores desta comédia patética, uma comédia cujo roteiro nos induz a alterar a nossa escala de valores para acomodar-nos o melhor possível no estrato que nos cabe, sempre com a ambição de subir ao superior.
Deste modo, passam por nosso lado, sem deixar marcas, acontecimentos cujo impacto deveria obrigar-nos a reagir, participar e dedicar um esforço adicional para fazer de nossa sociedade um conjunto de seres humanos e não um montão de ilhas blindadas contra a realidade.
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Será isto um mecanismo de proteção emocional, ou com essa atitude carente de valor humano
O mecanismo da negação foi aperfeiçoado de tal modo que depois de algum tempo – e com o correspondente abrigo emocional da negação – tanto as vítimas inocentes dos conflitos armados como aquelas condenadas à fome e à miséria pelo abuso político e econômico das elites deixam de ser pessoas para converter-se em uma massa abstrata e anônima, cujo destino supostamente estava marcado por forças superiores ou por deuses inclementes.
Que excelente recurso o da abstração!
Se não contássemos com esse maravilhoso truque da mente, talvez não tivéssemos podido suportar a visão das meninas calcinadas diante da vista impávida dos policiais em um “lar seguro” do Estado da Guatemala. Tampouco teríamos aguentado o relato das mulheres ixiles violadas pelos soldados durante o conflito armado interno desse país. Ou, para ver mais de perto, se não fosse pelos filtros contra a emoção, os mortos que se acumulam nas ruas haitianas ou palestinas nos impediriam de desfrutar o almoço dominical.
Mas não. Graças à nossa valiosa capacidade para obliterar tudo aquilo que nos causa dor ou apenas mal-estar, fechamos o acesso à solidariedade natural da espécie humana e condenamos “os outros” a viver sua vida sem dedicar-lhes um só pensamento.
Será isto um mecanismo de proteção emocional, ou com essa atitude carente de valor humano nós nos condenamos a ser as próximas vítimas nessa escalada de indiferença?
Ao não nos envolver, não participar e deixar que outros decidam, abandonamos um princípio fundamental de toda sociedade organizada e violamos uma das regras fundamentais do sistema democrático ao qual aderimos.
A realidade atual, portanto, nos obriga a descerrar os véus e observar, sentir e compreender a origem, as causas e as possíveis consequências de fechar os olhos e deixar passar.
*Colaboradora de Diálogos do Sul da Cidade da Guatemala
Tradução: Beatriz Cannabrava