“Virar as costas para a política e deixar a bandidagem corporativa e financeira rolar solta, evidentemente, não resolve. Temos de retomar as rédeas do desenvolvimento”. É o que diz o economista, professor titular de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Ladislau Dowbor* no prefácio do livro “A Governabilidade impossível — Reflexões sobre a partidocracia brasileira”.
O livro, escrito por Paulo Cannabrava Filho, será lançado nesta sexta-feira (28), às 18h30, em São Paulo, na Pequena Livraria da Alameda, localizada na Rua 13 de Maio, 353, na Bela Vista. É possível adquiri-lo aqui.
Ao longo de suas 324 páginas, a obra faz uma análise do problema da governabilidade no país. Como sintetiza Dowbor: “A ampla retrospectiva que Paulo traz no livro nos permite ter um recuo relativamente ao caos e à gritaria que hoje caracterizam a política no Brasil. Em nome de ‘consertar o país’, estão destruindo a democracia, entregando petróleo, terras e empresas, liquidando direitos dos trabalhadores, desarticulando políticas sociais básicas nas áreas de saúde e educação — enfim, gerando uma grande farra que articula oligarquias nacionais e interesses transnacionais, não mais contidos pelas instituições, por regras do jogo democráticas”.
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Reprodução/ YouTube
Daí a necessidade da análise trazida por Cannabrava: “Mais que um livro de “política”, trata-se aqui de uma ferramenta para entendermos melhor as engrenagens do poder, e nos organizarmos para os inevitáveis enfrentamentos”, conclui Dowbor.
Confira o prefácio:
Paulo Cannabrava tem história. Faz parte de uma geração de batalhadores que, quando veem surgir nas ruas personagens da classe média adornados de símbolos nacionais e munidos de panelas, quando são bombardeados nas mídias por mensagens de empolada indignação e de elevada moralidade, quando se lhes explica que a Constituição é estreita demais para os grandes interesses, e que, portanto, temos de dobrar a legalidade — reagem não com entusiasmo, mas com memória.
Quantas vezes já viram e já escutaram isso, sabendo que atrás dos discursos vêm a liquidação da democracia, o aumento dos privilégios e o desmonte do processo de desenvolvimento. Os movimentos que levaram Getúlio ao suicídio, as tentativas de golpe contra Juscelino, o golpe com uniformes militares em 1964, o golpe com gravatas e aparências parlamentares que hoje vivemos, todos se travestiram de elevada ética e dignidade. Quando sopram esses ventos, pessoas como Paulo Cannabrava já reconhecem, pelo cheiro, a podridão que avança. Esse filme, nós já vimos. Esses argumentos, nós já ouvimos. E as consequências desastrosas já as vivemos.
A ampla retrospectiva que Paulo traz no livro “A Governabilidade impossível – Reflexões sobre a partidocracia brasileira” nos permite ter um recuo relativamente ao caos e à gritaria que hoje caracterizam a política no Brasil. Em nome de “consertar o país”, estão destruindo a democracia, entregando petróleo, terras e empresas, liquidando direitos dos trabalhadores, desarticulando políticas sociais básicas nas áreas de saúde e educação — enfim, gerando uma grande farra que articula oligarquias nacionais e interesses transnacionais, não mais contidos pelas instituições, por regras do jogo democráticas. Daí o título do livro se referir à governabilidade. Quando se violam instituições, prevalece apenas a lei do mais forte. A máfia sempre soube se vestir com ternos elegantes, mas os procedimentos são simplesmente mafiosos. Os discursos são de ordem, mas o efeito é o caos.
Reprodução da Capa do livro que será lançado por Paulo Cannabrava Filho.
O irônico é que hoje sabemos o que funciona: trata-se de organizar as instituições em função do bem-estar das famílias. Isso passa pelo aumento da renda da população em geral, pois a demanda ampliada estimula investimentos e produção, o que por sua vez aumenta o emprego. Tanto o consumo das famílias como a atividade empresarial geram mais receitas públicas, que permitem ao Estado financiar infraestruturas e políticas sociais, em particular saúde, educação, segurança. E a roda gira, é tão simples assim. Não é a austeridade e sim a redistribuição que permitiu a recuperação da economia americana atolada na crise dos anos 1930 (New Deal), que permitiu a prosperidade do pós-guerra da Europa (Estado de Bem-Estar), que assegurou o milagre da Coreia do Sul, ou ainda a dinâmica dos países nórdicos. A própria força econômica da China apoia-se essencialmente na ampliação do mercado interno. Fazer o bem para as pessoas faz bem para a economia, e para isso deve servir a política. Organizar a economia em torno dos interesses estreitos das oligarquias nunca resolveu nada. Vestir esses interesses do manto do interesse nacional é uma fraude.
A desigualdade é o mal maior. Em termos éticos, é indefensável, pois manter amplas esferas da população na miséria, quando temos tantos recursos, é vergonhoso. Ter voltado a aumentar a mortalidade infantil num país que tem a riqueza que temos é absurdo. Estamos num país que produz, em termos de bens e serviços, R$ 11 mil por mês por família de quatro pessoas, o que permitiria a todos viverem de maneira digna e confortável, mas 1% das famílias do país tem mais patrimônio do que os 95% restantes, e seis famílias têm mais do que 100 milhões de brasileiros na base da população. Essas minorias produziram tudo isso? Nem os pobres merecem a pobreza a que são reduzidos, nem os ricos merecem o volume de riqueza de que se apropriam. Reduzir radicalmente a desigualdade não é questão de esquerda ou direita, é questão de decência humana, e de inteligência política.
É também questão de inteligência social. Nenhuma sociedade pode funcionar adequadamente com um nível tão profundo de desigualdade. Somos um país onde se comete 64 mil assassinatos por ano, onde a polícia mata 14 pessoas por dia, onde se aprisiona um ex-presidente sem provas, justamente para tentar conter as pressões sociais por uma vida mais decente para todos. Não estamos mais na idade média, na era da escravidão, na era feudal. A massa de pobres no Brasil e no mundo é hoje constituída por pessoas que são pobres mas não burras, e que estão putas da vida de não poderem comprar um remédio para o filho doente, de não poderem assegurar um hospital decente para a esposa parir, de não poder ter uma escola adequada quando sabem que o futuro dos filhos hoje depende dos conhecimentos adquiridos. Com a massa de pobres que temos, a paz social, o ambiente construtivo, e uma política equilibrada não poderão funcionar no quadro de tanta desigualdade. Alguém precisará informar as nossas oligarquias de que estamos no século 21. E os pobres já estão informados de que os recursos existem, de que não é por falta de recursos que sofrem, e sim pela sua concentração em mãos incompetentes. Não há democracia política que funcione sem uma base de democracia econômica.
E a desigualdade não funciona, evidentemente, em termos econômicos. Um bilionário que aplica R$ 1 bilhão em algum papel financeiro com modesto rendimento de 5% ao ano, estará ganhando R$ 137 mil ao dia. Como não conseguirá gastar tanto a cada dia, o grosso do ganho é automaticamente reaplicado, gerando o chamado snowball effect, efeito bola de neve. Sem precisar produzir nada, em poucos anos terá as fantásticas fortunas que hoje alimentam o tal do 1%.
O grande dinheiro apenas marginalmente resulta em investimento produtivo, pois as aplicações financeiras rendem mais, e exigem menos esforço. É o que tenho chamado de Era do Capital Improdutivo. Gera poderosos rentistas que desviam recursos financeiros da produção, mas que também se apropriam da política, fechando o círculo: é a ruptura institucional, propõe o autor, tornando a governabilidade impossível. O parasita consome o corpo que o alimenta. Killing the Host, matando o hospedeiro, é o título sintético e explícito de uma análise em profundidade publicada por Michael Hudson.
A tragédia do capitalismo parasitário, aliás título também de um livro recente de Zygmunt Bauman, é de não saber se conter, não por maldade, mas por natureza. Os que tentarem ser mais comedidos serão simplesmente engolidos por outros. A lógica é sistêmica. E a vítima não é apenas a sociedade. O aquecimento global, a liquidação da cobertura florestal, a poluição da água doce e dos mares, a liquidação da biodiversidade — perdemos 52% dos vertebrados do planeta em 40 anos — a multiplicação de bactérias resistentes pelo uso irresponsável de antibióticos, a esterilização do solo agrícola e tantos outros impactos do uso predatório e irresponsável dos recursos naturais fazem com que deixemos para os nossos filhos uma tragédia planetária. Este sistema não está funcionando nem para a humanidade, nem para a natureza.
Virar as costas para a política e deixar a bandidagem corporativa e financeira rolar solta, evidentemente, não resolve. Temos de retomar as rédeas do desenvolvimento. A equação a resolver é simples: estamos destruindo o planeta que nos nutre, em proveito de uma minoria que insiste em aprofundar o drama. Ou seja, temos de proteger o planeta, e assegurar o equilíbrio social. Isso envolve o resgate do controle dos recursos, assegurando que sejam utilizados para financiar as tecnologias e os processos produtivos sustentáveis, e envolve também a inclusão produtiva e retomada do desenvolvimento para reduzir a desigualdade. Ou seja, temos de resgatar as instituições e a governabilidade que permitam que o processo decisório sobre o uso dos nossos recursos seja orientado pelas prioridades reais, pelo que realmente importa. No nosso caso, um país socialmente equilibrado, ambientalmente sustentável, e economicamente viável. Nenhuma ditadura, bem ou mal disfarçada, poderá assegurar esse caminho. Temos de retomar e, inclusive, aprofundar formas democráticas de decisão sobre o nosso futuro.
Na realidade, mais do que uma crise gerada por uma nova leva de mafiosos — oligarquia que por razões misteriosas chamamos de elite — uma crise civilizatória muito mais profunda. Ao traçar o processo histórico de formação da nova direita, da expansão do neoliberalismo, de como os interesses da oligarquia foram se estruturando em partidos políticos e deformando as eleições, incluindo aqui o papel da mídia, do judiciário, dos bancos e outros atores centrais do processo político, Cannabrava abre uma perspectiva muito mais clara para entender os nossos desafios atuais. Mais que um livro de “política”, trata-se aqui de uma ferramenta para entendermos melhor as engrenagens do poder, e nos organizarmos para os inevitáveis enfrentamentos.
* Ladislau Dowbor é economista, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), fundador e da equipe de colaboradores da Revista Diálogos do Sul.