Antes de apresentar prognósticos para o difícil período que se inicia, desejo frisar que entrei para aquela parcela da população, que desde a Revolução Francesa de 1789, denomina-se esquerda por indignação moral e estética, não por conta de raciocínios dialéticos ou por desígnios históricos. Eu o fiz também pelo horror e pelo nojo infinito aos homens que exploram sem limites outros homens, que os manipulam, que os corrompem, que os massacram.
Meti-me porque os pobres, os desvalidos me constrangem e doem profundamente por serem considerados socialmente supérfluos, desnecessários, criados pela ganância e pela sordidez daqueles menos de 1% da humanidade que em tudo mandam, que quase tudo consomem, num mundo de perpétuas novidades que simplesmente se dissolvem no ar. Mantive-me para sempre na esquerda por arderem profundamente em minha alma os preconceitos que consideram inferiores os seres ditos diferentes das normas.
À bem da verdade, mesmo em meus tempos de “maior ortodoxia”, tão distantes, nunca tive crença muito forte no materialismo dialético e menos ainda na inevitabilidade da História, pois em quase setenta anos de vida vivida e algumas centenas estudadas, nada, absolutamente nada, se mostrou inevitável. A previsibilidade é ainda menos preponderante que o acaso. E, para não faltar com a verdade ao que sinto, nem mesmo o progressismo se mostrou sempre benéfico para o ser humano; desde jovem lhe torci o nariz, e creio mesmo que muitas vezes ele tenha sido, sim, ferramenta para acorrentar os homens à servidão.
Olhando para um passado muito distante, sinto que os gregos possuíam em certa medida graus de humanidade similares e, mesmo, superiores ao do homem pós-moderno. O que se desenvolveu nos últimos dois milênios foi antes de nada a tecnologia, a capacidade do homem de transformar e desfigurar a natureza, em função de seus interesses. Daí que, no meu entender, o sentido da importância do progresso material para mim foi esplendidamente definido por W. Benjamin, quando cotejado com a excelente metáfora do “Anjo da História”, que Paul Klee desenhou no “Angelus Novus”:
“O Anjo da História representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O Anjo da História deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruínas sobre ruínas e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos Progresso.”
Don Quixote. Picasso
Quando ingressei na esquerda, e o fiz para valer há mais de meio século, ainda se tinham belos ideais, feitos gloriosos, crença firme no “progresso inevitável da humanidade”, que nos conduziria a uma Jerusalém não cristã, toda ela igualitária e solidária. Esteticamente, por outro lado, ser de esquerda significava trazer em cada um de nós uma mensagem libertadora, juntar-se aqueles que professavam uma ideologia gregária, coletiva, regeneradora do homem e de suas perversões homicidas e suicidas. Para tanto, ser de esquerda era, de todo modo, pensar-re-pensar o mundo e a inserção de si mesmo nele, algo muito auspicioso para uma época em que ser jovem era romper com as tradições, revoltar-se e, para poucos, tornar-se um revolucionário, correndo livremente todos os riscos da opção.
Isto foi o meu tempo, o da segunda metade do século XX e da transição para o XXI. Depositei minhas ilusões no “socialismo real”. Acreditava que na U.R.S.S. construía-se o “homem novo”. Mentira. A ditadura imposta por Stalin destruirá não somente os homens que haviam realizado o Outubro de 1917, mas também distorcera seus papéis e seus ideais. Os antigos revolucionários que não entregaram suas cabeças ao cutelo tornaram-se cúmplices da tirania, burocratas e, muitas vezes, também assassinos. Em 1989 desmoronou-se tudo aquilo que moralmente já havia se desintegrado há décadas.
Depois, a China. O excelente Mao libertador também foi o inventor da estupidez desabrida e castradora da “Revolução Cultural”, que aplainou o caminho para a servidão em um Capitalismo de Estado, onde operários que hoje trabalham por 140 U$ por mês, vivem em “cubículos” de 6 metros quadrados. Lá, em não havendo dissidência do pensar, tem-se desenvolvido o “homo tecnus” em todo seu exponencial! E este potencial jamais visto de crescimento fará que em dez anos tenhamos a China como a maior potência militar- industrial e tecnológica mundial. Para os revoltados e contestadores que, por acaso, o sistema gere, sempre houve e haverá uma “Praça da Paz Celestial”.
Restava a Revolução Cubana. Pobre Cuba, entre duas potências mundiais, esmagada, sempre buscou alguma autonomia auxiliando todo e qualquer foco de resistência nas Américas e na África, única maneira dela mesma não se isolar politicamente no mundo. Mesmo fechando os olhos para os massacres da democracia, que foi o caso da invasão da Checoslováquia pelas tropas Soviéticas, de certo modo fizeram milagres aqueles cubanos. Como contraponto ao sacrifício da liberdade imposta ao povo, entregaram educação e saúde às bocas famintas. Hoje, no abandono real do socialismo, começam a despertar oportunidades da criação de futuros milionários ancorados ao Partido, tal qual ocorreu na China pós- revolução industrial e na Rússia no desmoronar do comunismo.
Na virada do século XX para o XXI, partidos políticos que tiveram suas origens na esquerda armada e desarmada, nos movimentos sociais ou nas lutas de libertação nacional, chegaram ao poder em quase todos os países da América e da África. Estiveram por uma década ou mais no comando político de democracias formais (alguns ainda se mantém como ditaduras) e desmoronaram essencialmente por esquecerem suas raízes, buscarem suporte no que havia de mais degradado na política tradicional e caminharam para a falência ética. E em seu monumental esfacelamento provocaram e provocam crises políticas, sociais e econômicas tremendas. As forças mais reacionárias, no seu vácuo e no ódio que camadas extensíssimas das classes médias lhes devotaram, abocanharam o poder e, rapidamente, estão fazendo escoar pelo esgoto todas as pequenas conquistas e os avanços sociais de quase duas décadas.
Por outro lado, seria um erro crasso cingirmos essa análise mais que sintética a determinados países periféricos do capitalismo. Em todo o mundo, a direita mais cafajeste, preconceituosa e oportunista, cresce. Pouco resta da democracia representativa e a imagem mais bem acabada do neoliberal-fascismo é Donald Trump, a contrapartida de Putin, um czar pós-moderno. O mundo se afigura despudoradamente como o dos mais fortes, dos mais velhacos e espertos. Nesta medida, o Estado do bem-estar social e os pactos democráticos do pós- guerra se encontram ou já desmantelados ou em vias de desaparecimento.
Nesse momento, paro, reflito e tento condensar os meus prognósticos para 2019 e os anos vindouros. Puro exercício de realismo com uma ponta de utopia? E por que não? De toda forma, precisamos aprender a pensar em um mundo líquido, onde as coisas se passam sem compromissos fortes com a verdade, em que tudo pode ser, e, até mesmo, pode não ser. Resumindo:
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Vejo a sociedade brasileira como profundamente dividida no que concerne à sua visão do país e do futuro. Há fraturas profundas e expostas na sociedade brasileira. Há setores da população com uma vocação conservadora imensa; eles não integram necessariamente uma classe específica, embora as chamadas “classes médias”, ascendentes ou descendentes, estejam bem representadas ali. Grande parte da chamada sociedade brasileira — a maioria, infelizmente — já se sente satisfeita sob um regime autoritário, e por isso elegeu Bolsonaro, numa forma de ampliação do autoritarismo, do Estado policialesco e de destruição de todas as formulações mais democráticas e populares dos anos passados.
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Repetiu-se por décadas que o povo brasileiro é “cordial”, amante da liberdade, da igualdade e da fraternidade, uma ilusão que é mais que perigosa. Nosso povo tem-se demonstrado ser fraturado, dividido, violento, apto para ser dirigido por “pastores” que lhes prometem lotes de terra seguro, embora nos céus. Na ausência do Estado, as comunidades mais pobres são entregues à exploração e ao domínio dos paramilitares, que constitui o termo correto para as milícias com fortes elos com os aparelhos de segurança do Estado, pois no fundo, são uma das formas do crime organizado ancorado no narcotráfico e com ele se interpenetram.
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O Brasil permanece uma sociedade visceralmente escravocrata, renitentemente racista, e moralmente covarde, machista e misógina. Enquanto não acertarmos contas com esse passado não iremos para lugar algum.
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É claro também que houve momentos de certa participação política popular, certa indiferença pragmática em relação aos poderes constituídos, sobretudo entre os mais pobres, e que, talvez, agora com muito maior dificuldades voltem a se repetir, que inspiraram as modestas utopias e moderados otimismos por parte daqueles que a historia colocou na desconfortável posição de tentar “pensar o Brasil”, como este que vos escreve.
Após este longo introito, as grandes questões que desejamos focar nessa crônica são o que será necessário e possível de ser feito para que os próximos anos não sejam uma absoluta catástrofe social?
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Falar, resistir, insistir, olhar por cima do imediato – e, mais que nunca, educar, no sentido de criar condições para que o povo se eduque! Com a elite e com parcelas imensas da classe média não há o que se conversar! Eles são reacionários, possuem um DNA escravagista e segregacionista.
A paisagem educacional do Brasil de hoje é a de uma terra devastada, um deserto. E não existe nenhuma iniciativa consistente para tentar adubar a terra morta. Ao projeto de poder das elites nacionais não interessa modificar em nada esta paisagem. O que se pretende, e “A Escola sem Partido” é um exemplo nada mais, é pura e simplesmente domesticar uma força de trabalho. Os ensinos fundamental e médio, mesmo nos governos petistas, permaneceram grotescamente inadequados, com professores recebendo miséria. Hoje somos um país com quase 60% de analfabetos funcionais. A “falta” de instrução básica adequada, voltada para a formação do cidadão, para a capacitação profissional e para a vida, é talvez o principal fator responsável pelo conservadorismo reacionário de boa parte da juventude brasileira. Em suma, precisamos arregimentar forças para nos contrapormos ao “lixo” educacional, que ainda piorará sob o governo que promete ser o mais obscurantista desde a República Velha.
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Defesa intransigente do meio ambiente. O novo governo já disse ao que veio: deseja desrespeitar e desregulamentar toda a política de preservação ambiental. Mas as condições climáticas do planeta, o que inclui o Brasil, estão em franca desagregação. Os resultados do aquecimento global são cada vez mais devastadores. Acredito que, de uma forma ou outra, a comunidade internacional será chamada a intervir para conter a fúria que, inicialmente, será devastadora para o nosso meio ambiente e para os povos da floresta. Para tal, deveremos repercutir para o mundo todo e qualquer avanço irresponsável da mineração e do agronegócio, o desrespeito aos assentamentos familiares e à pequenas propriedades. Um alerta a todas às agressões e violências que vierem a ser praticadas.
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Mantermos ativa a “inteligência” em seu recriar-se e resistir. É absolutamente urgente a compreensão que o pacto sobre o qual se construiu a dicotomia PT e PSDB explodiu e não possui a menor possibilidade de ser reconstruído. A esquerda deve aceitar a necessidade de uma profunda autocrítica pública de métodos, de objetivos, de referenciais éticos. A democracia ou se refunda ou terminará por apodrecer nos próximos vinte anos sob as mais sujas botas político-policiais- militares que já enlodaçaram este país.
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É preciso ter claro que o governo que principia em 2019 não vem para instalar-se no poder por apenas quatro anos. Seus Ministros e técnicos mais capazes sabem que, na crise profunda em que o Brasil foi lançado, todas as atitudes que eles tomarão como os cortes brutais de verbas em todas as áreas sociais, redundarão em uma rápida perda de prestígio popular. Que a precarização do trabalho não criará mais postos de trabalho, pois estes somente podem ser criados por aumento de demanda e investimentos em setores de trabalho intensivo, e isto poderá tardar anos. O que eles buscam será o aumento dos lucros e da especulação mobiliária e de valores. Que a venda de ativos do Estado ao bater do martelo pouco alterará o déficit público nos próximos anos. Que toda a reforma Previdenciária que vier a ser realizada jamais tocará nos privilégios dos juízes, políticos e militares. Que o SUS será levado ao esgotamento e a principal preocupação da população em saúde será fraudada. Logo, não poderão contar com a manutenção do apoio popular e provavelmente deverão estar preparados para enfrentar sublevações pontuais a bombas, a cavalos, à bala se necessário for.
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Chegamos à questão da violência, um enorme desafio de dificílimo equacionamento. As milícias paramilitares e outras organizações criminosas, num momento de uma crise social que atinge mais quase 70 milhões de brasileiros, somente tende a se agigantar. Podemos esperar que nos próximos anos, o volume de mortes violentas, que alcançou em 2017 mais de 65.000 pessoas, deva mais que duplicar nos próximos anos. O medo das elites e da classe média será saciado com muito sangue, claro que, raras vezes, até mesmo o dela próprio.
Entretanto, existem outros fatores modificadores que também devem ser levados em consideração nesse panorama dramático:
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O fenômeno coroado pela eleição de um Donald Trump, que se espalhou por países periféricos da Europa, como Hungria e Itália, fortaleceu a ruptura da Inglaterra com a União Europeia e que inspirou o bolsonarismo midiático no Brasil, já iniciou um princípio de decadência. Já se prevê uma queda do PIB Inglês, o ciclo de crescimento da era Trump se esgota e ele perdeu o controle do Congresso; surge um democrata mais radical ao nível de um Senders, com representatividade no eleitorado americano e, quiçá, por conta do Brexit, o Partido Conservador Inglês, ceda lugar a um trabalhismo que nada possui daquele de Tony Blair. Após anos, o povo húngaro começa a se sublevar contra um tirano eleito. O próprio conservadorismo de Macron parece que atingiu o seu teto e a revolta pelo retorno ao Estado do bem-estar social se espalha pela França. Por outro lado, o sucesso da social democracia Portuguesa é inegável e atrai as atenções de todo o mundo.
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Inicia-se também a geração de um movimento que talvez rompa com estruturas ultrapassadas como a OTAN. França e Alemanha principiam um processo de alinhamento visando à construção de um Exército Europeu.
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Arrisco por aqui em nosso canto do mundo, globalizado, uma tese: tendo a crer que a ascensão da boçalidade máxima ao nível de poder, e em todos os níveis, com uma fome tremenda em aumentar os lucros das castas que representam, criará um espaço novo para o debate e para a resistência democrática, que não passará pelos partidos tradicionais e nem pelos movimentos populares também tradicionais e hoje desgastados, tal qual o sindicalismo, embora contando com a participação de muitos de seus membros. Talvez sejamos arrastados numa ampla torrente de insatisfação popular que busque e exija novas definições, novas formas de organização e de formatação democrática.
De toda forma, parafraseando W. Churchill, os anos que virão somente trarão muito sangue, suor e lágrimas ao nosso povo, a exemplo do que ocorreu a partir de 1939. Creio também que é possível que, com muita luta, resistência e o despertar de consciências, tornaremos a reencontrar um 1945, assim como um novo conceito de sociedade mais humanizada, integrada à defesa de nosso patrimônio natural.
De todo modo, volto ao alerta que nos foi dado por W. Benjamin em 1938: “Nesse planeta, um grande número de civilizações pereceu em sangue e horror. Naturalmente é preciso desejar ao planeta que algum dia experimente uma civilização que tenha abandonado o sangue e o horror; de fato estou inclinado a pensar que nosso planeta espera por isso. Mas é terrivelmente duvidoso que nós consigamos trazer tal presente em sua festa de aniversário de 100 milhões ou de 400 milhões de anos. E se não o fizermos o planeta nos punirá a nós, com nossos irrefletidos bons votos a ele, presenteando-nos com o Juízo Final.”
*Carlos Russo é colaborador da Diálogos do Sul