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Não os progressismos, mas a nova esquerda é imprescindível para a América Latina

Revista Diálogos do Sul

Tradução:

A constituição de um pensamento de esquerda na América do Sul remonta às discussões europeias, que tinham grande influência no continente. “No século 19, por exemplo, as ideias dos socialistas europeus eram bem conhecidas e discutidas”, lembra Eduardo Gudynas. “Embora tenham surgido posicionamentos próprios dentro do continente, sempre foi preciso enfrentar a influência de posições eurocêntricas e muitas vezes o dogmatismo.”

Vitor Necchi, no IHU On-Line| Tradução: Henrique Denis Lucas

Gudynas, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, salienta que não concorda que haja um esgotamento da esquerda. No seu entendimento, em muitos casos essa questão “surge para confundir as correntes políticas progressistas, como o PT, no Brasil, com o que seria uma postura de esquerda”. Ele observa que esquerda e progressismo são dois programas políticos diferentes. Progressismos “são aqueles que agora se encontram em uma fase de esgotamento, no sentido de que não conseguem gerar novidades e avançam em gestões governamentais cada vez mais convencionais”.

“A situação atual é muito complicada”, reconhece, porque o esgotamento dos progressismos tem efeitos negativos multiplicados. “Por um lado, afetam a esquerda independente, enquanto que, para muitos, esta faz parte desses progressismos e, portanto, atribuem-lhes responsabilidades a muitos problemas, como a corrupção.

Ao refletir sobre que modelo econômico seria adequado para combinar preservação ambiental e combate à pobreza e à exclusão que caracterizam boa parte do continente, Gudynas destaca que “a discussão atual propõe algumas estratégias de reforma e transformação que são, por sua vez, econômicas e políticas, que começam pelo desarme da dependência extrativista”.

Em tempos de incertezas, Gudynas afirma: “A nova esquerda é imprescindível”. Ele entende que “o compromisso de esquerda com a justiça social mantém toda a sua vigência e, com isto, a necessidade de democratizar a política”. No entanto, precisa ser “nova” porque a temática ambiental deve ser somada à sua postura tradicional. “Não há justiça social se não houver uma justiça ecológica”, garante.

Eduardo Gudynas é ambientalista e pesquisador vinculado ao Centro Latino-Americano de Ecologia Social (CLAES), do qual é secretário-executivo. Tem formação pela Faculdade de Medicina da Universidade da República (UDeLaR), do Uruguai, e já exerceu a função de professor visitante em diversas universidades da América Latina e dos Estados Unidos.

Veja a conferência A modernidade viscosa latino-americana e a reinvenção política:

Confira a entrevista.

IHU On-Line: Na América do Sul, como se constituiu o pensamento de esquerda?

Eduardo Gudynas: De uma maneira mais ampla, o pensamento de esquerda esteve presente quase desde a formação da América do Sul, já que as discussões europeias tinham uma enorme influência no continente. No século 19, por exemplo, as ideias dos socialistas europeus eram bem conhecidas e discutidas. Embora tenham surgido posicionamentos próprios dentro do continente, sempre foi preciso enfrentar a influência de posições eurocêntricas e muitas vezes o dogmatismo. Tentativas de formar uma esquerda latino-americana própria, como as do peruano José Carlos Mariátegui, chocavam-se contra a ortodoxia do norte, apoiada por muitos aqui no sul. Dessa maneira, sob essas tensões, constituíram-se diversas correntes do que poderia ser chamada de uma esquerda, em sentido amplo.

Há um esgotamento da esquerda? Se sim, qual o caminho?

Não compartilho da ideia de um “esgotamento” da esquerda, e acredito que, em muitos casos, essa pergunta surge para confundir as correntes políticas progressistas, como o PT, no Brasil, com o que seria uma postura de esquerda. Na minha opinião, esquerda e progressismo são dois programas políticos diferentes. Muitas correntes de esquerda – e entre elas estava o velho PT – foram muito poderosas e conseguiram conquistar o governo. No entanto, uma vez com o controle do Estado nas mãos, pouco a pouco, abandonaram vários componentes essenciais daquele programa de esquerda original e se transformaram em progressismos. Eles nem ocultaram isso: agrupamentos políticos como os do  Aliança País, no Equador, de Rafael Correa, a Frente Ampla, no Uruguai, o Movimento para o Socialismo, na Bolívia, o chavismo venezuelano, o kirchnerismo, na Argentina, todos eles definem a si mesmos agora como “progressistas”.

Com esse ponto esclarecido, os progressismos são aqueles que agora se encontram em uma fase de esgotamento, no sentido de que não conseguem gerar novidades e avançam em gestões governamentais cada vez mais convencionais. Mas tampouco concordo com o que dizem sobre um “final” dos progressismos, já que é evidente que eles resistem como uma manifestação política em vários países, e em outros, continuam a manter os governos em suas mãos (como na Bolívia e Uruguai).

Na atualidade, qual o panorama da esquerda no continente?

A situação atual é muito complicada, porque esse esgotamento dos progressismos tem efeitos negativos multiplicados. Por um lado, afetam a esquerda independente, enquanto que, para muitos, esta faz parte desses progressismos e, portanto, atribuem-lhes responsabilidades a muitos problemas, como a corrupção. Por outro lado, o próprio progressismo desmontou mecanismos e instituições que favoreciam a participação cidadã, e que são importantes para manter esse espírito de esquerda. Eles desarmaram, por exemplo, o que antes se chamava radicalização da democracia, como as consultas cidadãs ou orçamentos participativos. Abandonaram o diálogo com organizações cidadãs essenciais, como as feministas, os ambientalistas e os indígenas. Têm enormes problemas em entender os direitos humanos em toda sua amplitude e, por isso, apelam para mecanismos que condicionam a sociedade civil, como a perseguição às ONGs e movimentos independentes na Bolívia.

Esses dois caminhos, por vias distintas, reforçaram a ideia de que não existem outras alternativas possíveis, como se o progressismo tivesse sido o limite das mudanças possíveis e desejadas, e nada mais existiria além deles. Então, se o convencimento de que não há alternativas é algo compartilhado entre as pessoas, e que o atual caminho, o progressismo, ao final de contas repete o mesmo tipo de desenvolvimento, outra vez baseado na exploração de matérias-primas, e segue sendo tão corrupto quanto os demais partidos, então torna-se muito difícil explorar uma renovação da esquerda.

O que é o progressismo e como ele se processa?

O surgimento do progressismo tem sido um processo lento. E, em grande parte, dependeu das pressões recebidas por aquela esquerda original que estava no poder e que, do seu ponto de vista, não teve mais opções do que repetir o desenvolvimento convencional. Então, os governos iniciais se voltaram, por exemplo, para o extrativismo, para manter as exportações de matérias-primas. Essa mudança, no Brasil, foi impactante e passou despercebida por boa parte dos intelectuais tanto de esquerda quanto progressistas.

Em poucos anos, os governos de Luiz Inácio Lula da Silva transformaram o Brasilno país mais extrativista do continente, em primeiro lugar como exportador de minérios, à frente de Chile ou Bolívia, e primeiro exportador agrícola. O povo desfrutava de uma moeda (o Real) barata em relação ao dólar, com forte expansão consumista, especialmente nas grandes cidades. Mas, por sua vez, a base industrial do país se deteriorava. E enquanto muita gente aproveitava uma televisão de plasma ou um novo celular, não se dava conta de que seu esgoto ou água potável continuava tão mal quanto antes. É nesse tipo de dinâmica que opera a divergência entre esquerda e progressismo. O “boom” das matérias-primas e o acesso generalizado a um novo consumismo deram um forte apoio eleitoral aos progressismos.

Qual a relação do progressismo com a esquerda?

O progressismo como programa político não é conservador. Ninguém pode dizer, por exemplo, que os governos do PT seriam neoliberais. Mas é uma posição política distinta de alguns elementos da esquerda que lhe deram origem. Por exemplo, a esquerda das décadas de 1980 e 1990 debatia fortemente o desenvolvimento convencional, rejeitava o fato de que os países latino-americanos continuaram a ser provedores de matérias-primas, e buscavam outro tipo de inserção internacional e coordenação regional. Essa postura crítica frente ao desenvolvimento se perdeu com o progressismo. Os governos desse tipo passaram a defender um desenvolvimento convencional baseado na exportação de matérias-primas e consideravam que aqueles que questionavam os impactos da mineração ou do petróleo, por exemplo, faziam parte de partidos de direita ou representavam posturas radicais infantis. Por sua vez, esses progressismos perderam suas conexões com os movimentos camponeses ou indígenas, e consideravam que seus alertas ou protestos colocavam o desenvolvimento em risco. Nisto, também se separam da esquerda. As visões simplistas tinham muitas defesas políticas e acadêmicas, como se pode ver quando, por exemplo, são compartilhados os escritos de Emir Sader ou Wladimir Pomar, no caso do Brasil, mas há outros exemplos semelhantes nos demais países. Ali também ocorreu uma separação com a esquerda, já que esta sempre defendeu posturas críticas.

Agora, reconhecendo a necessidade desses olhares críticos independentes, também é certo que aquela esquerda do final do século 20, na América Latina, tinha enormes dificuldades em abordar temas como o ambiente, a interculturalidade ou o feminismo. A esquerda do começo do século 21, em alguns lugares, conseguiu diálogos, aprendizagens e coordenações com essas novas problemáticas, mas não geraram frutos em grande parte por conta da predominância dos progressismos nos governos.

Temas ambientais e ecológicos costumam ser contemplados pelos movimentos sociais e de esquerda. No âmbito dos governos de esquerda, como esta questão vem sendo tratada no continente?

Por um lado, existe um maior reconhecimento da importância da problemática ambiental, que já é tão grave que poucos são capazes de negar. Está muito claro, por exemplo, o desflorestamento amazônico ou os efeitos das alterações climáticas globais. Por outro lado, muitas resistências se mantêm na tomada de medidas políticas necessárias para incorporar essa dimensão ambiental. Os governos progressistas não conseguiram nenhuma reforma ambiental substancial. Há alguns êxitos pontuais, como, por exemplo, os anos em que o nível de desflorestamento amazônico baixou no Brasil, mas, por sua vez, mantiveram-se os problemas estruturais que destroem a natureza, como o agronegócio.

Tanto os governos conservadores quanto os progressistas debilitaram os ministérios do Meio Ambiente, colocando o controle ambiental nas mãos de investimentos estrangeiros ou de exportações de matérias-primas, considerando os ambientalistas como oponentes políticos. No entanto, a pressão cidadã segue aumentando em todos os países, enfrentando especialmente os extrativismos.

Os diferentes governos sul-americanos autoproclamados de esquerda se tornaram reféns das empresas de extrativismo?

Insisto: os governos eram progressistas, e não de esquerda. É correto falar que em todos os países, sejam eles conservadores ou progressistas, tenha aumentado o extrativismo de minérios, petróleo e monoculturas. Mas isso não se deveu a que os governos tenham se tornado reféns de empresas, já que em diversos países os próprios governos eram os donos ou administradores das empresas extrativistas. Recordemos que as petroleiras são estatais, como, por exemplo, na Bolívia, no Equador e na Venezuela, ou são controladas pelo governo, como no caso da Petrobras. O que houve foi que os governos não encontraram outro tipo de estratégia que não fosse o extrativismo, como forma de preservar suas exportações, conseguindo o capital necessário para manter o Estado e a sociedade. Então, os progressismos não eram reféns, mas promoveram seu próprio tipo de extrativismo, com a maior participação estatal em alguns setores e com um discurso que os associava aos programas de combate à pobreza. Em alguns casos, incentivaram ainda mais esses extrativismos, já que tinham redes de corrupção formadas entre partidos e empresas, como modo de obtenção de dinheiro. As redes de corrupção estabelecidas entre Petrobras, empresas construtoras e praticamente todos os partidos políticos brasileiros é um exemplo. O mesmo foi encontrado em outros países, ainda que, às vezes, a imprensa tradicional não publique. Um caso escandaloso aconteceu com a corrupção associada à mineração chilena, em que se descobriu que todos os partidos políticos no Congresso recebiam dinheiro, e os pagamentos eram proporcionais aos números de votos.

Que modelo econômico seria adequado para combinar preservação ambiental e combate à pobreza e à exclusão que caracterizam boa parte do continente?

A discussão atual propõe algumas estratégias de reforma e transformação que são, por sua vez, econômicas e políticas, que começam pelo desarme da dependência extrativista. A América Latina está destruindo sua natureza especialmente para alimentar as exportações que sustentam o consumismo do capitalismo planetário. Então, uma primeira medida é desmantelar essa subordinação à globalização. Em seguida, questiona-se que isso não seja possível, porque implicaria em um colapso econômico, o que não é correto. Na verdade, a questão é que os Estados subvencionam de maneiras diretas e indiretas a esses extrativismos. Portanto, o que constituiria as transições pós-extrativistas incluem uma reforma substancial no gasto do Estado e nos instrumentos tributários, para apoiar setores próprios e necessários para assegurar a qualidade de vida das pessoas.

Todas essas estratégias não podem ser resumidas nesta breve entrevista, mas o importante é deixar bem claro que agora existe uma ampla quantidade de exemplos e reflexões sobre essas alternativas para o desenvolvimento convencional e que elas são muito discutidas nos países vizinhos.

O senhor disse que está convencido de que uma nova esquerda é necessária. Por quê? E que esquerda seria preciso?

A nova esquerda é imprescindível. O compromisso de esquerda com a justiça social mantém toda a sua vigência e, com isto, a necessidade de democratizar a política. Mas ela tem de ser “nova” porque sua postura tradicional deve ser somada com a temática ambiental. Dito de outra maneira, não há justiça social se não houver uma justiça ecológica. E também há de ser “nova” em um sentido latino-americano, em que é imprescindível recuperar, respeitar e dialogar com uma diversidade de culturas, muitas das quais têm exemplos riquíssimos de outras relações sociais e ecológicas. Também há de ser “nova” para não cair novamente para a direitaou para os progressismos.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

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