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Guimarães Rosa, um inventor da língua pátria

Fernanda Pompeu

Tradução:

Fernanda-Pompeu-1Fernanda Pompeu entrevista Regina Pereira, ambas apaixonadas por Guimarães Rosa. nosso autor da sertanejidade… E quem quiser pode ouvir a entrevista. Elas conversam sobre autores que navegam pela literatura de alta tensão. Aquelas obras que não basta ler uma vez só. Aquelas às quais estamos sempre voltando.

Fernanda Pompeu – Por que começar por Guimarães Rosa?

Regina Pereira – Porque na língua portuguesa ele é o representante máximo deste tipo de literatura. O escritor a quem a língua portuguesa deve seu maior índice de criação vocabular. Para facilitar a leitura dos textos de Rosa, existe até um dicionário, O Léxico de Guimarães Rosa, da professora Nilce Sant’Anna Martins, com nada menos que 8.000 verbetes. E livros como O Recado do Nome, de Ana Maria Machado, que demonstra que cada personagem da obra dele não foi batizado ao acaso, mas traz um significado que comunga com a trama. Diz a anedota que, para valorizar-se diante de um editor, um tradutor empostou a voz e declarou: “Domino várias línguas – inclusive a de Guimarães Rosa”. O que não deixa de ser verdade, ele foi o criador de um idioma próprio!

Guimarães Rosa, por Andre Gigante - Ilustrações
Guimarães Rosa, por Andre Gigante – Ilustrações

Fernanda Pompeu – E de onde vem seu interesse especial pelo João Guimarães Rosa?

Regina Pereira – Eu poderia me apresentar como leitora de Guimarães Rosa, mas, ao longo de um caminho que começa na minha adolescência, quando, aos 15 anos, li pela primeira vez GSV, levada pela mão de um professor de português, me tornei uma Devota do Rosa. Com certeza Guimarães Rosa é hoje, no Brasil, passados 50 anos de seu encantamento, que é como se diz docemente morrer na língua dele, o autor mais lido, bordado, pintado, cantado, encenado, estudado, amado, venerado. Ele disse que escrevera uma obra para durar pelo menos 700 anos. Sagarana, seu primeiro livro publicado, já setentou, então temos pelo menos mais 630 anos pela frente. Nestes primeiros spots da série que iniciamos agora com Guimarães Rosa, e que espero continue com autores instigantes e intrigantes, autores que praticam literatura de alta tensão, vou tentar mostrar um pouco como ele teceu essa obra para que durasse tudo isso. E como esse plano vai poder se cumprir. E aqui cabe uma advertência sobre meu conhecimento da obra de Rosa, uma frase de Riobaldo, personagem de GSV: “Eu quase que nada sei, mas desconfio de muita coisa.”

Fernanda Pompeu – Nossa! Isso é muito bacana…

Regina Pereira – Na África, antes de iniciar e terminar uma contação de histórias, pede-se aos deuses permissão, enunciando algumas palavras especiais no início e no fim. O escritor moçambicano Mia Couto disse que Guimarães Rosa com certeza esqueceu de dizer as palavras de encerramento, e assim ele deixa a todos em permanente estado de embevecimento. Rosa escreveu uma obra repleta de enigmas que não se esgotam, que deve ser lida, relida, trelida, translida. Que vai ser lida daqui a 100 anos e provavelmente não vai envelhecer, porque trata de questões perenes e universais, como o amor, o bem e o mal, a metafísica. Ele dizia:

“Não gosto do transitório, do provisório. Gosto do Eterno…”

Rosa deixou a seus leitores, além da obra, uma casa, uma cidade e uma geografia como herança. Uma geografia física e metafísica, palmilhada ainda hoje por viajantes literários, que vão conferir o que restou do sertão que Rosa descreveu. Ou tentar desvendar o sertão que ele recriou.
Fernanda Pompeu – Então vamos começar do começo situando, para os nossos ouvintes, o autor.

Regina Pereira – Guimarães Rosa nasceu no longínquo ano de 1908, em suas próprias palavras, num “só quase lugar, mas tão de repente bonito”. Córdisburgo (assim com acento, como os habitantes do lugar pronunciam), na boca do sertão de Minas. E boca aqui pode ser entendida em mais de um sentido. Geograficamente é a porta de entrada para essa região de Minas, o sertão. E boca no sentido de porta-voz de uma literatura, já que hoje é conhecida como “A cidade do livro vivo”, onde a obra de Rosa continua ressoando, por meio de manifestações como a Semana Roseana, grupos de contadores de histórias, caminhadas literárias. Literatura abrigada no Museu Casa Guimarães Rosa, o museu mais visitado do Brasil. Onde os Miguilins, os contadores de história, arautos do Rosa, nos emocionam com trechos da obra ditos de cor, que no caso não significa apenas decorados, mas ditos de coração.

Fernanda Pompeu – Pois não é de se admirar que Rosa tenha criado tantos neologismos.

Regina Pereira – Sim, ele já nasce num espaço geográfico denominado por um neologismo: Cordis (coração), burgo (cidade). Nasce, portanto, na cidade do coração. A presença desse neologismo na vida dele é tão marcante que seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, em 1967, começa e termina com a palavra Cordisburgo, e Rosa é conhecido no meio diplomático como Cordisburgo. Filho de um homem chamado Florduardo, seu Fulô para os íntimos. Que a princípio também parece um neologismo, mas vem do alemão, assim como Eduardo, uma corruptela de Flordoardo. O pai tem uma venda, conjugada com a casa. Nesta venda está a gênese de Rosa enquanto escritor: o Rosa ouvinte. Nesta venda se reúnem caçadores e viajantes. Esta venda exala estórias. Esta venda pode-se dizer é um simulacro das mil e uma noites, as mil e uma noites do sertão. Seu Fulô foi ao longo da vida, por meio de extensa correspondência, um dos principais colaboradores e reativadores de memórias de Rosa. Rosa foi um menino quieto, um menino míope. Isso explica sua obsessão por olhar tudo de perto, a sua porção naturalista, que vai permear a sua escrita. Ele diz: “Não devemos examinar a vida do mesmo modo que um colecionador de insetos contempla os seus escaravelhos?”

Fernanda Pompeu – Rosa, inclusive, tem uma autobiografia literária, né?

Regina Pereira – Sim. Nela ele diz: “Nós, os homens do sertão, somos fabulistas por natureza. Desde pequenos, estamos constantemente escutando as narrativas multicoloridas dos velhos, os contos e lendas, e também nos criamos em um mundo que às vezes pode se assemelhar a uma lenda cruel. Deste modo a gente se habitua, e narra estórias que correm por nossas veias e penetram em nosso corpo, em nossa alma, porque o sertão é a alma de seus homens. Assim, não é de estranhar que a gente comece desde muito jovem. Deus meu! No sertão, o que pode uma pessoa fazer do seu tempo livre a não ser contar estórias? A única diferença é simplesmente que eu, em vez de contá-las, escrevia. Já naquela época, eu queria ser diferente dos demais, e eles não souberam deixar escritas suas estórias. Eu trazia sempre os ouvidos atentos, escutava tudo o que podia e comecei a transformar em lenda o ambiente que me rodeava, o sertão, porque este, em sua essência, era e continua sendo uma lenda.”

Fernanda Pompeu – Mas o Rosa sempre viveu no sertão?

Regina Pereira – Não. Esta fala dele explica um quase paradoxo: como pode ele ter escrito com tanta propriedade sobre o sertão, se viveu muito pouco lá? Ele saiu de Cordisburgo com 9 anos para estudar em São João del Rey e depois em Belo Horizonte. E pouco voltou. Há registros de meia dúzia de viagens. Ele viveu a maior parte de sua vida nem tão longa no Rio de Janeiro, em Hamburgo, em Bogotá e em Paris. Por isso, para ele vale a máxima, ele saiu do sertão, mas o sertão não saiu dele. Como atestam a sua obra e a correspondência que ele mantém com o pai e o tio, pedindo que relatem estórias, falares. Este é o início da saga de um escritor maior, que assim resumiu suas intenções:

“Meus livros não são feitos para cavalos que vivem comendo a vida toda, desbragadamente. São livros para bois. Primeiro o boi engole, depois regurgita para mastigar devagar e só engole de vez quando tudo está bem ruminado. Essa comida vai servir, depois de tudo, para fecundar a terra. Meus livros são como comida de boi.”
Fernanda Pompeu – Muito bom, Regina Pereira. Espero que nossos ouvintes tenham curtido esse Radiolíngua. Aliás, se você gostou compartilhe nas suas redes sociais. Em breve, estaremos de volta com a Regina e o imenso João Guimarães Rosa.
[button link=”#link” size=”small”]Small Button[/button]Para ouvir a entrevista: https://soundcloud.com/regina-pereira-literatura
 
*Fernanda Pompeu é colaboradora de Diálogos do Sul
 


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Fernanda Pompeu

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