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Hoje uma voz como a de Brizola faz falta, no momento em que, apesar da coragem de muitos, são raros certos dons que ele possuía de sobra, como a eloquência, o carisma e a sagacidade.
Raymundo Gomes*
“É impressionante a uniformidade com que os órgãos de comunicação (jornais, rádios, revistas e TVs) vêm tratando e conduzindo, com enormes espaços, as investigações, denúncias e a própria CPI sobre o episódio de corrupção e tráfico de influência chamado ‘Lava Jato’. Todos atuam com o propósito claro e indisfarçável – embora com intensidades diferentes – de envolver, comprometer, desmoralizar e – porque não ser claro? – derrubar e substituir o atual Governo.
“Estes são os fatos, que estão aí, à vista de todos. Um espetáculo protagonizado pelas chamadas elites brasileiras e que em seu nível se desenvolve. A população sofrida, com a crise, a tudo observa, de longe. A rigor, não está no assunto e tem as suas naturais desconfianças. Quando vê as revistas de luxo Veja e IstoÉ (dos grandes grupos daqui e de fora), a máquina Globo, Delfim Netto, PMDB (Temer), Folha, Estadão, passarem a exigir a renúncia do atual Governo, francamente, deve fazer o seguinte raciocínio: se é bom para eles, não deve ser para nós. Nunca foi diferente, por que seria agora?
“(…) Lembro-me de 1954. E também de 55, 61 e, depois, 64. O filme que assistimos hoje não é diferente daqueles. As pessoas são outras e as questões em conflito, também. Tudo é mais grave e complexo. Os métodos, porém, são os mesmos. Com tais procedimentos só se chega a um lugar: o golpismo. E daí, invariavelmente a regimes de opressão contra o povo e de mais entrega de nosso País.”
Estes eram os parágrafos iniciais de um dos famosos “tijolaços” de Leonel Brizola, publicados como matéria paga na imprensa que não lhe dava espaço. Este apareceu no Jornal do Brasil de 19 de julho de 1992, em plena crise do impeachment de Fernando Collor de Mello.
OK, dois detalhes foram trocados – onde estava “caso PC”, colocou-se “Lava Jato”; onde figurava Orestes Quércia, trocamos por Michel Temer. Nada, reconheça-se, que altera a essência do raciocínio.
A impressionante atualidade do texto acima dá uma indicação da resposta à pergunta que todos os democratas brasileiros deveriam fazer agora:
O que Leonel Brizola faria?
Nos Estados Unidos, os republicanos saudosos de Ronald Reagan (1911-2004) forjaram uma pergunta que serve como guia informal para o pensamento conservador: “O que Ronald Reagan faria?” (em inglês, “What would Ronald Reagan do?”). O exercício consiste de imaginar, com base nos ditos e feitos do ex-presidente americano, como ele se comportaria diante dos problemas do presente. De tão constante, a pergunta virou sigla – WWRD.
Invertendo politicamente o ponto de vista desse exercício, o que se propõe aqui é a adoção de um princípio análogo para orientar a reflexão dos defensores da democracia no Brasil.
Repita-se:
Em sua longa carreira política, Brizola (1922-2004) não acertou em tudo. Como governador do Rio, não soube enfrentar a ascensão do narcotráfico (mas quem teria sabido?). Promoveu a carreira política de nomes que viriam a traí-lo e causaram muitas decepções ao eleitorado fluminense, como César Maia, Marcello Alencar e Anthony Garotinho. Mas sua trajetória sempre foi marcada pela coerência na defesa das causas democráticas.
Até mesmo algumas de suas supostas decisões erradas, vistas retrospectivamente, não foram tão erradas assim. Politicamente, assinou a própria sentença de morte ao defender, até a undécima hora, a permanência de Collor no poder, naquele ano de 1992. Mas Brizola não estava apoiando um governo corrupto, e sim, como deixa claro o texto acima, opondo-se à sua derrubada por outro grupo político que adotava as mesmas práticas corruptas. Com o impeachment abriu-se um precedente perigoso, hoje usado para tentar derrubar outro governo, e Brizola enxergou isso.
De resto, ao longo dos anos Brizola escolheu as causas certas. Impediu, com a Campanha da Legalidade, a tentativa de golpe contra a posse de João Goulart em 1961; propôs ao mesmo Jango a resistência em abril de 1964. Voto vencido, flertou com a luta armada, à qual acabou renunciando. De volta ao Brasil com a anistia, percebeu corretamente a ameaça à redemocratização representada por Roberto Marinho com o poder da TV Globo – ameaça que o PT muitas vezes minimizou, com as consequências que aí vemos. Não por acaso, a Globo tudo fez para derrubar Brizola. Mesmo com sua força, nunca conseguiu pegá-lo num escândalo de corrupção, nem impedi-lo de se eleger duas vezes ao governo fluminense, em 1982 e 1990.
Brizola enxergava com desconfiança a ascensão do Partido dos Trabalhadores como concorrente na disputa pelo eleitorado de esquerda. Legítimo herdeiro do trabalhismo getulista que foi o principal alvo do Golpe de 64, suspeitava que o PT, com seu “sapo barbudo”, fosse uma invenção perversa dos militares para roubar-lhe o espaço à esquerda. Lula tomou de vez o lugar de Brizola como líder da esquerda em 1989, ao superá-lo por meio ponto percentual no primeiro turno da eleição presidencial vencida por Collor.
Mesmo derrotado, Brizola teve a grandeza de reconhecer de que lado deveria se colocar, e dias depois já estava no palanque de Lula, lutando pela vitória das causas que sempre defendeu. Viria a ser até, em 1998, companheiro de chapa do líder do PT na eleição presidencial. Muitos quadros de seu PDT migraram para as fileiras petistas – inclusive uma certa Dilma Rousseff.
O incompreendido apoio a Collor custou de vez ao envelhecido Brizola seu eleitorado, embora nada de sua lucidez política tenha se perdido. Depois de sua morte, em 2004, seu legado vem passando por uma lenta, mas merecida reavaliação. Sua inclusão no panteão dos Heróis da Pátria, no final do ano passado, serviu como um reconhecimento tardio de que, ao fim e ao cabo, Brizola sempre militou do lado certo: o da democracia. Até suas críticas a Lula e o PT, revistas hoje, apontavam contradições que têm reflexos na crise atual do partido e do governo Dilma.
Hoje uma voz como a de Brizola faz falta, no momento em que, apesar da coragem de muitos, são raros certos dons que ele possuía de sobra, como a eloquência, o carisma e a sagacidade.
Evidentemente, assim como os republicanos dos EUA se orientam pelas ideias de um Reagan imaginário, especular sobre as posições de um Leonel Brizola ideal pode não fazer justiça a um personagem contraditório (como de resto qualquer outro da história política brasileira). Mas, se é impossível dizer exatamente o que Brizola diria e faria neste momento, é fácil saber de que lado estaria: na defesa, uma vez mais, da democracia contra o golpe, do povo contra as elites, do cidadão contra as manipulações midiáticas.
Provavelmente Leonel Brizola diria hoje, como disse em 1992:
“Se é bom para eles, não deve ser para nós. Nunca foi diferente, por que seria agora?”
*Original do Diário do Centro do Mundo, publicado em março de 2016.