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Oito heranças da ditadura civil-militar que fazem parte do que há de pior no Brasil

Jair Bolsonaro e seu governo convoca os militares a "comemorar" o nefasto golpe militar de 1964. Repudiamos essa celebração da ditadura e dos torturadores
Fernando Pardal
Esquerda Diário
São Paulo (SP)

Tradução:

A ditadura militar no Brasil não “caiu do céu”: ela foi meticulosamente planejada e financiada pelos patrões e o imperialismo norte-americano para, ao ser implementada, atacar toda a organização política de trabalhadores e camponeses que lutavam por seus direitos. Serviu a empresários, latifundiários e ao capital estrangeiro em defesa de seus interesses específicos, e para isso passou por cima de qualquer tipo de direito de todos os setores explorados e oprimidos da sociedade.

Foi um golpe de classe da burguesia contra as massas trabalhadoras, e é essa memória que Bolsonaro (que adora torturadores por toda a América Latina, como Pinochet, Stroessner, etc.), Joice Hasselmann e Cia. da extrema direita querem festejar, junto às cúpulas das Forças Armadas.

Como procuramos lembrar aqui os políticos corruptos eram peça-chave durante a ditadura, o que bota abaixo uma das bravatas mais repetidas pelos defensores do período de que “na ditadura não tinha corrupção”. Aliás, Jean Barroso também resgatou alguns dos escândalos de corrupção ocorridos durante os governos da caserna.

Agora, queremos trazer à memória mais alguns “presentes” que, com a repressão e a tortura, os governos militares deixaram ao país:

1. Arrocho salarial

“Fazer crescer o bolo para depois dividí-lo”,era essa a famigerada frase do ministro da economia Delfim Netto para justificar o imenso arrocho salarial que corroía as condições de vida dos trabalhadores. O bolo, é claro, era dos patrões.

Quem vivia mal, passou a viver pior, e, claro, se reclamar vai pros porões da Operação Bandeirantes ou do DOPS. Tortura, prisão, morte eram a resposta para quem reclamar do salário cada vez mais baixo. A absurda “lei de greve” de 1964 é uma demonstração clara de como toda a liberdade de organização sindical e política era proibida. Só era permitido abaixar a cabeça e aceitar calado todo tipo de exploração.

Segundo reportagem da Carta Capital, em 21 anos de ditadura o poder real de compra do salário mínimo caiu 50%, mesmo que durante boa parte desse período a economia mundial tenha crescido imensamente. Os 10% dos mais ricos que tinham 38% da renda em 1960 e chegaram a 51% da renda em 1980. Já os mais pobres, que tinham 17% da renda nacional em 1960, decaíram para 12% duas décadas depois.

Os gráficos abaixo dão uma ideia do quanto os militares atacaram os salários dos trabalhadores (e foram, é claro, imitados nisso, pelos governos “democráticos” surgidos de suas entranhas, como de Collor e Sarney):

2. Fim da estabilidade no emprego

Em 1967 o governo de Castello Branco deu carta-branca para os patrões demitirem. Acabaram com dois artigos da CLT: o que previa ao funcionário indenização de um mês de salário por ano trabalhado, em caso de demissão imotivada, e o que assegurava estabilidade no emprego ao trabalhador do setor privado que completasse dez anos na mesma empresa. A “contrapartida” disso foi a criação do FGTS – uma parcela do próprio salário que o patrão deveria depositar numa conta e que o trabalhador só pode sacar em caso de demissão sem motivo.

A “troca” era essa: seu direito a ter um emprego por um fundo sustentado pelo seu próprio salário (isso quando o patrão depositava, coisa que muitos trabalhadores só descobrem que nunca aconteceu após décadas de calote, como vimos recentemente com os saques do FGTS). Isso instituiu uma imensa rotatividade no trabalho, o que por sua vez contribuiu ainda mais para o rebaixamento salarial, já que a ameaça do desemprego obrigava os trabalhadores a aceitarem salários cada vez piores.

É claro que mesmo a estabilidade era bem relativa: só com dez anos de emprego o trabalhador a atingia. E, como é fácil imaginar, os patrões demitiam a rodo antes que os trabalhadores completassem esse período justamente para evitar que eles se tornassem estáveis.

Mesmo assim, o Congresso não aprovou a lei. E os militares “democraticamente” a promulgaram, passando por cima até mesmo dos parlamentares. Como afirma a própria Agência Senado, “Para aprovar o FGTS, Castello se valeu do Ato Institucional 2 (AI-2), de 1965, que previa a promulgação automática de projetos da Presidência que não fossem votados em 30 dias. “ Veja abaixo a propaganda do governo do fim da estabilidade que “aparentemente beneficiava” o trabalhador:

3. Aumento das favelas e política de remoções forçadas

A luta de classes fervilhava no campo brasileiro no período pré-golpe, com camponeses organizados enfrentando os latifundiários e grandes fenômenos de resistência, como foi a criação do Território Livre de Tromba-Formoso por camponeses no norte de Goiás, em 1953. Após o golpe, a ditadura veio com imensa fúria repressiva sobre os camponeses.

Como aponta a professora e pesquisadora da UFRRJ “a partir de 1969, no contexto ditatorial, a remoção, ameaça sempre presente na vida das favelas, pôde ser executada com força total, garantida por uma repressão nunca vista antes.”

Nessa época também passam a ser perseguidas lideranças que resistiam contra essa repressão, como Abdias José dos Santos, então dirigente da Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara (FAFEG), segundo pesquisa de Juliana Oakim.

Assim, a ditadura contribuiu para a expansão exponencial das favelas e a remoção forçada de seus habitantes para as periferias das grandes metrópoles.

4. Aumento da concentração fundiária

O Estatuto da Terra promovido em 1964 foi o primeiro instrumento legal da ditadura para impedir a reforma agrária e combater as concessões que os camponeses haviam arrancado no período anterior do governo Jango. Era uma tentativa de apaziguar os conflitos ao mesmo tempo, em que ocorriam as prisões, torturas e mortes. Conforme documento da Comissão Pastoral da Terra (CPT), entre 1962 e 1989, nada menos do que 1.566 trabalhadores rurais foram assassinados.

A grilagem como forma de aumento da concentração de terras cresceu imensamente com a conivência e a atuação direta dos militares para favorecer os grandes latifundiários, como demonstram muitos estudos, tais como esse.

5. Genocídio e etnocídio dos povos indígenas

Não se pode atribuir aos militares o início do monstruoso massacre aos povos indígenas que ocorre no Brasil desde 1500. Contudo, como já discutimos aqui, os brutais crimes da ditadura aumentaram exponencialmente a perseguição a essas populações, aumentando as remoções, os assassinatos, as formas mais brutais de etnocídio.

Obras faraônicas da ditadura como a “transamazônica” foram feitas sob o sangue dos povos indígenas e das remoções forçadas de suas aldeias. Sua construção atingiu pelo menos 29 grupos indígenas, dentre eles, 11 etnias que viviam completamente isoladas.

Índios eram presos sob pretexto de “vadiagem”, eram chicoteados, presos em solitárias. As histórias são ocultas e pouco conhecidas, como a dos Aikewara e as violações cometidas no Araguaia. A ditadura chegou a ponto de criar campos de trabalhos forçados para indígenas, como podemos ver no vídeo abaixo. O site “Memórias da Ditadura” relata “Em 1969 começou a funcionar no município de Resplendor (MG) o Reformatório Agrícola Indígena Krenak, um “centro de recuperação” de índios mantido pela ditadura militar. Indígenas de todas as regiões do Brasil foram jogados em suas celas, acusados por “crimes”, como desacato ao chefe do posto, vadiagem, consumo de álcool e pederastia (homossexualidade masculina). No Reformatório do Krenak, os militares também forçaram a criação de milícias indígenas, as Guardas Rurais Indígenas (GRINs), treinadas para aplicar técnicas de tortura criadas pelo homem branco. Esse experimento sinistro do regime militar até hoje é cercado de mistérios.”

Mais sobre o assunto pode ser visto aqui

6. A destruição ambiental

É no período da ditadura que a destruição do meio ambiente, principalmente da Amazônia, dão um salto imenso. Com o lema de Castello Branco, “integrar para não entregar”, o trator da ditadura avançou na devastação das florestas amazônicas. Estima-se que na década de 1970 o desmatamento tenha pela primeira vez atingido grandes proporções, com 14 milhões de hectares devastados.
Por meio da estimulação da grilagem de latifundiários o governo incentiva a expansão de negócios predatórios na Amazônia. Em 1976 o governo faz uma primeira regularização de territórios ocupados ilegalmente mas com “boa fé”, de acordo com seus critérios.

Entre diversos crimes ambientais da ditadura, podemos citar a construção da Transamazônica, com remoções forçadas e nenhum estudo de impacto ambiental. Da mesma forma com a construção de usinas como as de Tucuruí (1975) – cujos impactos foram detalhados em estudo de Philip M. Fearnside – , de Balbina, Itaipu e Ilha Solteira. Também se investiu na energia nuclear, com as usinas de Angra 1 e Angra 2, com seu potencial para desastres catastróficos.

Um dos grandes emblemas da perseguição aos defensores do meio ambiente foi o assassinato de Chico Mendes, líder seringueiro e defensor das florestas reconhecido mundialmente, no final da ditadura, em 1988.

7. Grupos de extermínio e impunidade

A política de repressão do próprio regime começa na semi-ilegalidade da Operação Bandeirantes (OBAN), esquema de perseguição política e tortura de dissidentes políticos do regime financiada e supervisionada por empresários como Henning Albert Boilesen, presidente da Ultragás. Ela foi a antecessora da repressão do DOI-CODI.

Grupos paramilitares como o “Esquadrão da Morte” ou “Scuderie Le Cocq” surgiram e cresceram no regime militar com apoio dos governos. Tocando o terror, matando e torturando impunemente a seu bel prazer. Seus herdeiros hoje são as milícias e outros grupos que continuam agindo livremente, demonstrando que a ditadura mantém a herança repressiva até hoje. Isso é enormemente fortalecido pelo fato de que responsáveis por essas formas de tortura e prisões, como o militar Carlos Alberto Brilhante Ustra, jamais foram punidos.

8. Perseguição, tortura e assassinatos de LGBTs

A criminalização dos LGBT, sua perseguição sistemática, foram uma constante no período militar. Recentemente, a importante pesquisa “Ditadura e homossexualidade: repressão, resistência e a busca da verdade” ajudou a trazer mais conhecimento sobre essa história pouco contada da ditadura. Virgínia Guitzel sintetiza um pouco dessa história aqui.

Um capítulo particularmente sórdido e que demonstra a participação ativa e planejada do Estado militar na perseguição aos LGBTs foi a “Operação Tarantula”, em que a polícia civil de São Paulo passou a atuar de forma organizada na repressão a LGBTs. Nessa onda de perseguição ocorreram muitos assassinatos, como o diretor teatral Luíz Antonio Martinez Corrêa, irmão de Zé Celso do Teatro Oficina. O documentário “Temporada de Caça”, de Rita Moreira (abaixo) conta um pouco dessa história sanguinária:


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Fernando Pardal

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